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1.3. Classificações de políticas públicas: políticas para mulheres, recorte de gênero e

1.3.2 Políticas públicas e feminização da pobreza

Essa constatação – da centralidade da “variável” conhecimento - entretanto nunca passou despercebida entre pesquisadoras(es) e formuladoras(es) de políticas da área de gênero e, também, entre as militantes. Outro motivo mais contemporâneo e diretamente relacionado ao interesse deste trabalho, como observa observa Novellino (2004:2) é que “à projeção e implementação de políticas públicas de gênero que tenham como público alvo mulheres vivendo em situação de pobreza, antecede uma justificativa empiricamente comprovada”. Essa justificativa consagrou-se, nesse caso, no conceito de feminização da pobreza.

Maria Sallet Ferreira Novellino (2004) apresentou na ABEP16 um interessante

trabalho sobre os estudos dos últimos vinte e cinco anos da produção acadêmica sobre o marco de feminização da pobreza.

A discussão sobre mulheres e pobreza ganha espaço na agenda acadêmica e nos organismos internacionais a partir dos processos de reestruturação produtiva e de novos modelos de Estado com as reformas liberalizantes dos anos 1970. Considerado primeiro estudo sobre a “feminização da pobreza”, o artigo The feminization of poverty: women, work and welfare foi elaborado pela norte americana Diane Pearce que o publica, em 1978, na revista Urban and Social Change Review. A autora parte do pressuposto de que a pobreza estava se tornando um problema feminino e de que ela se concretizaria nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Sua conclusão é de que a pobreza feminina e a pobreza masculina são de naturezas diferentes, uma vez que para as mulheres, no caso das mais pobres e chefes de família, a principal questão é a dificuldade de acesso ao mercado de trabalho.

Teria ocorrido, a partir de então, segundo esta autora, um espalhamento do aporte teórico da feminização da pobreza com sua incorporação pelos organismos internacionais para legitimar a focalização dos programas sociais.

Novellino (2004) aponta a carência de dados empíricos em um dos documentos que embasa mundialmente esta discussão:

De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano 1995, “A pobreza tem o rosto de uma mulher –de 1.3 bilhão de pessoas na pobreza, 70% são mulheres.” Esta proporção, no entanto, é questionada por Marcoux (1998:131 apud Novellino) o qual alega que nenhum estudo científico é jamais citado para documentar essa porcentagem. Se 70% dos pobres é composto por mulheres, então teríamos a proporção de 4.3 mulheres pobres para cada homem pobre. Marcoux (1998) considera esta proporção improvável, pois ela indicaria um desequilíbrio entre a população masculina e a feminina jamais observado em nenhum país ou região e assinala que a estrutura de idade dos pobres é similar à da população como um todo

16 O tema do trabalho feminino, entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, aparece nos foros

da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, no departamento de pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Em 1979 é criado o GT Grupo de Trabalho Mulher na Força de Trabalho na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, a ANPOCS e, nos anos posteriores nas Associações de Estudos Populacionais (ABEP) e de Antropologia (ABA), (Costa e Bruschini, 1992). Estas iniciativas demonstram a tentativa de institucionalização, a partir da existência de um conjunto de pesquisas e de pesquisadoras e da necessidade de elaborar balanços críticos sobre essa produção.

(Marcoux, 1998:131). O fato é que, sendo ou não real este processo de feminização da pobreza, muitos estudos vêm sendo feitos nos últimos 25 anos, os quais tomam ora como pressuposto ora como hipótese a sua existência. Quando esses estudos conseguem provar a veracidade do processo, eles passam a ser elementos justificadores da adoção de políticas públicas voltadas especificamente para mulheres pobres. (Novellino, 2004:2)

A primeira metodologia para estudar o fenômeno, proposta por Pearce (1978 apud Novellino, 2004), consistia em examinar as diferentes fontes de renda (salário, pensão e benefícios sociais) procurando explicitar quantitativamente que as famílias chefiadas por mulheres são mais duramente atingidas pela pobreza que aquelas chefiadas por homens. Estes estudos operam no modelo de família com um pai provedor e partem do pressuposto da maior dificuldade e precariedade das mulheres em acessar o mercado de trabalho. Com o desenvolvimento de outros estudos, estes passam a incluir o consumo familiar e condições de saúde e educação da prole. A inclusão destes indicadores começa a mostrar que as famílias monoparentais femininas apresentavam maior risco de transmissão intergeracional da pobreza comparativamente à família nuclear (com um casal) pobre. Pearce (1978 apud Novellino, 2004) analisou o contexto dos Estados Unidos na tentativa de verificar se as políticas públicas auxiliavam na superação da extrema pobreza - olhando a inserção econômica das mulheres chefes de família -, ou se contribuía para perpetuá-las. Nas próximas décadas, os estudos sobre feminização da pobreza vão ser ampliados com apoio de organismos internacionais (e, muitas vezes contestados) nos países da América Latina, Caribe, África e Ásia, principalmente com o objetivo de pautar, nestes países, ações públicas de combate à pobreza.

