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Política social nos anos Lula e Dilma e expressões da “questão social”

CAPÍTULO 2 – ESTADO, CAPITALISMO DEPENDENTE E POLÍTICA SOCIAL NA

2.1. Gênese e desenvolvimento capitalista na realidade brasileira

2.2.3. Política social nos anos Lula e Dilma e expressões da “questão social”

Os governos da coalizão liderada pelo PT40, sob o suposto neodesenvolvimentismo, procuraram de todas as formas se distanciarem dos governos neoliberais anteriores no que concerne à política social, entretanto suas políticas de inclusão social baseadas na expansão no mercado de consumo interno e na focalização nos extremamente pobres colocam em cheque essa ruptura. Se compararmos aos governos anteriores, tais políticas tiveram, é fato, uma dimensão ampliada, contudo, ainda estiveram subordinadas às políticas macroeconômicas do “modelo Liberal Periférico” (Gonçalves, 2013) consolidado neste período e aos ditames do mercado.

40 Esse período se divide da seguinte forma: 1º governo Lula de 2003 a 2006; 2º governo Lula de 2007 a 2010; 1º

governo Dilma de 2011 a 2014; 2º governo Dilma de 2015 a 2016 – o último governo Dilma foi interrompido por um processo de impeachment que culminou com sua deposição em agosto de 2016, cabe ressaltar que consideramos esse processo um golpe parlamentar com o apoio da grande mídia e do judiciário, pois não houve comprovadamente crime de responsabilidade nos termos da Constituição por parte da Presidente Dilma. Um aprofundamento sobre o tema é possível no livro “Por que gritamos golpe”, organizado por Andre Singer e publicado pela editora Boitempo em 2016.

93 No primeiro mandato de Lula na Presidência da República, apesar das expectativas da massa de brasileiros que o elegeram e esperavam mudanças econômicas, sociais e políticas na condução do Estado, direcionando-o para as necessidades do trabalhador em detrimento do capital, não houve grandes alterações com os fundamentos das políticas neoliberais que guiaram os governos anteriores nos pós-Constituição de 1988. Na verdade, o governo Lula “não só continuou com a política de ajuste macroeconômico do governo FHC, como a intensificou” (PEREIRA, 2012, p. 744).

Conforme Pereira (2012, p. 745), a manutenção da macroeconomia do governo FHC, a minirreforma tributária que elevou as receitas da união e a contrarreforma da previdência, entre outras, repercutiram

[...] desfavoravelmente nas políticas sociais e nas condições de vida da classe trabalhadora (e dos aposentados) porque, junto com essas medidas, a concentração de riquezas manteve-se intocada; ou melhor, a hegemonia do capital financeiro, o monopólio da terra e os fundos privados de pensão foram preservados e incentivados. E, atendendo pressões transnacionais, o governo adotou políticas de liberação dos transgênicos e de formação de superávit primário para remunerar capitais financeiros.

Assim, não há como afirmar que o governo Lula realizou políticas sociais significativas nesse período, apesar de ter iniciado e se empenhado em desenvolver um programa que erradicasse a fome no Brasil (programa Fome Zero, cujo carro chefe se tornaria o Bolsa Família) e de ter conseguido um expressivo crescimento econômico (PEREIRA, 2012).

No Segundo mandato de Lula, com um crescimento econômico garantido devido à expansão do ciclo das commodities, à ampliação dos parceiros comerciais e ao mercado interno (via expansão do crédito e microcrédito, das desonerações fiscais, políticas de fomento ao empreendedorismo etc.) houve expressiva melhora nos indicadores sociais relacionados à pobreza, emprego, renda e educação. A título de exemplo, cito: retirou 28 milhões de pessoas da pobreza, levou 36 milhões à classe média, reduziu para 8,5 % o número de brasileiros em estado de pobreza absoluta ou miséria, a taxa de desemprego caiu entre 2002 e 2010 de 12% para 5,7%, o rendimento das pessoas ocupadas aumentou em 35% em termos reais e, em 2009, o governo atingiu o recorde histórico de 59% dos trabalhadores com carteira assinada (PEREIRA, 2012, p. 745).

Entretanto, o paradoxo do governo Lula e que obscurece o suposto neodesenvolvimentismo é: ao mesmo tempo em que o governo melhorou a condição social de

94 muitos brasileiros em extrema pobreza, beneficiou muito mais a remuneração do capital industrial, do agronegócio e, principalmente, do setor financeiro, dominante no Brasil e no mundo. Dados apontados por Mota (2013, p. 9) - e que corroboram com essa assertiva - dizem que o Brasil que “sedia o maior programa de transferência de rendas da América Latina, o qual atende 26,4% das famílias da população, com um gasto de 0,47% do PIB, enquanto a dívida pública é de R$ 1,514 trilhão, o equivalente a 35,7% do PIB; já os juros da dívida pública consumiram em 2011, 5,72% do PIB”. Destarte, “se a pobreza absoluta ou extrema diminuiu [em seu governo], a desigualdade não sofreu decréscimos; e se a pobreza absoluta ou extrema preocupou o governo, o combate à concentração de riqueza não foi alvo dessa preocupação. E o país continua injusto” (PEREIRA, 2012, p. 746).

