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POESIA, A DÍZIMA PERIÓDICA

Por volta de 1900, pelo menos, prognósticos de feições bastante atuais como ―crise‖, ―futuro incerto‖ e ―fim‖ da poesia eram já assuntos correntes na crítica literária. Em um ensaio de 1907, intitulado ―O futuro da poesia‖, o crítico José Veríssimo procurou desmentir essas previsões, afirmando que o século do progresso do espírito positivo, da supremacia dos aspectos materiais e do predomínio das exigências práticas da vida, percebeu cedo, contraditoriamente, que nada disso superava o sentimento humano, que, por sua vez, tem como uma das formas de ―expressão necessária‖ a poesia: ―Vimos que o século em que mais se acentuou a positividade dos nossos conhecimentos, o século da crítica e do domínio teórico, do interesse no domínio prático, foi também o século de grandes e numerosos poetas‖ (1977, p. 27). Não obstante as afirmações entusiasmadas, como a de que ―nunca houvesse tantos poetas e tantos bons poetas, nunca talvez fosse a poesia tão rica, tão variada e tão brilhante, tão perfeita como na nossa época, em que aliás lhe anunciaram a decadência e morte‖ (1977, p. 26), em ―Movimento literário de 1906 a 1910‖ os argumentos seriam alterados.

Nesse ensaio, José Veríssimo permanece com a mesma posição a respeito do ―próximo fim da poesia‖, porém sustenta a invalidade do prognóstico com estimativas numéricas:

Não se cansam os poetas de desmentir o prognóstico agourento de certos críticos [...] e se o número sempre crescente de livros de versos e a cópia de versos bastasse para afastar da bela filha de Apolo o infausto vaticínio, certamente poderíamos descrer do seu cumprimento. Nunca talvez se poetou tanto no mundo, como depois que anunciaram a morte da poesia, nunca se versejou tanto como nestes tempos de materialismo e positivismo, na pior acepção destes termos. (VERÍSSIMO, 1979, p. 219)

Se, por um lado, esses poetas todos conservavam a poesia e alguma coisa do seu idealismo, por outro, expunham a fraqueza da sua

produção. Parte da explicação para a mediocridade da poesia brasileira da época, escondida pelo ―noticiário incompetente e camareiro‖, estaria, para o autor, no arcadismo e no parnasianismo.

Crítico do Parnasianismo, Veríssimo havia escrito, há pouco, um comentário acerca do volume Poesias, de Alberto de Oliveira, publicado em 1900. O parnasianismo, detido em seus preceitos formais, teria sido o responsável por facilitar ―uma multidão de sujeitos‖, isto é, poetas, ―sem pensamento, sem ideia, sem emoção, sem inspiração nem estro‖ (VERÍSSIMO, 1977, p. 154).

A preponderância da poesia sobre todos os outros gêneros também seria notada por ele6. Em ―Alguns livros de 1901‖, esse é um dos aspectos em que o fenômeno literário brasileiro, ―pouco intenso, sempre defeituoso, quase nada original‖, se diferenciaria:

Em todas as literaturas, é hoje o romance, a epopeia da vida democrática e burguesa moderna, o gênero predominante e mais numeroso. O verso vem depois. Em a nossa acontece o contrário: os livros – eu diria melhor os folhetos – de verso são a nossa produção mais copiosa, incomparavelmente mesmo mais copiosa que qualquer outra. (VERÍSSIMO, 1977, p. 137) Entre os próprios escritores ocorria essa mesma impressão: ―Raro se depara com um moço no Brasil que não seja pelo menos poeta‖, declarava, em dezembro de 1885, Luís Murat, para a ―Gazeta da tarde‖ (RJ), ―este gênero de literatura encontrou entre nós largo campo para viver [...]‖ (1980, p. 15-16). As reclamações de Murat sobre a fragilidade e a indiferença da crítica – ―se uma obra aparece, de um valor relativo, nem um trabalho sério que lhe assinale os defeitos e as incorreções, ou que lhe aponte as belezas e as originalidades‖ (1980, p. 16) –, também se prolongariam nas décadas seguintes.