Bridge (2001 apud Sorj e Fontes, 2008:203) sintetiza que o conceito de feminização da pobreza significa “que a incidência da pobreza entre as mulheres é maior que os homens, que a pobreza delas é mais severa que a deles, e que a tendência à maior pobreza das mulheres está associada ao crescimento das famílias monoparentais femininas”.

Também em 1978, no Brasil, Carmem Barroso apresentou na ABEP o trabalho “Sozinhas ou mal acompanhadas – a situação das mulheres chefes de família” e associa o aumento de famílias chefiadas por mulheres com o aumento da situação de mulheres

em situação de pobreza. Este fenômeno é identificado pela autora como especificamente urbano e menos devido à imigração e mais às transformações familiares (aumento do número de divórcios e de mães solteiras). Embora não use o termo 'feminização da pobreza', suas conclusões para o contexto brasileiro se aproximam daquelas encontradas por Pearce (1978 apud Novellino, 2004): a dificuldade das mulheres chefes de família em função da sua menor e/ou pior participação na força de trabalho.

Lavinas (1996) e Castro (1989) estão entre o grupo de autoras brasileiras que discordam do enquadramento de feminização da pobreza para justificar políticas de redução da pobreza focalizadas em mulheres chefes de família. Para Castro (1989), que analisa a participação das mulheres chefes no mercado de trabalho - cujos dados são comparados com os referentes às esposas e às filhas bem como com aqueles dos homens chefes, esposos e filhos -, conclui: as famílias monoparentais chefiadas por homens ou por mulheres sofrem igualmente os efeitos da pobreza, elas indicam que há outros constrangimentos relacionados à classe e à raça/etnia centrais na questão da pobreza e de baixos níveis de renda. Lefaucher (1988 apud Sorj e Fontes, 2008) também argumenta que não se deve explicar o fenômeno de pauperização das famílias pelo único efeito da monoparentalidade, e propõe que idade, etnia, tempo de duração da conjugalidade, entre outros fatores, também influenciam as condições de vida das famílias monoparentais.

Dentre os(as) autores(as) que atribuem a outros fatores a pobreza das famílias monoparentais, Medeiros e Costa (2006 apud Sorj e Fontes, 2008), a partir da comparação de oito países da América Latina, concluíram que a quantidade de filhos está mais associada aos níveis de pobreza das famílias do que propriamente o arranjo familiar.

Lavinas (1996), a partir da análise dos dados da PNAD de 1990, percebe uma ampliação do desnível de renda entre as mulheres e afirma que numericamente a pobreza feminina não tem maior expressão que a masculina (Novellino, 2004:6). Em estudo posterior, Lavinas e Nicoll (2006) analisando comparativamente os dados da PNAD, de 2001 a 2004, e seguindo a metodologia de desagregar as fontes de renda das famílias - concluem que os ganhos das mulheres pobres (dividem os extratos de renda por quintil) no mercado de trabalho se constituem a principal fonte de acesso à renda e

estão direta e proporcionalmente relacionados à autonomia destas em termos de tempo. Convém reproduzir a conclusão dos autores a fim de desfazer estereótipos da imagem da 'mulher pobre' que já em 2004 estavam bastante modificados:

a) a quase supressão dos diferenciais de gênero no tocante à renda do trabalho nos decis inferiores da distribuição de renda indica que, apesar da ausência de políticas públicas conseqüentes, houve esforços extraordinários por parte das mulheres pobres para melhorar seu desempenho no mercado de trabalho. Isso se deu em âmbito exclusivamente privado.

