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Políticas de desenvolvimento rural: entre a governança reflexiva e a governança

CAPÍTULO 5 SANTA CATARINA, SISTEMAS ALIMENTARES

5.1 Políticas de desenvolvimento rural: entre a governança reflexiva e a governança

A industrialização brasileira nasceu após a Revolução de 1930, a partir de acordos entre o novo governo e os cafeicultores durante a crise do setor, que, naquele momento, constituía a base da economia brasileira. Os acordos envolviam garantia de preços ao café e incentivo à transferência de capital da produção cafeeira para a indústria, mantendo nas mãos dos

159 proprietários de terras (alguns dos quais eram proprietários de terras e proprietários de indústrias) o domínio sobre as decisões políticas centrais do país (Furtado, 2005).

No entanto, o avanço da industrialização enfrentara alguns obstáculos, como a necessidade de ampliação da produção de matérias-primas, de produção de alimentos mais baratos para atender aos trabalhadores da indústria nascente e à modernização da produção. No decorrer das décadas seguintes, surgem soluções distintas para tais obstáculos que disputam espaço político: por um lado, a reforma agrária, a diversificação da produção e a distribuição de renda (para enfrentar a fome, a desnutrição e a pobreza); por outro, a intensificação do modelo, que incluía grandes propriedades monoculturais (Prado Júnior, 1979). Entre 1930 e 1964, apesar de intenso embate entre as soluções apresentadas acima, não houve mudanças no modelo agrícola, que se manteve baseado na exportação de commodities adotado no Brasil desde a chegada dos portugueses, e continuava em prática.

A partir da tomada do poder pelos militares, o cenário de direcionamento da produção agrícola para exportação, com base na produção em grande escala em grandes extensões de terra, não muda (Prado Júnior, 1979). O que muda é a decisão pela modernização agrícola baseada no pacote tecnológico originário dos Estados Unidos. Este pacote incluía a adoção de agrotóxicos, de fertilizantes químicos, de sementes híbridas e de mecanização, o que foi implementado na década de 1960, com base em políticas públicas, ou seja, com subsídio do governo (Mazoyer and Roudart, 2010a).

O contexto, muito simplificado em três curtos parágrafos, serve para pontuar o continuum existente entre as políticas públicas de incentivo à produção agrícola voltada à exportação e às propriedades agrícolas de grandes extensões. Ainda há, no Brasil, uma concentração de crédito, seguro agrícola e isenções tributárias, entre outros incentivos públicos, que atingem uma parcela limitada de agricultores. No entanto, mesmo com dinâmica não muito distinta da anterior, afastada dos temas centrais do governo do período, a discussão sobre reforma agrária continuou. No final da década de 1970, essa discussão, juntamente com a demanda por políticas públicas para os pequenos produtores, fortalece-se a partir de movimentos sociais, que se tornam mais combativos, mesmo com a repressão da ditadura (Grisa and Schneider, 2015b).

A redemocratização, ao longo dos anos 1980, permitiu que parte das demandas desses movimentos fossem inseridas na Constituição de 1988. Delgado (1994, p. 14) argumenta, diante do ‘vácuo institucional’ criado com a redemocratização, ter sido possível a conquista de espaço pelos citados movimentos. No entanto, o Estado não dispunha de instituições públicas de crédito, pesquisa, extensão e comércio com metodologias de serviço para lidar com as

160 demandas dos pequenos agricultores. Naquele momento, surge um embate entre as vitórias dos movimentos sociais, no sentido de transformar suas demandas em direitos constitucionais, e as possibilidades de pôr em prática tais direitos, face à incapacidade do Estado de responder às demandas.

Os avanços dos movimentos tiveram como obstáculo os objetivos dos primeiros governos democraticamente eleitos no pós-ditadura militar, centrados na abertura de mercado e em uma política de austeridade, pautada na privatização de empresas públicas. No que diz respeito à agricultura, o início dos anos 1990 foi marcado pela liberalização comercial e pelo desmonte da intervenção estatal; pela criação do Mercosul em 1991, o que afetava especialmente pequenos produtores dos estados do sul do Brasil, em função dificuldade de competir com os países vizinhos; pelo Plano Real, que fez cair a renda real do setor agrícola abruptamente em 1995 e, finalmente, pela valorização da taxa de câmbio, pela grande liquidez internacional e pelas elevadas taxas de juros domésticas, que favoreceram o aumento das importações agrícolas no Brasil (Delgado, 2012; Mattei, 2014).