Sílvio Romero foi outro que denunciou, com pesar, em ―Versos, versos, e mais versos...‖ 7

, o crescente número de poetas no Brasil, em ―enorme desproporção‖, nos últimos trinta e quatro anos desde 1870. Ainda que a poesia seja o assunto principal do seu ensaio, o crítico não

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O mesmo seria percebido por Alceu Amoroso Lima mais tarde, em uma crônica para ―O Jornal‖ (RJ), de maio de 1921: ―os movimentos literários brasileiros são poéticos‖.

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Ensaio de 1904, que integra o livro Outros estudos de litteratura

se detém somente nela, afirmando ver os ―escrivinhadores típicos‖, componentes da ―legião de poetas‖, assumirem, com a mesma ―fofice‖, os gêneros crônica e conto (1905, p. 81). As observações finais de Romero são interessantes porque, sem reprovar explicitamente a imprensa, é nos jornais que o crítico entende que esse volume de escritores se manifesta e ganha lugar. A relação não é simples, pois a imprensa que dava abrigo a esses escritores era também a que dava abrigo às críticas contra eles.

Até mesmo em pequenos periódicos, de caráter artesanal, que circulavam em restritos centros literários, comuns na época, o tema do número de poetas foi recobrado. O jornal literário ―A Florescência‖, de São Paulo, que teve suas edições impressas por volta de 1916-19178, traz, na segunda página do jornal número 7, de janeiro de 1917, um curto ensaio, intitulado ―Poetas...‖, no qual o ensaísta Wale Nuces, comentando uma crônica lida em que se dizia haver mais poetas no Brasil do que ―as estrelas do Cruzeiro multiplicadas por si mesmas‖, dá seu depoimento assombrado em favor dessa constatação. Segundo ele, motivados pelo ―puritanismo atual‖, os poetas fizeram da inspiração, produção do verso, quando deveria acontecer o oposto9: ―Poetas de pouco ou sem merecimento, pululam por aí, às levas, quais vermes, nas lagoas pútridas da mesquinha literatura‖. Na ―Gazeta Artística‖, também de São Paulo, A. Piccarolo, autor de um artigo sobre o ―Estado actual da poesia brasileira‖, levanta, inclusive, a necessidade de se fazer um cálculo estatístico sobre a produção poética do país para melhor entendê-la: ―uma estatística apropriada seria interessante e tomaria, certamente, proporções alarmantes, superiores à produção do café ou da borracha‖ (1910, p. 5).

A ideia de inspiração, de Wale Nuces, se sobrepunha, de maneira resistente, à condição de ―profissional‖, em vias de ser alcançada pelo ―escritor‖. A imagem fabril do Parnasianismo se mescla com a imagem da fábrica jornalística exatamente neste ponto. Basta tomar para análise dois nomes frequentes nestes ataques ao número: ―escrivinhadores‖ e ―versejadores‖. Ambos trazem o sufixo ―-dor‖, de origem latina, atribuindo as noções de ―ofício‖ e ―profissão‖ ao radical. O tom

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Tendo como subtítulo, nos últimos números: ―Orgam do Centro Litterario Amadeu Amaral‖.

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―O puritanismo atual, levou ao ridículo a beleza da inspiração. Sim, já hoje, a inspiração deixa de produzir o verso para ser por ele produzida.‖ (NUCES, 1917, p. 2).

pejorativo seria o resultado da incoerência, nítida, entre o sufixo e os radicais aos quais foi unido.

As tentativas de compreensão da força da produção poética dessa época, como se vê, incluem desde o Parnasianismo, o Arcadismo, a imprensa, a crítica até o abandono de um certo sentimentalismo, que seria imprescindível para motivar a atividade criadora. Entretanto, apenas com Amadeu Amaral essas tentativas ganharam dinamismo.