b) A presença de crianças, em um contexto em que a taxa de fecundidade já é baixa, não inviabiliza o desempenho das mulheres mais pobres no mercado de trabalho, pelo contrário. Mas tal rendimento é bem maior quando dispõem de creches e pré-escola para seus filhos pequenos aumentando ainda mais quando possuem uma máquina de lavar. Isso significa que ao reduzir a carga dos afazeres domésticos melhora a possibilidade de sua inserção no mercado de trabalho. Autonomia é bom para elevar salários.

c) Da mesma maneira, na posição de pessoa de referência na família as mulheres auferem nas suas atividades rendimentos mais altos que na condição de cônjuge. De novo, trata-se de uma questão de autonomia que é, sem dúvida, o que mais restringe as oportunidades de ampliação dos rendimentos ocupacionais femininos. d) Finalmente, a presença de um inativo do sexo feminino na família também contribui para elevar os rendimentos do trabalho das mulheres mais pobres. De novo, o ponto diz respeito a mais autonomia, no plano da restrição orçamentária e também do uso do tempo (restrição temporal).

e) Os fatores que elevam os rendimentos do trabalho das mulheres pobres estão fortemente correlacionados com graus de autonomia maiores no seu cotidiano de trabalhadora. (Lavinas e Nicoll, 2006:60-61)

Especificamente em relação às famílias monoparentais, mostram que os poucos lares chefiados por homens encontram-se em situação pior comparativamente a todos os outros tipo de família, nucleares ou com chefia de mulher sem cônjuge. Ao avaliarem os programas de transferência de renda encontram problemas de focalização, uma vez que os e as chefes de família (e famílias monoparentais, em geral, são sempre mais pobres que as famílias biparentais/nucleares) têm maior dificuldade de acessar os benefícios. Esta constatação dialoga com os achados recentes do trabalho de Bichir (2011:19) sobre

os esforços do PBF para alcançar uma boa focalização e a necessidade de ampliar sua cobertura.

A medição da pobreza das mulheres somente pela renda é vista como insuficiente em meados dos anos 1990, quando passam a ser inseridas as variáveis de consumo familiar. Novellino é bastante crítica às políticas embasadas por esses estudos afirmando que nenhuma leva em conta o princípio mais importante, para essa autora, na elaboração de uma política de gênero: o de empoderamento. Para ela, a maior parte destes programas e políticas se volta para a sobrevivência de “mulheres pobres e seus filhos”, ou seja, assumem a maternidade como tarefa mais importante da mulher, reduzindo sua contribuição aos papéis reprodutivos desempenhados na família. E, quando existe alguma previsão de capacitação para geração de renda, esta ocorre em áreas tradicionalmente femininas, o que aumentaria a segregação ocupacional. Em outras palavras, tais políticas além de serem elaboradas a partir de um viés maternalista, limitando a atuação das mulheres às tarefas reprodutivas, não preveem mecanismos de liberação de tempo (o que melhoraria suas chances no mercado de trabalho) e, em sua maioria, não pensam caminhos de inserção em atividades produtivas; quando o fazem é de maneira que tende a reforçar os estereótipos de gênero e não ampliar horizontes de possibilidades para as mulheres saírem da pobreza e conquistarem autonomia.

A conclusão de Lavinas e Nicoll (2006) é semelhante às críticas de Novellino, segundo ele, os múltiplos programas focalizados acabaram “fazendo das mulheres pobres a expressão mais completa da vulnerabilidade social”, completam os autores: “pouco tendo sido feito para promover [...] o potencial de trabalho das mulheres mais carentes, através da provisão de serviços de substituição do tempo de trabalho doméstico feminino, tão indispensável” (Lavinas e Nicoll, 2006:41).

Segundo os modelos apresentados nas seções anteriores sobre as políticas de bem estar social, autoras e autores têm demonstrado que a disponibilidade de serviços públicos que substituem parte do trabalho doméstico e/ou de cuidados desempenha papel fundamental tanto numa alocação do tempo menos penosa para as mulheres, quanto esta disponibilidade é em grande parte possibilitadora de ingressos – inclusive em melhores padrões – no mercado de trabalho.

Em estudo mais recente sobre a feminização da pobreza, Sorj e Fontes (2008) propõe uma revisão da relação entre família, pobreza e vulnerabilidade das crianças – que estão imbricados na noção de transmissão intergeracional da pobreza. É a partir da disseminação do conceito de feminização da pobreza que as famílias monoparentais femininas passaram a ser vistas como responsáveis pela transmissão intergeracional da pobreza que afeta as oportunidades de vida das crianças. Outro vetor importante ainda não mencionado por outras autoras no Brasil sobre a disseminação de políticas focalizadas em mulheres pobres – de família monoparental e com filhos - é identificado por Sorj e Fontes (2008:188): a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente na década de 1990. Neste arcabouço jurídico há afirmação expressa que as famílias monoparentais femininas oferecem condições “extremamente adversas” para o bom desenvolvimento das crianças. Esta assertiva espalhou-se no discurso público e midiático sob a pecha de “famílias desestruturadas”, como observa Sorj, “com forte conteúdo moralizante e estigmatizante”.

