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Uma vida cantada me rodeia. Mas pergunto-me até onde alcança o canto que me envolve e me protege. (poema 25, estrofe 1)

O caminho que estamos percorrendo na busca pelo des-velamento do Ser assemelha-se à estrutura dos poemas cecilianos em Solombra: a terza-rima, ainda que sem o uso de rimas. A origem desse tipo de composição é remota e alguns acreditam ter sido nos sonetos. Dante Alighieri (1265-1321) divulgou a terza-rima ao escrever a Divina Comédia composta toda em tercetos. Depois dele, Petrarca (1304-1374) e Bocaccio (1313-1375) fizeram uso da mesma estrutura, que chegou a Portugal somente no século seguinte, sendo empregada por Camões, Antonio Ferreira e Diogo Bernardes, principalmente. A partir daí foi esquecida por duzentos anos, ressurgindo no século 19 por românticos como Byron, Schelley e Schlegel. No Brasil foi utilizada em todas as “escolas”, do Barroco ao Parnasianismo. Podemos encontrar Cecília fazendo uso da terza-rima, obedecendo a estrutura das rimas, no 1º “Cenário” de Romanceiro da Inconfidência, consideradas por Mário Faustino como “a melhor terza rima escrita em língua portuguesa.”280

Em Solombra, porém, Cecília Meireles emprega a estrutura de tercetos com a qual Dante compôs a Divina Comédia, mas de uma forma diferenciada, atualizada. A poetisa não se preocupa, por exemplo, com as intrincadas rimas que conferiam movimento aos tercetos, todos formados por decassílabos, na obra dantesca. Os poemas de Solombra apresentam variação de medidas: polimétricos e irregulares, sendo a maior parte dos versos decassílabos ou alexandrinos. Isso revela uma predileção pela metrificação clássica e parnasiana mesclada com a assimetria própria da contemporaneidade. O “fecho de ouro”, que aparece no final de cada canto em Dante – e é sempre decassílabo –, em Cecília Meireles, geralmente, apresenta 9 ou 10 sílabas poéticas, colocado no término de cada poema, muito embora, como afirmado na “Introdução” deste trabalho, não possamos considerar em todos os poemas que se trataria de um “fecho de ouro” da mesma forma que encontrado em Dante.

280 FAUSTINO, Mário, 1930-1962. De Anchieta aos concretos. (org. Maria Eugenia Boaventura]. São Paulo:

As rimas, matematicamente construídas na obra de Dante, em que o verso central de uma estrofe controla as rimas dos dois versos marginais da estrofe seguinte, nos sugeriram o movimento sempre para frente, sem possibilidade de retrocesso. Essa característica se mantém em Solombra, não pelo uso das rimas, mas pelo fato de que, figurativamente, os poemas refletem a existência humana, um caminho sempre dirigido ao futuro e sem volta.

Em sua obra poética, Cecília Meireles costuma usar os recursos de formas tradicionais, mesclando-os com formas poéticas que não são as habituais de seu tempo. Assim sente-se à vontade para trabalhar com, versos livres, rondós, canções, baladas, apropriando-se de tais estruturas, às vezes de acordo com o “original”, às vezes impondo sua pessoalidade, como é o caso da obra que ora analisamos.

Cecília ficou caracterizada em nosso país, durante o modernismo, “como a contemplativa, a evanescente, a desligada, e, por isso, numa situação atípica.”281 Se o

“compromisso” do movimento modernista brasileiro fora a afirmação nacionalista com consequente rompimento do passado e assunção de um compromisso de inovação – o que pode indicar certa tendência à objetividade e negação da subjetividade (espiritualidade) –, a autora realmente nele não se inclui. Nesse caso, a retração do movimento indica que essa “[...] posição diferenciada de Cecília em relação ao modernismo pode ser decorrência de um excessivo fechamento deste projeto, incapaz de integrar o espiritualismo, o tradicionalismo e o universalismo da obra ceciliana.”282