Em ―Poesia de ontem e de hoje‖10, ele explica a ―extrema pobreza de fundo poético‖, apontada por José Veríssimo, como ―vulgarização extrema dos modelos ilustres‖. Passado o calor da estreia e o momento de real contribuição às letras, o parnasianismo vinha se enfraquecendo com a própria multidão de admiradores que arrastava consigo: ―repetidores mais ou menos habilidosos, que inundaram o país de bonitos sonetos e de poemas sorríveis – apenas com o defeito de não serem ―nascidos‖, mas ―fabricados.‖ 11

(AMARAL, 1924, p. 45). Amadeu Amaral não vê, no parnasianismo, o fracasso ou a falsificação como características congênitas, como o faz José Veríssimo. Há, na ―vulgarização‖, um processo pressuposto. Esse processo, uma sucessão de estados, por sua vez, tem a divulgação como o propulsor de mudanças. A mudança em si teria sido a constante popularização. O passo duvidoso desse raciocínio está na sua ambiguidade: o parnasianismo se tornou vulgar porque se tornou popular ou se tornou popular porque se tornou vulgar? (aliás, esses seriam dois modos de dizer o mesmo?). Ou seja, o parnasianismo se tornou visível porque foi muito praticado, ou estava em todo lugar porque foi ―facilitado‖, transformado em algo praticável, acessível a todos? Pode-se tomar ―vulgar‖ como sinônimo de ―prática‖ e ―popular‖ como sinônimo de ―acessibilidade‖, ou ―popular‖ como sinônimo de ―prática‖ e ―vulgar‖ como sinônimo de ―acessibilidade‖.

A popularização foi de todo modo, como prática do tradicional e como acesso pela facilidade, uma oportunidade de diversificar o parnasianismo. Por isso, o que para Sílvio Romero era ―claro indício‖ dum povo de ―defeituosa organização social e da pouca profundeza de sua cultura‖ (1905, p. 70), e para José Veríssimo ―sinônimo de mediocridade‖, era para Amadeu Amaral ―uma admirável floração de

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Ensaio publicado originalmente na ―Gazeta de notícias‖, em 1923, quando escrevia críticas literárias para o jornal.

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E assim finaliza: ―Chegou-se mesmo a temer, e com fundamento, que dentro em pouco passassem a fazer-se peças pseudo-parnasianas como se fazem chapéus ou sapatos – em cooperação, e às pilhas.‖ (AMARAL, 1924, p. 45).

talentos interessantes, vivos, maleáveis, inquietos, com uma grande riqueza de pendores independentes‖ (1924, p. 46).

Amadeu Amaral não só navegou em contrário ao geral pessimismo, como ele mesmo dissera, mas defendeu serem falsas as corredias afirmações sobre a multiplicação dos poetas no país:

Afirma-se todos os dias que os poetas enxameiam nesta terra como gafanhotos, alastram como as abóboras; e passou a ser clássica a pilhéria de que toda a gente faz versos no Brasil. Nada mais falso. É falso que a poesia tenha assim tantos cultores neste país. (AMARAL, 1924, p. 23).

A citada comparação entre os poetas e os gafanhotos havia sido feita por Wenceslau de Queiroz na seção Crítica Literária do jornal ―Correio Paulistano‖ 12

, publicada no dia 09 de outubro de 1904. A crônica tratava da apatia da crítica diante dos livros recebidos, que, segundo o autor, ou se desfaz em uma ―crítica sistematicamente louvaminheira‖ ou ―os atira [os livros] à vala comum do recebemos e agradecemos‖, e por fim elogiava o trabalho literário de tradução português/francês-francês/português e criação em ambas as línguas de Hippolyto Pujol. ―A crítica é uma drenagem necessária no campo da literatura‖, devendo basear-se na ―apreciação justa e verdadeira, sem ridículas curvaturas de espinha dorsal, nem aprumos de uma severidade de pedagogo‖ e devendo combater o que Wenceslau de Queiroz chama de ―fenômeno assustador de uma superprodução de farandulagem literária‖.