O cenário era desfavorável à agricultura brasileira como um todo, mas especialmente desfavorável aos pequenos agricultores, que, no início dos 1990, passaram a se autodenominar agricultores familiares (Favareto, 2006). Neste contexto, mobilizações que demandavam políticas públicas específicas para esse segmento e reforma agrária ganhavam força (Grisa and Schneider, 2015a). O governo, a fim de manter a ordem social e uma certa influência sobre os sindicatos de trabalhadores rurais, acabou respondendo às manifestações com o lançamento da primeira política pública com foco na agricultura familiar: o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (Mattei, 2006).

Nos anos 2000, a direção política do governo muda e as políticas para agricultores familiares passam a incluir a construção de mercados, principalmente por meio de compras públicas, ligadas à segurança alimentar e à sustentabilidade ambiental. Tal direcionamento é interrompido em função de ações disruptivas, com o retorno, a partir de 2017, de políticas de austeridade e enfraquecimento das políticas públicas voltadas à agricultura familiar (Vasconcelos et al., 2019).

Em Santa Catarina, os efeitos, em extensão nacional, desses movimentos incidem diretamente no comportamento da agropecuária catarinense ao longo do tempo, e em parte o condicionam. Isto ocorre porque os agricultores do estado, por serem majoritariamente familiares, são particularmente afetados. No início da década de 1990, o “complexo agroindustrial catarinense foi duramente castigado por uma reestruturação patrimonial em favor de multinacionais”, que veio com a abertura econômica (Goularti Filho, 2001) e mudanças nas

161 regras de comercialização. As mudanças, com insuficiente apoio do estado aos agricultores familiares, os fragilizaram (Grisa and Schneider, 2015a). O resultado foi o avanço da agricultura empresarial e das agroindústrias, que passaram a influenciar crescentemente a dinâmica agrícola catarinense e provocaram uma transformação estrutural no espaço rural. A agricultura familiar, base da agricultura de Santa Catarina, passou a perder espaço na produção de culturas como arroz, feijão, milho, suínos e aves, e o estado passou a conviver com concentração de produção, redução do número de produtores de várias cadeias produtivas, redução da população rural, dificuldade de sucessão na agricultura familiar e maior controle dos segmentos a jusante e a montante da produção (Ferrari and Marcondes, 2015; Wilkinson, 2008).

O que diferencia Santa Catarina e o Brasil é, primeiro, a adoção de mudanças mais profundas em termos de processo produtivo, perceptível na tardia adoção da modernização agrícola, em função das condições particulares do estado em relação a aspectos edafoclimáticos, de solo acidentado e de um histórico de ocupação em estabelecimentos de menor porte. Segundo, no que se refere a políticas públicas, é o fato de que as políticas estaduais, mesmo seguindo uma lógica semelhante à das políticas nacionais, são capazes de sinalizar os pontos prioritários de ação estatal. As políticas federais e estaduais que impactam a agricultura catarinense, com recorte na agricultura familiar, tiveram sua relevância corroborada por estudos acadêmicos e técnicos, que podem ser observados nas políticas agrícolas federais e nas políticas agrícolas estaduais e municipais.

Quanto às políticas agrícolas federais, foram aplicadas nos seguintes setores:

crédito: Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) e Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf);

seguro rural: Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) e Seguro da Agricultura Familiar (Seaf);

instrumentos de apoio à comercialização: Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), estoques reguladores, Centrais de Abastecimento (Ceasas) e compras institucionais (PAA e Pnae);

serviço de inspeção federal do Mapa.

Quanto às políticas agrícolas estaduais e municipais, concentraram-se nos seguintes programas: subvenção à produção: programas de milho e calcário (Terra Boa);

162 defesa sanitária vegetal e animal, centrado da Companhia Integrada de Desenvolvimento

Agrícola de Santa Catarina (Cidasc).

Os programas de erradicação das doenças sanitárias em suínos, aves e bovinos, desenvolvidos pela Cidasc - que acabaram por viabilizar todo o programa de integração vertical catarinense voltado à exportação - é que dão o tom à agroindústria catarinense e constituem um dos pontos que sinalizam a diferenciação entre políticas federais e estaduais (Elias, Lima and Ortelan, 2018).

Em síntese, por um lado, Santa Catarina reage e interage com as políticas públicas nacionais de maneira distinta, em função se suas características inerentes. Por outro lado, os atores-chave, dentro do estado, moldam as políticas públicas, buscando uma autonomia frente ao governo federal, mesmo que adotando políticas públicas de direcionamento muito semelhante.

O histórico de tais políticas é bastante complexo. Segue múltiplas influências. Não segue uma trajetória linear; pelo contrário, é coberto de sobressaltos e norteado por diferentes formas de governança. Como resultado, o que há é um amplo grau de incerteza sobre os caminhos a serem trilhados por tais políticas.

No próximo item, será apresentada a abordagem da dinâmica inerente ao processo político (Pida).