A atualidade do debate é justificado por Sorj pelo aumento crescente da quantidade desse tipo de família (12% em 1980; 18% em 2006 segundo as autoras) e 37,5% em 2011 de lares com a pessoa de referência do sexo feminino, de acordo com a PNAD17 e pela presença desse tipo familiar nos programas de combate à pobreza que

privilegiam as famílias chefiadas por mulheres.

Ao analisar a PNAD de 2005 – e como mostram diversos outros estudos18 - o

diferencial de renda das famílias monoparentais femininas é evidentemente menor em comparação às outras famílias. Fato atribuídos às maiores dificuldades e precariedades de inserção das mulheres no mercado de trabalho. Porém, como mencionada, desde a década de 1990' percebeu-se a limitação de medir a pobreza somente a partir da renda, desse modo, o exercício de Sorj e Fontes, tendo em vista a questão da transmissão intergeracional da pobreza e as condições de vida das crianças destas famílias, consistiu em comparar os lares de famílias nucleares (com cônjuges) com os de família monoparental feminina do Sudeste e do Nordeste olhando indicadores de condições de

17 Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, 2013, p. 31. Compilam dados da PNAD de 2011.

<http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2014/01/RASEAM_interativo.pdf> Acessado em 21.02.2014.

domicílio, nível de escolaridade dos(as) filhos(as) e presença de trabalho infantil. A conclusão é peremptória: as distâncias de renda das famílias monoparentais chefiadas por mulheres em relação às famílias compostas (nuclear) não se verificam na maior parte dos indicadores das condições domiciliares; os indicadores de educação das crianças são melhores e o trabalho infantil é menor (sendo o trabalho infantil maior de todos os arranjos, nas famílias compostas chefiadas por homens). As autoras concluem que talvez o foco das políticas em famílias monoparentais femininas esteja deixando de fora uma gama de crianças em situação de vulnerabilidade social - fazem a ressalva que não estão sugerindo que essas políticas devem priorizar outros arranjos familiares, mas “se o objetivo da política é o de reduzir a transmissão intergeracional da pobreza, então todas as crianças em situação de vulnerabilidade social deveriam ser contempladas independente do arranjo familiar” (Sorj e Fontes, 2008:204).

As autoras citam Chant (2007 apud Sorj e Fontes, 2008) que introduz em sua análise sobre a pobreza a perspectiva das relações de gênero e com isso:

baseada em evidências de vários países, a autora contesta a visão de que famílias chefiadas por mulheres acumulam desvantagens superiores às famílias compostas por casais. […]. A chefia feminina pode ser entendida como um meio de as mulheres ganharem maior controle sobre suas vidas e de conseguirem assegurar melhores condições de vida aos seus descendentes”. (Sorj e Fontes, 2008:204)

Estudos como os de Sorj e Fontes (2008) corroboram a proposta de Chant apresentando elementos empíricos que, não só jogam por terra a visão estigmatizadora de piores condições dos filhos em famílias monoparentais chefiadas por mulheres, como carregam um subtexto de que a via da autonomia das mulheres pode ser mais “eficiente” inclusive quando se requer romper com o ciclo da transmissão intergeracional da pobreza olhando o bem estar das crianças.

Bruschini, Ardaillon e Unbehaum (1998) também são outras autoras críticas ao frame de feminização da pobreza. Estas autoras expõem a crítica do movimento feminista sobre a associação da palavra 'feminização' à palavra 'pobreza', ambas de conotação depreciativa, e propõe substituir o uso da expressão por 'pauperização das mulheres', numa acepção que talvez indique melhor o cruel processo de

empobrecimento que afeta de maneira específica as mulheres. Essa observação é feita por Farah (2004) em seu artigo sobre a incorporação da pauta de gênero nas políticas públicas no Brasil que será visto em detalhes na próxima seção deste capítulo.

1.3.3. A incorporação da pauta de gênero nas políticas públicas no

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