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O parágrafo donde fora retirada a mencionada comparação é o seguinte: ―E pois que os talentos robustos e pessoais não exuberam por aí como os gafanhotos ou moscardos, enxameando por tal forma que nos tapem o sol, o que, no entanto, se dá com as hordas bárbaras dos inúmeros sarrafaçais que se rotulam com o título de escritores, justifica-se até certo ponto o paradoxo estético de que nunca se deve encorajar estreante algum na carreira das letras, mas, ao invés, se deve mostrar que na orografia intelectual são quase inacessíveis as montanhas, cujas cumiadas se perdem nas nuvens, e que o caminho para chegar até lá em cima vai beirando abismos, é estreito, abrupto, áspero, produz vertigem, tal qual a que acometia Heráclito no cimo das colinas de Éfeso, não passando a tão almejada glória, por fim, de uma fita de fumaça prismando-se em cores de arco-íris, sedutora e aliciante ao longe, mas fugidia, incoercível e efêmera‖ (QUEIROZ, 1904, p. 1). Jornal n.° 14785.

A resposta mais elaborada e direta, por parte de Amadeu Amaral, à crônica publicada no ―Correio Paulistano‖, veio em ―Brasil, terra de poetas...‖, em que o autor acusa Wenceslau de Queiroz de fazer afirmações ―falsas como pratas de chumbo‖. Para Amadeu Amaral não há razão para se dizer que um país ―onde oitenta por cento da população não sabe ler, onde não há senão uma literatura incipiente e uma arte andrajosa, onde a caça ao dinheiro predomina desenfreadamente [...], onde não há opinião, não há tradições, não há cultura [...]‖ (1924, p. 29) é uma terra de poetas. Além do que, espera-se do crítico que ele não disperse ―a nuvem dos saltões versejadores‖, mas que lhes imprima ―o cunho das suas ideias‖.

Contudo, é bem verdade – e isto o próprio autor de O elogio da mediocridade observou – que os livros de poesia começaram, nas primeiras décadas do século XX, a entulhar as livrarias13. A seção ―Livros Novos‖ da revista ―A Cigarra‖, de São Paulo, teve em sua maioria de anúncios literários livros de poesia, muitos dos quais não se têm nenhuma outra notícia até hoje – serve como exemplo o misterioso Walkyrianas, de ―José Testamantis‖ 14. A Arte de Amar, de Júlio César da Silva, publicado pela editora de Monteiro Lobato, foi um dos raríssimos casos de ―best-seller da lírica‖.

E se esse volume de produção tornava dificultosa a recepção de tantos livros pela crítica da época, assim como embaralhava a paisagem

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―Acham que estamos saturados de poesia... Entretanto, os raros livros que aparecem no decorrer de um ano ficam empilhados nas prateleiras dos livreiros, se não são jeitosamente propinados aos incautos, como bilhetes de rifa.‖ (AMARAL, 1924, p. 24).

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A primeira coluna da seção ―Livros Novos‖, página 42 de ―A Cigarra‖ n°. 337 (correspondente à segunda quinzena de novembro de 1928) traz a curiosa notícia de lançamento: ―Ao abrirmos este livro, deparamos com esta coisa terrível, este atentado às regras, às comezinhas regras gramaticais: nome masculino craseado. Mesmo assim, continuamos a ler a obra do senhor Testamantis. Na capa, como o ―cavencanem‖ das vivendas romanas, havia este aviso-incitação: SÓ PARA HOMENS. Lemo-lo à pressa. Com medos de sermos apanhados em flagrante. Ler assim não é ler. Haverá poesias boas? Más? Não podemos garantir. Talvez sim, provavelmente não. Em último caso, servirão de ―aperitivos‖... (os leitores adivinham que espécie de aperitivos!...) a certos organismos depauperados. Quando pretendia relê-lo, a ―Cigarra‖, a sisuda mademoiselle ―Cigarra‖, que é uma senhora de costumes severos, à antiga, pois usa, em pleno século do aeroplano e rádio, cabelos e vestidos compridos, e não dança o ―charleston‖ nem pinta os lábios, muito ciosa do seu pundonor, tomou- o das nossas mãos e rasgou. Logo...‖.

