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Politicidade do conhecimento

CAPÍTULO I – O PENSAR CERTO NA OBRA DE PAULO FREIRE

1.7. Politicidade do conhecimento

Nosso objetivo neste tópico é analisar a dimensão política do conhecimento, o que imediatamente nos remete a seguinte indagação: como se dá a politicidade no conhecimento na concepção de Paulo Freire?

É pela dimensão dialógica que o pensamento freiriano agrega politicidade ao conhecimento, pois segundo Freire (1996), o conhecimento não é neutro, como também não é neutra a educação. O conhecimento é sempre político. Esse é um dos grandes legados que o pensamento freiriano nos deixou: trazer à luz da consciência brasileira que o conhecimento é sempre o reflexo e atende aos interesses de determinada ideologia, em geral, das classes dominantes; por outro lado, ele pode ser fonte inesgotável de politização das classes dominadas, desde que desenvolvido no bojo de uma educação verdadeiramente democrática e reflexiva.

Na obra Medo e Ousadia – o cotidiano do professor, em que os autores

discutem os problemas da educação brasileira, Ira Shor dialoga com Paulo Freire acerca da “hierarquia política do conhecimento”. Por esse viés, determinados conhecimentos recebem maior valoração que outros, em função da importância que

este possui para determinada comunidade ou área de interesse. Nesse sentido, denunciam os autores:

Certos tipos de conhecimento não conseguem ter reconhecido seu valor, a menos que assumam forma tradicional dentro desta ou daquela disciplina. Por exemplo, a tecnologia, para as grandes empresas e para as Forças Armadas, é mais importante do que as Ciências Humanas. A pesquisa de interesse empresarial conta com recursos mais fortes, enquanto que os estudos sobre socialismo são marginalizados. Além disso, o conhecimento produzido dentro da universidade é mais considerado do que o conhecimento produzido por cientistas autônomos fora da universidade (FREIRE; SHOR, 1986, p. 20).

Os autores estão trazendo à tona os problemas de sua época acerca da hierarquia que rege o conhecimento no contexto brasileiro, que, na realidade, nunca deixou de estar presente e se mostra profundamente arraigado em nosso sistema educacional. Além disso, tecem críticas ao tipo de produção de conhecimento que desde a gênese da nossa história, por impossibilitar a construção do pensamento certo, da leitura crítica da realidade concreta, sempre foi e ainda vai ao encontro dos interesses das classes dominantes, no passado escravocrata, na contemporaneidade capitalista, inviabilizando o conhecimento crítico para a população dominada.

Isso porque o conhecimento produzido para e pela população dominada é um conhecimento estático, em que os momentos do ciclo gnosiológico são dissociados, e esse conhecimento se funda meramente no ato de conhecer o conhecimento já universalmente produzido, como podemos observar nas próprias palavras de Paulo Freire:

[...] é que quando separamos o produzir conhecimento do conhecer o conhecimento existente, as escolas se transformam facilmente em espaço para a venda de conhecimento, o que corresponde à ideologia capitalista (FREIRE; SHOR, 1986, p. 20).

Em outros termos, o sistema educacional, nos contextos capitalistas, trabalha para e em favor do capitalismo. Sua função é incutir nas massas as ideias oficiais, a competição, a ideologia do ter. Em nossa opinião, não é à toa que as escolas dão imensa ênfase às datas comemorativas de criação capitalista: “Dia das Mães”, “Dia

dos Pais”, “Dia das Crianças”, que têm na propaganda, sobretudo a televisiva, forte aliada para induzir as populações às compras, ao consumo desenfreado.

Sendo assim, não é interessante às classes dominantes a produção do conhecimento verdadeiro. Pelo contrário, o conhecimento que chega ao aluno deve ser um conhecimento pronto, previamente formulado e que atenda veemente à manutenção do status quo. Nesse sentido, afirma Paulo Freire:

[...] O conhecimento, atualmente, é produzido longe das salas de aula, por pesquisadores, acadêmicos, escritores de livros didáticos e comissões oficiais de currículo, mas não é criado e re-criado pelos estudantes e pelos professores nas salas de aula (FREIRE; SHOR, 1986, p. 19).

Trata-se da predominância de um conhecimento oficial, que garante uma produção de conhecimento supervisionada, e, por desdobramento, a comercialização da ideologia dominante. Como assevera Ira Shor:

A educação é muito mais controlável quando o professor segue o currículo padrão e os estudantes atuam como se só as palavras do professor contassem. Se os professores ou os alunos exercessem o poder de produzir conhecimento em classe, estariam então reafirmando seu poder de refazer a sociedade. A estrutura do conhecimento oficial é também a estrutura da autoridade social. E por isso que predominam o programa, as bibliografias e as aulas expositivas como formas educacionais para conter os professores e os alunos nos limites do consenso oficial. O currículo passivo baseado em aulas expositivas não é somente uma prática pedagógica pobre. É o modelo de ensino mais compatível com a promoção da autoridade dominante na sociedade e com a desativação da potencialidade criativa dos alunos (FREIRE; SHOR, 1986, p. 21).