Nesse sentido é que Cecília é moderna sem ter sido, propriamente, Modernista, ao menos não restrita ao que a corrente vanguardista do movimento em 22 representava, sobretudo quanto ao rompimento com o passadismo e academicismo. Ou seja, ainda que a escritora manifestasse traços tradicionais em seus poemas, fossem eles simbolistas, decadentistas, barrocos, clássicos, românticos ou parnasianos, não era um simples passadismo: “A palavra-chave do discurso da tradição não é voltar ao passado (no sentido de retorno contemplativo), mas re-ler a tradição – re-novar, ‘ler o novo no velho’. É, pois, mais uma aquisição que uma herança”, completa Margarida M. Gouveia.283 Do mesmo modo, a escritora, que transitava nas mais diversas estruturas poéticas, também soube aproveitar de sua contemporaneidade, o Modernismo, a liberdade formal, o emprego de versos livres e a pontuação subjetiva, entre outros elementos. No dizer de Leila Gouvêa, a poetisa:

281 MARQUES, Maria Helena D. A obra de Cecília Meireles e o projeto modernista. Revista de Cultura Vozes,

ano 6, volume LXVI, Jan/Fev 1972, n. 1, p. 53.

282 Id. Ibid., p. 55.

283 GOUVEIA, Margarida M. Cecília Meireles: Uma poética do eterno instante. Portugal: Imprensa Nacional

Absorveu (filtrou, talvez seja o verbo apropriado) lentamente algumas das propostas de nosso modernismo, como a simplicidade vocabular e sintática, a linguagem anti-retórica e clean. Talvez foi o poeta do período modernista de maior contenção e economia verbal.284

Sob esta ótica poderíamos ponderar com Leila Gouvêa que Cecília é uma escritora modernista, com raízes no Simbolismo e com liberdade para aproveitar-se de todos os recursos de que a literatura dispunha, fossem eles tradicionais ou contemporâneos. Tal liberdade é, em boa parte, tributária do próprio Modernismo, fato que está presente em toda a obra poética da autora:

Esse derradeiro canto espectral da morte, último livro publicado em vida da autora e em época já bem distante do modernismo (1963) – em que retoma o ritmo inaugural do alexandrino, afastado antes em quase toda a obra de maturidade –,traz, a austera depuração formal de uma linguagem poética que caminhou lentamente da dicção neo-simbolista da obra imatura para a economia verbal e o despojamento modernos que emergem desde Viagem. Limpeza da forma que, afora certo acento inegavelmente classicizante, penso ser, em parte, também tributária do modernismo.”285

Assim, torna-se difícil enquadrá-la dentro de cânones fixos: parnasiana, simbolista, moderna ou neossimbolista. Cecília não se assenta numa época e sempre surpreende, pois traçou um caminho pessoal. Assim a poetisa permanece “independente”, é eclética na escolha de suas fontes, buscando nelas instrumentos para se expressar; aproveita os recursos sonoros e sintáticos das palavras; impera nela não o dizer claro, mas a linguagem ambígua, o que significa dizer que sua poesia apresenta múltiplos sentidos e está longe de se esgotar nos parâmetros de um movimento literário.

Mas voltemos a Solombra, obra inserida na “grande tradição da lírica moderna”, de acordo com Hansen286 para analisarmos os seus versos. Nela, além do uso dos tercetos, há

encadeamentos em todos os poemas, que praticamente ligam os versos, fechando o raciocínio em cada um deles. Há vezes em que um verso apresenta ideia completa, mas em muitos outros o sentido se dilui em várias linhas do poema. O movimento que o encadeamento sugere é a tensão, pois ocorre um choque entre o som, que se mostra completo, e a organização

284 GOUVÊA, Leila V. B. A capitania poética de Cecília Meireles. Cult – Revista Brasileira de Literatura.

São Paulo: Lemos Editorial e Gráficos Ltda, ano 5, Out 2001, p. 46.

285 GOUVÊA, Leila V. B. Pensamento e “lirismo puro” na poesia de Cecília Meireles. São Paulo: EdUSP,

2008, p. 214. (Ensaios de Cultura, 34).

sintática e o sentido, que permanecem incompletos, e se estendem para os demais versos. Em Solombra os enjambements são bastante evidentes:

Caminho pelo acaso dos meus muros, buscando a explicação de meus segredos. E apenas vejo mãos de brando aceno, olhos com jaspes frágeis de distância, lábios em que a palavra se interrompe: medusas da alta noite e espumas breves. Uma parábola invisível sabe

o rumo sossegado e vitorioso

em que minha alma, tão desconhecida, vai ficando sem mim, livre em delícia, como um vento que os ares não fabricam. Solidão, solidão e amor completo. Êxtase longo de ilusão nenhuma.

