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Poeticamente o homem habita?

O pensamento de Heidegger sobre a arte se assenta basicamente sobre alguns desdobramentos de seu conceito de Dasein – em que, com efeito, se erige quase todo seu pensamento – e de algumas notas advindas dos seus estudos de Nietzsche e Hölderlin. Suas teses se manifestam como uma espécie de combate à Estética e, para isso, são arroladas hipóteses, sob a forma de fatos, das quais nos aproveitaremos, explicitando os nossos pontos de divergência, para criar pontos de associação entre alguns elementos pelos quais passamos no capítulo anterior de maneira panorâmica.

A visão heideggeriana da cultura grega aponta para uma ausência de reflexão estética na fase que chama de grande arte helênica, ou seja, o período dos pré-socráticos, em que um “saber claro” ainda se sobrelevava sobre a filosofia propriamente dita: “quando, cessado o esplendor da arte grega, ela se torna problemática, e já então apenas provedora de vivências, é que a reflexão estética paralela começa.” (NUNES, 2012, p. 239). O princípio da reflexão estética coincidiria com as reflexões de Platão e Aristóteles sobre a arte, mais especificamente a duplicidade matéria- forma, derivada do eidos de Platão. O próximo aspecto é o pensamento moderno que direciona a precedência dos estados interiores em relação à realidade exterior do sujeito. Essa configuração deixa espaço para uma ciência no plano da sensibilidade equivalente ao que a Lógica é no plano do pensamento racional, e esse será ocupado pela Estética, desenvolvida como disciplina a partir de Baumgarten e de Winckelmann, mas já germinativa na Grécia Clássica. Daí, que a antiga destinação da arte se perdeu e ela teria se convertido em pouco mais que um luxo, algo circunscrito à esfera do gosto de determinada camada social, i.e., um objeto estético. Abrigado no seio da cultura, esse homem de gosto terá a Estética – como disciplina – e a História da Arte mais para o cultivo do espírito que na própria arte. Por fim, essa morte da arte coincidiria com a crise

de valores de seu tempo e seu espaço não poderia ser ocupado satisfatoriamente pela religião ou mesmo pela filosofia. A salvação possível, então, é a destruição da estética.

Tudo isso está ligado à visão de Heidegger de que “a língua é a poesia originária em que um povo poetiza (dichten) o ser. Inversamente vale: a grande poesia pela qual um povo entra na história inicia a configuração de sua língua.” (NUNES, 2012, p. 248). O poético, para Heidegger, é algo não exatamente coincidente com a Literatura, é a propriedade que a arte tem de criar um espaço pelo qual um objeto aparece ou manifesta a variedade de relações com o mundo (HEIDEGGER, 2010b, p. 178). É uma aproximação, ao mesmo tempo que uma extração, da natureza. A linguagem poética é a tomada de medida para tudo o que o homem constrói no habitar o mundo. Somente pela linguagem poética se estabelece, no sentido de dimensionar, o espaço entre mortais e imortais, céu e terra.

O fundamental dessa visão é que a linguagem poética de Heidegger é aquela que faz comunhão entre mythos e phýsis. A tensão entre estas duas partes resultaria no lógos. Seu encantamento pela Grécia pré-socrática deriva da crença em que aquele era o cenário dessa comunhão. Consoante observamos no último capítulo, os primeiros testemunhos de literatura de que dispomos já apontam para certo grau de reflexão sobre si mesmos e sobre a beleza como uma de suas propriedades. Destarte, mesmo não se tratando de um aedo, Aquiles se dedica à lira, cantando a fama dos homens e alegrando o próprio espírito (Il. IX, 186-9). Assim, também Hesíodo dá às Musas o dom das mentiras misturadas à verdade, para “esquecimento” dos males, não apenas o “dar a ouvir revelações”. Se aceitarmos o que parece mais seguro sobre os estudos homéricos, a ancestralidade de várias de suas estruturas, há de se pensar que a época idealizada por Heidegger – se existira – é bem anterior aos pré-socráticos. Sentimo-nos mais seguros de pensar, com Brandão (1985), que há um momento em que mythos, “palavra acontecedora”, corresponde ao logos, “deitar à vista”. Mas corresponder não se confunde com ser o mesmo, respondere cum é apresentar-se juntamente, afiançar com. O percurso que fizemos no capítulo anterior nos mostra como palavra e discurso vivem um recorrente conflito em que as posições de um ou outro influem decisivamente na percepção de mundo de cada era.

Desde a Idade Moderna, o pensamento calcado no conhecimento racionalista e experimental se fortalece até que, às portas do século XX, a linguagem (palavra) fica praticamente relegada à mediação transparente do pensamento (discurso). As velhas disciplinas

humanísticas definham e dão passagem às ciências: as Humanidades devem ceder às Ciências Humanas.

No século XIX, a retórica se reduz, de uma técnica plena do discurso, a um fragmento da elocutio definido pelo que Barthes (2001) chamou de “fúria taxonômica”. Mais que uma redução de âmbito, a transformação da retórica é uma adaptação à exigência do pensamento racionalista:

Por certo (esta é pelo menos uma explicação estrutural) porque a retórica tenta codificar a palavra (e não mais a língua), quer dizer, o espaço mesmo onde, em princípio, o código cessa. Esse problema foi visto por Saussure: que fazer com os combinados estáveis de palavras, com os sintagmas fixos, que participam ao mesmo tempo da língua e da fala, da estrutura e da combinação? É na medida que a retórica prefigurou uma linguística da fala (diferente da estatística), o que é uma contradição dos termos, que ela se esfalfou para conter numa rede cada vez mais fina “as maneiras de falar”, o que era pretender dominar o indominável. (BARTHES, 2001, p. 91, grifo do autor).