Portanto, é importante ressaltar que a melhora no quadro social brasileiro, ao longo do século XXI, ocorreu para Pfeifer (2014, p. 758) por meio da chamada “inclusão social via consumo de massa”, compreendido pelo neodesenvolvimentistas da seguinte forma: “a exclusão é entendida por essa corrente como exclusão do mercado de consumo, portanto, seu oposto, a inclusão, deve ser a inclusão no mercado de consumo. O cidadão não é portador de direitos, mas é consumidor e proprietário”. Essa questão é evidenciada por Pochmann [um dos principais neodesenvolvimentistas] quando coloca que o “processo de expansão do bem-estar são expressões do padrão de inclusão possibilitado pela ampliação do consumo” (2012, p. 1). Segundo Pfeifer, essa realidade retrata a essência da política social brasileira, na qual

[...] o acesso aos bens e serviços sociais considerados no âmbito das necessidades humanas e no escopo da cidadania, vem sendo possibilitado não mais pela operacionalização direta do Estado na sua provisão — dentro da esfera pública estatal e de gratuidade, caracterizado por um Estado provedor —, mas sim, verifica- se que as políticas públicas sociais passam a viabilizar o acesso aos bens e serviços sociais utilizando-se dos recursos públicos para a compra de vagas, de bens e de serviços oferecidos e comercializados pelo setor privado: temos aí a fundação de um novo Estado, que poderíamos chamar de Estado mediador consumidor. Verifica-se, assim, uma tendência geral no neodesenvolvimentismo: o Estado é o grande consumidor dos bens e serviços sociais mercantilizados (2014, p. 757).

Neste contexto, a política social tem se tornado mais focalizada nos extremamente pobres e com características de responsabilização do indivíduo. Sobre essas questões, Pereira (2012) afirma que vem prevalecendo certas tendências na política social contemporânea, como: a monetarização da política social que se expressa ao fortalecer o mérito individual do pobre de conseguir, por meio do mercado, superar suas necessidades, sem a concretização substantiva dos direitos socias lhes garantidos constitucionalmente. Isso ocorre, por exemplo, transferindo-lhe dinheiro ao invés de serviços sociais, emprego e salários dignos e

95 transformando-os em meros consumidores alienados (da realidade social concreta e das possibilidades de superação), com efeitos de endividamentos crescentes das famílias pobres brasileiras e aumento da inadimplência; a laborização precária da política social que ocorre na ativação para o trabalho precário e informal, por meio, principalmente, da assistência social, afastando-o assim da proteção ao trabalho; a descidadanização da política social de forma a não relacionar as políticas socias aos direitos de cidadania que deveriam lhe ser garantidos pelo Estado, transferindo a superação da sua condição social para o foro individual, isso ocorre vis-à-vis numa realidade de trabalho precário, flexível, mal pago e desprotegido.

É necessário ressaltar, também, que esse formato de políticas satisfaz em última instância, como coloca Pfeifer (2014, p. 764),

[...] interesses de acumulação do capital, por um lado, e promove uma cultura empreendedora que responsabiliza indivíduos e famílias pelo acesso mercantil de seu bem-estar social, trazendo novamente a questão social para o foro privado e tentando desvinculá-la de sua raiz estrutural comum, isto é, ao processo de produção e reprodução do capital e suas formas de exploração e concentração.

Todo esse contexto ocorre sob a pecha neodesenvolvimentista dos governos Lula e Dilma, que recorrem a estratégias – apesar do discurso de prioridade no social – que retiram recursos da área social para pagamento da dívida (por exemplo, a DRU), da dicotomia entre crescimento econômico e desenvolvimento social ou, na melhor das hipóteses, submetem a social a um pujante desenvolvimento econômico [impossível num longo prazo na realidade do capitalismo brasileiro], marcando a tragédia social brasileira.

Todo esse processo de contrarreforma do Estado brasileiro, de financeirização da economia brasileira e de focalização e descentralização41 das políticas sociais, alinhadas com a perspectiva neoliberal estão no bojo do aprofundamento da “questão social” no Brasil de hoje, assim como, no mundo.