É perceptível a continuação de sentido no verso seguinte ou, neste caso, nos seguintes, na busca por atingir uma imagética mais sofisticada ou um maior efeito emocional, o que poderia, também, ser entendido como um traço de modernidade. A relação entre os níveis da sintaxe e de som acabam por gerar ambiguidade de sentidos e colabora para intensificar a ambivalência, a obscuridade e o caráter enigmático tão peculiar em Solombra. A poesia desta obra ceciliana não é de fácil acesso, apesar da força lírica e da atração que exerce em seus leitores: “a poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida”, segundo Eliot287, o que significa, em Cecília Meireles, afirmar que a “magia” que os versos exercem no leitor são um trampolim para o que há de ser compreendido neles depois. A tensão que há nas palavras tem o que dizer e, apesar do aparente absurdo e do hermetismo dos versos, admite uma série de interpretações. Hugo Friedrich esclarece que a poesia moderna permite a pluralidade da significação e concilia os paradoxos:

[...] traços de origem arcaica, mística e oculta, contrastam com a aguda intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade daquilo que é expresso, o arredondamento linguístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento estilístico.288

287 ELIOT, Thomas S. apud FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna - da metade do século XIX a

meados do século XX. Tradução de Marise M. Curioni e Dora F. da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 15.

288 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna - da metade do século XIX a meados do século XX.

A tensão dos encadeamentos alia-se à estrutura que, acreditamos, é utilizada por Cecília: a terza-rima, e que se torna bastante significativa. Além de mostrar o próprio caminho da poetisa, ganha dimensão universal, referindo-se a todo existente humano. Ser/ estar-no-mundo exige esforço constante de decifração, já que o Ser acaba se revelando e se escondendo ao mesmo tempo. Por isso, ainda que em Solombra os versos sejam irregulares, fazemos uso do esquema de rimas da terza-rima para entendermos o que se daria na obra: nela, se damos um passo atrás – anamnese – teremos que dar dois passos à frente em seguida. O futuro, que passa rapidamente pelo presente, continuaria relacionando-se ao passado, que seria retomado, como sugere a rima, como re-nascimento. O poeta, em constante tensão, se encontra “numa íntima relação com o tempo, já que [...] apreende o que lhe foi enviado (o que era), estabelece isso solidamente (o que é), para que seja possível um morar futuro (o que será). Tudo isso se dá num mesmo instante.”289

Verificamos a estreita ligação entre a composição dos poemas e a temporalidade de Solombra, que exploramos no capítulo 2.2. Os êxtases do tempo estão tão entrelaçados que é, praticamente, impossível modificar uma peça sem que haja reflexo nas demais. Portanto, na luta constante entre passado e futuro é que se estabelecerá a poesia, o que não significa dizer que ela pertença exclusivamente ao presente; é atemporal: “Se o poeta é o homem cuja sensibilidade é tal a ponto de ser capaz de captar o originário, pela mesma sua sensibilidade, é aquele que, na expressão nietzschiana, ‘tem saudade do futuro’. Futuro que pressente, que lhe está presente, que prediz.”290

A poesia de Solombra, assim como a transcendência, nasce da historicidade do ser-aí. É sendo que se tornará possível a alétheia, ou seja, a verdade do Ser. Heidegger assegura a mesma ideia quando em Carta sobre o Humanismo escreve: “Suposto que, no porvir, o homem possa pensar a Verdade do Ser, então êle pensará a partir da ec-sistência. Pois é ec- sistindo que ele está no destino do Ser.”291 Portanto, uma das missões do ente é, na existência, procurar a relação com o Ser e a sua revelação, como lemos nos versos do poema 5, estrofe 2: “Ir falando contigo, e não ver mundo ou gente.” A partir da relação com o Ser a existência se clareia.

289 WERLE, Marco A. Poesia e Pensamento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: Ed. UNESP, 2005, p. 84. 290 DETTONI, José. Heidegger: o papel do poeta. Revista Reflexão. n. 55/56, Jan/Ago 1993, Pontifícia

Universidade Católica, Instituto de Filosofia, Campinas, p.162. (grifo do autor).

291 HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o Humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Edições

Na obra ceciliana em que a procura de aproximação com o Outro perpassa a maior parte dos poemas, tal relacionamento é ansiosamente desejado. No diálogo é que se daria a abertura para o Ser, mas será que ele efetivamente acontece? Será que o Ser também se comunica ou é só o Dasein quem fala? Ou será que o que acontece é o contrário?