O beco sem saída da retórica não foi a busca de uma linguística da fala, a qual Labov provou ser possível, mas algo que o próprio Barthes (2001, p. 93) aponta sem, contudo, levar a reflexões posteriores: a classificação dessa retórica é puramente operacional, a ausência de uma ferramenta indutiva nos termos de sua própria metalinguagem não permite que a retórica se constitua como ciência plena, apenas como uma “teoria de nível baixo”, i.e., uma teoria que permite novas generalizações, detém alcance técnico, mas é incapaz de revelar-se em seu funcionamento. A retórica, num revés do que se passara no início da era cristã, pode apenas buscar uma sobrevivência no campo da literatura (como no manual de Heinrich Lausberg que se fez célebre no Brasil), último bastião do humanismo.

Os estudos sobre a literatura também se encontravam num impasse ao fim do século XIX. O avanço do pensamento científico obrigava os estudos literários a procurar novas opções às questões éticas, retóricas e filológicas em que se concentravam. Perante as exigências, oscilavam entre duas frentes: “de um lado, contra a perspectiva humanística, especializada, mas não científica; do outro contra o impressionismo crítico, não especializado, mas também não científico” (ACÍZELO, 1987, p. 59).

Vimos que a Idade Moderna assistira ao surgimento do “homem de gosto”, uma figura que se distinguia da tradição poético-retórica através de um refúgio à subjetividade como última instância possível da representação e o juízo estético como a possibilidade de percepção da arte. Paulatinamente, havia um desmoronamento da velha poética e um deslocamento para o gosto do leitor e para a originalidade do artista, chegando-se, inclusive, à negação da possibilidade de

estudos sobre a literatura, se não a sua própria prática. Mas mesmo este ponto de vista é posto em xeque, no início do século XX, quando Duchamp desloca um objeto qualquer ao Theatrum Pictoricum, confundindo e pervertendo as categorias de autenticidade, originalidade e reprodutibilidade62.

Coagidos pelo novo pensamento dedutivo experimental e não encontrando o porto seguro entre o humanismo de origem clássica e a estética moderna, os estudos literários precisam buscar sua transformação, também, em ciência. Dois modelos prevalecem. Primeiro, os que tentavam recuperar os estudos advindos do humanismo, “revistos” sob o prisma de ciência:

Os velhos métodos clássicos da retórica, da poética e da métrica têm sido – e devem continuar a ser – revistos e reafirmados em termos modernos. Novos métodos são introduzidos, com base no conspecto de maior gama de formas da literatura moderna. O método da explication des textes, em França; na Alemanha, as análises formais baseadas no paralelismo com as belas-artes, cultivadas por Oskar Walzel; e, especialmente, o brilhante movimento dos formalistas russos e dos seus sequazes tchecoslovacos e polacos. (WELLEK; WARREN, 1971, p. 174).

Essa é a perspectiva que também se apropriará dos estudos de Saussure e que entenderá o texto como uma estrutura puramente verbal, deixando de lado a integridade que era princípio do humanismo.

A segunda perspectiva é a que busca a aproximação com os métodos, procedimentos e até objetos de outras ciências mais consolidadas como tal, como a Psicologia, a Sociologia, a História e, até, ciências mais distantes, como a Biologia e a Fisiologia.

Eis que se configura a Ciência da Literatura, que ficou mais conhecida como Teoria da Literatura pelo clássico de Wellek e Warren, que, apesar de ainda vigorosa no século XXI, após apresentar diversos desdobramentos ao longo do século XX – Estruturalismo, Estética da Recepção, Pós-Estruturalismo, Análise Sociológica... – já apresenta algumas mudanças advindas da Filosofia e das Ciências Sociais, cujos desdobramentos nossa relação com o objeto e os objetivos deste trabalho não permitem debater.

Chegamos ao ponto em que esperamos ter explicitado que as tentativas do pensamento articular-se com a literatura são apenas configurações históricas, qualquer pretensão à verdade

62 “O readymade assistido de Duchamp provocou muita polêmica, colocando também em questão os espaços

legitimadores da arte. Assim surge o artista questionador que não se limita mais ao saber fazer, à técnica, em que suas obras não possibilitam o julgamento no sentido kantiano do gosto, ou seja, o artista dessacraliza o objeto artístico ao mesmo tempo que imprime uma diferença ao objeto comum ao destacá-lo.” (PESCUMA. 2013: p.43)

está fadada à contestação à medida que as próprias relações entre o pensamento humano e o mundo são, também, transitórias.

Não coadunamos com a visão heideggeriana de que o advento do gosto tenha representado a decadência do poder da arte. Preferimos entender, concordando com Agamben (2012) – a partir de suas leituras de Benjamin sobre aura, rastro e colecionismo –, que a arte continua sendo elemento fundamental para o dimensionamento do homem em seu existir, contudo, sua percepção e seu valor não são invariáveis: desde a comunhão com a phýsis até a presença de algo ausente no tempo e no espaço, a arte já representou diferentes espaços do habitar do homem, e a aceitação da mutabilidade desse habitar é a rejeição de qualquer julgamento evolutivo ou involutivo sobre o papel da arte ao longo dos tempos.