literária, impossibilitando a concretização de qualquer análise que se pretendesse global, os registros da crítica um pouco mais próximos do nosso tempo comprovam que essa dificuldade, se não persistiu, aumentou. Lúcia Miguel Pereira falou especialmente em nome da prosa: [...] Juntem-se ainda a fraca repercussão das obras literárias em nossa terra, o mau negócio que representa aqui a profissão de escritor e as dificuldades com que por muito tempo lutaram os autores para serem impressos, e ver-se-á que muito há a esperar de gente que venceu tantos obstáculos. A crítica pode ser severa, mas a história tem muitos nomes a registrar. A verdade é que, a despeito de tudo, escreveu-se bastante durante os cinquenta anos que aqui se examinam [1870-1920]. Entre romancistas, contistas e dramaturgos, foram, para este ensaio, levantados, nas histórias literárias, dicionários biobibliográficos, artigos de críticos e catálogos de livrarias, mais de duzentos nomes. Destes, a maioria está até hoje completamente esquecida, sendo que, de vários autores, só mesmo nomes e os títulos das obras puderam ser encontrados, visto como nem na Biblioteca Nacional nem nos livreiros antiquários existem os seus livros; de outros só se acham alguns trabalhos, nem sempre os mais elogiados no momento; ainda outros, finalmente, deixam de ser mencionados, porque nem o mais largo relativismo histórico lhes daria lugar na literatura. (PEREIRA, 1957, p. 23) E Brito Broca falou em nome da literatura em geral do período15:

Já tenho aludido aqui à dificuldade de se historiar o período da Literatura brasileira que vai da proclamação da República ao surto modernista, pelos obstáculos que nos impedem de conhecer, em toda extensão, a obra de muitos autores representativos desse período. A época marcou, por assim dizer, o desenvolvimento da imprensa diária, entre nós, facultando aos escritores um

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A mesma citação serve de epígrafe ao livro A sátira do parnaso, de Álvaro Santos Simões Júnior.

terreno propício à atividade literária. Embora os jornais pagassem pouco, sempre pagavam alguma coisa, ou pelo menos, facultavam meios para se evidenciarem as aptidões e o talento. O jornal tornou-se, então, para a Literatura brasileira, o mesmo que gora o teatro no período de 1850 a 1889.

Ora, esse desenvolvimento do Jornalismo não coincidiu com a expansão do comércio editorial. O escritor expandia-se largamente pelas colunas da imprensa, mas não obtinha editor senão para uma pequena parte de tão ampla produção. Daí o material imenso que continua desconhecido, soterrado por assim dizer nos jornais e que não pode, entretanto, deixar de ser computado na apreciação justa de muitos escritores. Por outro lado, faziam-se edições pequenas – ás vezes, às expensas do autor – de obras logo esgotadas, até agora não reeditadas, e dificílimas de serem encontradas mesmo na Biblioteca Nacional.

Isso explica muitas deficiências e lacunas de nossos críticos, mesmo os mais inteligentes, no julgamento do referido período, tornando imensas as dificuldades dos que se abalançarem a historiá- lo. [...] (BROCA, 1991, p. 202)

Diria Amadeu Amaral que esse volume todo de livros é pouco em face do que deveria ser, pois ―saturados de poesia, saturados de arte vivem os povos de larga e intensa cultura, as nacionalidades potentes e expansivas que nós procuramos imitar‖ (AMARAL, 1924, p. 24). Mas em pelo menos uma coisa concordavam ele e os críticos: não há quem leia; o Brasil não sabe ler.