Ao analisarmos muitos dos versos da obra em que a comunicação ocorre, a fala do interlocutor do eu-lírico não é evidente. Ao que parece, o Ser está em contato, mas não se manifesta com clareza ao Dasein. Todavia, sabemos que a busca está acontecendo, como nos versos abaixo, em que o eu-lírico pede ao Ser que se revele em sua existência: “Pousa/ teu nome aqui [...] no ar que frequento, de caminhos extasiados [...].” (poema 1, estrofes 3, 4) “Pousar” é o verbo usado pelo eu-lírico e soa como um pedido para que o Ser aproxime-se, que deixe a distância e hospede-se, ainda que por breve tempo, na morada do Dasein, a terra. No primeiro poema de Viagem, intitulado Epigrama nº 1, lemos versos que dialogam com esses de Solombra:

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis uma sonora ou silenciosa canção:

flor do espírito, desinteressada e efêmera. Por ela, os homens te conhecerão: por ela, os tempos versáteis saberão

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente, quando por ele andou teu coração.292

O nome – verso do poema 1 de Solombra – indica a própria essência da divindade, e evocá-lo é pedir pela própria manifestação do Ser. O eu-lírico sabe da inefabilidade do Ser, por isso apenas o ato de pousar o nome já lhe bastaria como presença. Em outros versos, como os do poema 5, em que o sujeito lírico diz: Falar contigo. Andar lentamente falando/ [...] Dizer com claridade o que existe em segredo./ Ir falando contigo, retoma-se pensamento semelhante: de que a decifração do Ser acontece enquanto se está no mundo, daí o porquê do verbo falar estar no gerúndio (falando), para indicar a simultaneidade do tempo fluindo com a ação. Isso não significa que o ato transcorra no presente, mas pode indicar o desejo do eu- lírico de que assim aconteça. Em outros versos usa-se o infinitivo dos verbos (falar, andar, dizer, ir), que são todos substanciáveis e exercem a função de sujeito, mas um sujeito impessoal. A referência do praticante da ação são todos os viventes e não apenas o eu-lírico. A busca da relação com o Ser é permeada pelo falar, pelo dizer, pela palavra.

Os poemas de Solombra dão vazão a uma possível aproximação entre o Ser e o Dasein. Mas a manifestação parece nunca se efetivar por completo e o diálogo não acontecer, ao menos não na forma tradicional. Contudo, na poesia, para Heidegger, o poeta deve “captar” os acenos dados na linguagem do Ser, bem como ouvir a voz da humanidade. O poeta é o entre. O “dizer” do Ser, que habita a linguagem, não se deixa pensar nem experimentar, porém. É um dizer silencioso que, portanto, só é ouvido no silêncio.

A linguagem do Ser é original, fundadora, diz o pensador alemão. Exprime o Ser, mostra-o, revela-o, bem como traz para a luz todas as coisas. A linguagem humana pressupõe o ouvir e o dizer do Dasein é um responder ao mostrar-se do Ser. Assim, o poeta deve permanecer aberto ao acontecer do Ser, sua alétheia, cuja verdade nunca será revelada totalmente e, deste modo, o que permanecerá do fazer poético será o não-dito, o mistério.

A linguagem, que fala à medida que diz, cuida para que nossa fala, escutando o não dito, corresponda ao seu dito. Assim também o silêncio, que se costuma considerar como origem da fala, é prontamente um corresponder. O silêncio corresponde à consonância do quieto, ela mesma sem som, inerente à saga do dizer, essa que mostra e apropria,[...] de modo correspondente, a linguagem diz sempre de acordo com a maneira em que o acontecimento apropriador como tal se encobre ou se retrai.293

Porém, conclui Heidegger, a “linguagem é, no entanto, monólogo. Isso diz duas coisas: que só a linguagem é o que propriamente fala e que a linguagem fala solitariamente. Solitário pode ser apenas quem não é sozinho, quer dizer, não separado, não isolado, sem relação.”294 A conclusão a que chegamos, após estas considerações é a de que há uma

linguagem pela qual o Ser se deixa mostrar, sempre permeada pelo silêncio. Entre Dasein-eu- lírico e Ser o diálogo-alethéia não se efetiva, mas mostra um ponto de contato possível dentro da linguagem poética, que é justamente onde o dizer silencioso do Ser e o ouvir do Dasein- poeta podem se encontrar. Assim sendo, se “poetar é relacionar-se com o Ser, assumir a relação”295, o eu-lírico-poeta de Solombra vivencia esse papel constantemente.