A hipótese é que, na raiz da “questão social” na atualidade, encontram-se políticas governamentais favorecedoras da esfera financeira e do grande capital produtivo – das instituições, mercados financeiros e empresas multinacionais, enquanto um conjunto de forças que captura o Estado, as empresas nacionais e o conjunto das classes e grupos sociais, as quais passam a assumir os ônus das chamadas “exigências dos mercados”. Existe uma estreita relação entre a responsabilidade dos governos nos campos monetário e financeiro e a liberdade dada aos movimentos do capital transnacional para atuar, no país, sem regulamentações e controles, transferindo lucros e salários oriundos da produção para se valorizarem na esfera

41 Entendemos a descentralização “não como partilhamento de poder entre esferas públicas, mas como mera

transferência de responsabilidades para entes da federação ou para instituições privadas e novas modalidades jurídico-institucionais correlatas, componente fundamental da ‘reforma’ e das orientações dos organismos internacionais para a proteção social” (BEHRING E BOSCHETTI, 2011, p.156)

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financeira. Esse processo redimensiona a “questão social” na cena contemporânea, radicalizando as suas múltiplas manifestações (IAMAMOTO, 2013, p. 332).

Para elucidar o grau da radicalização a que a autora se refere, apresentamos alguns indicadores sociais que ilustram as expressões da “questão social” brasileira. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2014), a renda per capita mensal domiciliar no Brasil era de R$ 1.052. A título de comparação, destaca-se que a média da renda líquida ajustada disponível por família per capita nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de US$ 25.908,00 por ano42, o que corresponderia a aproximadamente R$ 8.117 mensais43. Entretanto, ao considerar apenas o 1% mais rico da população brasileira, encontramos uma renda per capita mensal de R$ 12.298,69.

De acordo com a PNAD 2013 (IBGE, 2014), o analfabetismo atinge mais de 13 milhões de brasileiros a partir de 15 anos, a maior parte localizada na faixa etária acima de 25 anos e mais da metade na região Nordeste. No Brasil, os adultos com mais de 25 anos tem em média 7,7 anos de estudo, ao passo que na OCDE esse período aproxima-se de 17,7 anos. Conforme o IBGE, em 2014 mais de 7 milhões de brasileiros foram classificados na categoria de população desocupada, 67% localizados nas regiões não metropolitanas44.

Olhando para o público infanto-juvenil, temos o seguinte: o trabalho infantil ainda é uma realidade para meio milhão de crianças entre 5 e 13 anos e que as mulheres recebem um rendimento 30% inferior aos homens, desempenhando a mesma função (PNAD, 2013). Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (IBGE, 2016) mostram que em 2015 9,0% dos escolares do 9º ano do ensino fundamental já usaram drogas ilícitas (maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança-perfume, ecstasy, oxy etc), sendo esse percentual de 9,5% entre os meninos e de 8,5% entre as meninas. Quando considerada a dependência administrativa da escola, os alunos de escolas públicas (9,3%) referiram com mais frequência à experimentação de drogas ilícitas do que àqueles de escolas privadas (6,8%). No quesito violência, o Mapa da Violência45 (2014) demonstra que, em 2012, ocorreram 30.072 homicídios de jovens que o Datasus registrou para esse ano, totalizando 53,4% do total de homicídios do país, sendo que o contingente estimado dessa população nesse mesmo ano foi de 52,2 milhões de acordo com

42 Disponível em: http://www.oecdbetterlifeindex.org/pt/quesitos/income-pt/. Acesso em: 26 nov. 2015.

43 Valor referente à cotação cambial de 26 de novembro de 2015, com dólar comercial correspondendo a 3,764

reais.

44 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/. Acesso em: 26 nov. 2015.

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Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil. Disponível em www.juventude.gov.br/juventudeviva. Acesso em: 12 abr. 2017.

97 o IBGE o que representando 26,9% do total da população. Esses dados indicam que a vitimização juvenil alcança proporções extremamente preocupantes. (ver gráfico abaixo).

Gráfico 1: Participação (%) dos homicídios juvenis no total de homicídios. Brasil, 1980 a 2012.

Fonte: Mapa da Violência (2014).

Assim, compreendemos, apesar de certos avanços, os anos Lula e Dilma ainda estão aquém da expectativa de grande parte da sociedade brasileira, dada as expressões da “questão social” contemporâneas destacadas (para apresentar algumas), que ao mesmo tempo convive com as imensas dificuldades históricas e sociais particulares do Brasil e uma avalanche neoliberal que tomou de assalto nas últimas décadas o fundo público e as políticas sociais inviabilizando ou, ao menos, mitigando qualquer tentativa de transformação estrutural do drama social brasileiro.

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CAPÍTULO 3 – ESPORTE E POLÍTICA PÚBLICA: CRÍTICA A FORMA E AO