E não só eles. Por ocasião da morte de Machado de Assis, no fim do mês de setembro, em 1908, acompanhada da morte de Artur de Azevedo, um fervoroso leitor de ―O País‖ (RJ), identificando-se como Sergio Rud, decide-se por recorrer à imprensa com o propósito de comunicar à Academia Brasileira de Letras ―umas tantas ideias‖ suas – ―Se eles indagarem dos motivos que determinaram V. Ex. a aceitar essa profissão pseudo-postal, diga-lhes, de minha parte, que nós ansiamos aqui por aliviar uma formidável pressão intelectual e moral.‖ (RUD, 1908, p.5). Assumindo não ser literato – ―sei ler mal e escrever pior‖ –, comovido com a morte de dois grandes escritores, e no desejo de alertar

os imortais para ―catástrofes vindouras‖, relembrando uma palestra de Artur de Azevedo sobre Machado de Assis, Rud põe-se a estudar a ―triste situação dos literatos brasileiros‖:

Creia-me, porém, V. Ex.: eu gosto dos literatos. Refleti, por isso, maduramente, na supra- mencionada Palestra. Excogitei, quanto m‘o permitiu o fósforo cerebral, em meios de suavizar as amarguras dos escritores nacionais. (RUD, 1908, p. 5).

Na patriótica declaração ―sobre assuntos vários‖, publicada em 16 de novembro de 190816, sob o título de ―Cartas de longe‖, Sergio Rud assegura que o mal de que padecem os escritores – a falta de dinheiro –, e o abarrotamento de livros não vendidos (―Machado de Assis cedeu a propriedade literária de suas obras por dez réis de mel coado‖), não são culpa do governo, como o colocou Artur na dita palestra17, e sim culpa ―nossa‖:

[...] o brasileiro tem muito em gastar o cobre e pouco cobre para gastar. Custa-lhe reservar umas economias mensais para a verba da leitura [...] nós, povinho, não temos os olhos esbugalhados para a ciência nem para a arte. (RUD, 1908, p. 5) Tamanha foi a perspicácia do leitor, que nem os jornais, nos quais se liam unicamente romancistas franceses18, escaparam de suas farpas. A primeira das soluções propostas por ele foi que nos ―rodapés dos jornais radiassem as estatísticas da casa‖. A segunda, que os editores se empenhassem em anunciar ―largamente‖ seus produtos – ―Ganhar dinheiro, escrevendo, é, afora a excelência do produto, uma função comercial análoga a vender manteiga mineira ou banha de Porto Alegre. Requer uma operação econômica importante: obter mercado.‖ (RUD,

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―Anno XXV – N.° 8810‖. 17

―Artur só topou um recurso: apelou para o governo. Ora, veja, V. Ex., para quem foi o dramaturgo apelar!‖ (RUD, 1908, p. 5).

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―Abrimos os jornais, corremos aos folhetins e devoramos como iguarias o Xavier de Montepin, o Ponson de Terrail, e agora, no País, o Julio Lermina. Esses romancistas são franceses, V. Ex. e seus colegas proclamam que são de primeira água. Nós só conhecemos a eles; quando poupamos uns cinco mil réis magros, compramos os livros deles.‖ (RUD, 1908, p. 5).

1908, p. 5). E como terceira, dado que a educação do povo, que seria ―o meio infalível de aumentar o consumo‖, é um meio ―longo, fastidioso e de êxito problemático‖, e que a língua portuguesa é uma ―camisa de força‖, pois não há, fora do Brasil, quem a decifre, Sergio Rud lança a proposta de que os ―imortais‖ se ocupassem de traduzir o que fosse aqui produzido19, e atirassem, depois, as traduções ao ―mercado externo‖ ―com foguetório, botando por cima da capa: obra premiada e publicada

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