Neste âmbito, as palavras do poema número um, primeiro verso, são esclarecedoras: “Vens sobre noites sempre”. Ou seja, o Ser vem. Vem nos momentos de escuridão, que identificamos nos capítulos anteriores como aqueles em que a angústia é mais forte e é preciso

293 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis/

Bragança Paulista: Editora Vozes/ Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 211. Saga significa mostrar, deixar aparecer, dar a ver e a compreender.

294 Id. Ibid., p. 214.

295 BEAINI, Thais C. Heidegger: Arte como cultivo do inaparente. São Paulo: Universidade do Estado de São

fazer escolhas caso se queira a transcendência. É nessas horas que o Ser se manifesta, para depois se ocultar novamente. E o poeta vence a noite e espera pela manhã. Ou seja, paradoxalmente, a manifestação dá-se na noite, enquanto ao dia é reservada a verdadeira sombra, a dura existência. Dizia o romântico Novalis: “A noite tornou-se o portentoso âmago das revelações – para onde os deuses retornaram e adormeceram.”296 Em Solombra a constante tensão entre imagens diurnas e noturnas se verifica no uso de antíteses. Enquanto as imagens do dia sugerem a fuga para regiões celestiais, indicadas por símbolos de ascensão (torres, voo, sol), as imagens da noite buscam pela luz e indicariam a queda. A noite poderá sugerir ainda a entrada no segredo, no desconhecido e, nesse mundo, as trevas se converteriam e em possibilidade de se perceber a luminosidade.

Como as “palavras” do Ser não esclarecem totalmente as questões do eu-lírico, mas conservam sempre a nebulosidade, o diálogo parece tornar-se impossível, incompreensível e as palavras insuficientes. Assim, em vários versos de Solombra o tema da fragilidade das palavras é colocado. Como exemplos, transcrevemos:

Qualquer palavra que te diga é sem sentido. (poema 3, estrofe 3) As palavras estão com seus pulsos imóveis. (poema 15, estrofe 1) Fala impossível. Que conversam, na onda insone,

as formações de prata e sal que o oceano tece? Que comunicam, seiva a seiva, as primaveras?

Palavras gastas de Morte e Amor. (poema 16, estrofes 4, 5)

Há um lábio sobre a noite: um lábio sem palavra. (poema 21, estrofe 1)

A partir destes exemplos, entendemos porque os críticos afirmam a impossibilidade do diálogo com o Outro em Solombra, como é o caso de Darcy Damasceno que, em estudo de 1967, diz:

De longo rastreio nesta poesia, o tema da precariedade da palavra (“Qualquer palavra que te diga é sem sentido”) transparece a cada passo, descobrindo, consequentemente, a impossibilidade do diálogo – “frívolas colunas/ de alegorias vagamente erguidas.297

O estudo crítico de Solombra feito por Hansen associa a impossibilidade do dizer à própria existência vã:

296 apud GOMES, Álvaro C. O simbolismo. São Paulo: Ática, 1994, p. 15. Sobre a noite cf. p. 39, 51, 119, 172. 297 DAMASCENO, Darcy. Cecília Meireles: o mundo contemplado. Rio de Janeiro: Orfeu, 1967, p. 139.

[...] “festas humanas/ onde as palavras são conchas secas,/ bradando a vida, a vida, a vida, e a vida sendo apenas cinza.” Aqui aparece pela primeira vez o motivo antigo e bíblico, que será repetido em outros poemas, o motivo da vanidade e da impossibilidade do dizer: as palavras, conchas secas, esvaziadas de conteúdo vital, mas que bradam a vida, como o eco de um mar absoluto e ausente num caracol. Aqui, roçando o sublime, o motivo elegíaco da vanidade do esforço humano e da morte se insinua – “sendo apenas cinza. E sendo apenas longe.”298

Ana Maria Lisboa de Mello, por sua vez, ameniza, de certo modo, as considerações acerca da impossibilidade de comunicar-se com o outro. Sua opinião é de que “em muitos poemas, a impossibilidade de comunicação profunda com outro ser humano transmuta-se na crença de que o ser idealizado se encontra em lugares distantes, geralmente no plano transcendente.”299 A constatação final dos estudiosos é que a não possibilidade de comunicar- se leva ao isolamento o eu-lírico, chegando até o alheamento.

Quanto ao diálogo com os demais entes do mundo verificamos, sobretudo no capítulo

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