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Polifonia e discurso literário

CAPÍTULO I – APONTAMENTOS PARA UM ESTUDO DO DISCURSO

1.7. Polifonia e discurso literário

O conceito de polifonia foi amplamente estudado e (re)formulado por diferentes autores. No entanto, ele foi cunhado por Bakhtin (2010) ao problematizar o romance dostoievskiano, em que o termo se refere à multiplicidade de vozes que se entrecruzam de maneira plenivalente e equipolente. O primeiro vocábulo diz respeito às “[...] outras vozes do discurso numa relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo [do

romance]” (BAKHTIN, 2010, p. 4 – grifo nosso), e o segundo concerne às “[...] vozes que

participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetivam, isto é, não perdem o seu ser como vozes e consciências autônomas” (op. cit., p. 5 – grifo do autor).

Ainda nessa perspectiva, observamos que ao estudar a obra de Dostoievski, Bakhtin (2010) instaura a problemática da constitutividade dialógico-polifônica do romance. Na perspectiva desse autor, as vozes que se manifestam no romance se dão por meio do diálogo –

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a plurivocidade sócio-histórico-ideológica constitui o estilo romanesco de Dostoievski. Endentemos por plurivocidade o entrecruzamento de vozes em consonância e dissonância, que constituem uma materialidade linguística em alteridade descontínua no interior de uma discursividade.

Nessa perspectiva, nota-se que a linguagem, para Bakhtin, se funda pela conjuntura sígnica ideológica por meio das relações comunicativas desenvolvidas no interior das relações sociais, assim como pela multiplicidade de vozes que se entrecruzam numa relação dialógico- polifônica. Assim sendo, observamos que a dialogia e a polifonia são elementos constitutivos e constituintes de uma enunciatividade literária, porque “[...] a enunciatividade no Discurso Literário se funda na instauração de um conjunto de situações” (SANTOS, 2003, p. 47), e “[...]a polifonia no Discurso Literário contempla discursos outros que tecem o discurso ficcional” (SANTOS, 2003, p. 47 – grifo nosso). Vale ressaltar que a polifonia do Discurso Literário promove diferentes efeitos de sentido decorrentes das vozes que constituem uma obra literária.

Segundo o viés bakhtiniano, o discurso é visto enquanto uma heterogeneidade de vozes conflituosas e simultâneas que se entrecruzam numa relação dialógica no interior de uma prática discursiva. É desse imbricamento de vozes que Bakhtin (2010) instaura o

discurso bivocal, compreendido a partir do seu caráter dialógico-polifônico no interior da

linguagem.

Para o autor,

[...] a linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo de vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a cientifica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas (BAKHTIN, 2010, p. 209 – grifo do autor).

Como podemos notar, a linguagem é engendrada na (e pela) interação verbal entre os sujeitos, manifestando-se por meio das relações dialógicas que perpassam a atividade comunicativa dos sujeitos inseridos nas diversas relações sociais.

Para o autor, “[...] o discurso bivocal [...] surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica” (BAKHTIN, 2010, p. 211 – grifos do autor). Todavia, ao retomarmos a noção de polifonia e discurso bivocal, notamos que a dialogia se manifesta por meio da dinâmica enunciativa que, por sua vez, se instaura no seio de uma sociedade. Além de se mostrar por meio das relações dialógicas, conforme Bakhtin (2010), ela manifesta a(s)

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consciência(s) de uma dada comunidade linguística, sendo o princípio do dialogismo

polifônico do romance dostoievskiano, “[...] como forma de interação e intercomplementação” (BAKHTIN, 2010, p. VI) entre “a multiplicidade de vozes e

consciências” (idem, p. 4 – grifos do autor) presentes no romance dostoievskiano.

Por conseguinte, nota-se que o discurso é dotado de uma memória que permite às múltiplas vozes e consciências coexistem “harmoniosamente”, operando socialmente por meio das práticas sócio-histórico-ideológicas instauradas na coletividade. Em outros termos, a memória se constitui a partir da diversidade de consciências que permeia uma comunidade linguística, ou seja, ela se (re)configura enquanto “[...] um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e retomadas, de conflitos, de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos” (PÊCHEUX, 2007, p. 56).

A memória discursiva, por sua vez, instaura um lugar em alteridade descontínua em que o discurso se constitui pelos atravessamentos das diferentes vozes que ecoam no interior de uma prática linguageira, isto é,

[...] a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 2007, p. 52 – grifos do autor).

Dessa forma, a polifonia no interior de uma enunciatividade literária se dá a partir da “[...] tessitura de vozes e sentidos que perpassam elementos do real para a ficção” (SANTOS, 2003, p. 49).

Nesse sentido, tomamos o Discurso Literário (DL) enquanto discurso constituinte, de acordo com Maingueneau (2009), o qual corresponde a uma conjuntura de discursos-outros que se justapõem com ele (exemplos: discurso político, religioso, científico, entre outros) formando, assim, um emaranhado de discursos que ocupam interdiscursivamente um lugar numa relação dialógico-polifônica no interior de uma enunciatividade literária, em que se “[...] dá sentido aos atos da coletividade” (MAINGUENEAU, 2008, p. 38).

Sob a ótica da AD, tomamos o DL enquanto o entrecruzamento de vozes e consciências que transpassam uma enunciatividade, numa relação de simultaneidade e coexistência coletiva (BAKHTIN, 2010).

Na abordagem adotada neste estudo, o DL se (re)configura na (e pela) inter/intradiscursividade, em que “[...] cada discurso constituinte aparece ao mesmo tempo

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como interior e exterior aos outros, outros que ele atravessa e pelos quais é atravessado” (MAINGUENEAU, 2008, p. 40). Então, passaremos a explicitar, no capítulo seguinte, os atravessamentos discursivos e os fenômenos que perpassam o processo de constituição sujeitudinal circunscrita na enunciatividade literária (SANTOS, 2003) em análise.

Em suma, neste capítulo procuramos, de forma sucinta, apresentar as bases teórico- metodológicas que endossam esta pesquisa, com vistas a:

i) Pontuar o lugar teórico em que o leitor possa circunscrever seu gesto de leitura a partir do olhar epistemológico, tendo em vista os conceitos mobilizados e o corpus escolhido para análise;

ii) Problematizar, por meio de diferentes vozes, a complexidade sentidural que envolve e é envolvida na análise de uma tessitura literária; e

iii) Mostrar o processo de subjetivação na personagem Shylock em O Mercador