Nesse sistema político-social, o conhecimento transferido atende aos interesses do capitalismo porque a educação se destina à formação da mão de obra para o mercado. Os estudantes das classes populares são formados para se tornarem operários e profissionais liberais. São formados para seguir ordens, e não para discuti-las; são formados para se ajustarem, acomodarem-se, formados para pensar ingenuamente. Nesse contexto, quanto mais alienado o alunado for: melhor.

Assim, as discussões envolvendo política devem ser do foro de políticos profissionais. Por isso, os currículos formam para que os estudantes olhem o mundo pelos olhos de outrem, do consenso oficial. Vejamos o relato de Ira Shor:

Os estudantes são formados para ser operários ou profissionais liberais que deixam a política para os políticos profissionais. Esses currículos falsamente neutros formam os estudantes para observar as coisas sem julgá-las, ou para ver o mundo do ponto de vista do consenso oficial, para executar ordens sem questioná-las, como se a sociedade existente fosse fixa e perfeita. Os cursos enfatizam as técnicas e não o contato crítico com a realidade. Isto impede uma análise política das forças que constroem os currículos, bem como os arranha-céus. Um cientista, um profissional, mantém a face limpa ficando fora da política, deixando de fazer perguntas que contenham críticas às decisões de seus superiores ou ao impacto de seu próprio trabalho (FREIRE; SHOR, 1986, p. 24).

Estamos todos sob a égide do aparelho do Estado, cuja função é garantir os direitos de propriedade e regular o sistema econômico capitalista. É por isso que a educação destinada ao pobre, às classes operárias deve destinar-se à formação o mais satisfatória possível da mão de obra, pelo menos em tese, já que no modelo atual de Estado brasileiro, mais serve para a formação da desqualificação profissional. A escola, nesse viés, tem duas funções concomitantes. Primeira: atende ao capitalismo, sendo nada mais que mero depósito, caso em que seu principal papel é propiciar aos filhos dos supostos trabalhadores os cuidados que estes deveriam ofertar, mas que não o fazem por servirem ao Capitalismo, ofertando-lhe a sua mais valia. Segunda: preparar os mesmos indivíduos que cuida, ou seja, os filhos dos trabalhadores para dar continuidade ao processo, tornando-os os futuros produtores da mais valia ofertada por seus pais. Nós, os professores, nesse processo, somos o burocrata estatal, cuja função é formar o aluno para assumir os postos de trabalho no mercado capitalista. Em outros termos, a função primeira da escola, da educação pública e dos professores e professoras é garantir a manutenção do status quo, promovendo a subserviência dos futuros trabalhos, constituindo os sujeitos sociais.

Em contraposição à hierarquização do conhecimento, Freire defende a produção do conhecimento crítico por intermédio do diálogo crítico. O conhecimento crítico aproxima intimamente homem e sociedade, desvelando as relações dos contextos político e histórico no qual nos encontramos inseridos, iluminando a nossa realidade concreta. Por isso, a educação além de “um ato de conhecimento”, é também “um ato político” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 25).

E é justamente por ser um ato político que o conhecimento pode ser politizado. Embora a ideologia dominante que controla a sociedade esteja dentro de nós, ela não é definitiva nem completa. Por isso e além disso, a nossa consciência pode refletir, descobrir se e como somos condicionados, dominados, e, por conseguinte, aprender como superar nossa condição: conhecendo a nossa própria condição. “Podemos aprender a ser livres, estudando nossa falta de liberdade” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 20).

Tanto a escola quanto os educadores podem atuar no sentido de perpetuar o

status quo como no sentido de transformá-lo. Quando fomentado no rigor dialético-

dialógico o conhecimento promove o entendimento de como funcionam as sociedades capitalistas, possibilitando críticas, possíveis contestações e transformações. Isto porque, como esclarece Paulo Freire:

Se o que a classe dominante espera da escola é a preservação do status quo, como salientei antes, a escola se dá também, independentemente do querer dominante, a outra tarefa que contradiz aquela. Tarefa de desvelamento do real. Esta tarefa, sem dúvida, pertence àqueles educadores que estão aderindo, marchando, na direção dos interesses na realidade, portanto, de desmistificação da ideologia dominante (GADOTTI; FREIRE; GUIMARÃES, 1985, p. 78, grifos dos autores).

Por isso, a relação dialógica-problematizadora da ação pedagógica, aquela que compreende o pensar criticamente, é a maior expressão da epistemologia freiriana, pois visa à formação o homem crítico, autônomo, capaz não só de tomar consciência da sua existência, da sua história, da sua problemática, mas também de reinventar, de recriar a própria existência, a própria história, a própria problemática e, assim, transformar a realidade social.

E se o diálogo: palavra, pergunta e escuta é chave que abre todas as portas para o conhecimento verdadeiro, tanto do aluno quanto do professor, o pensamento humano compreende a coluna estrutural, possibilitadora do saber. Isso confere ao binômio pensamento-linguagem posição de destaque nas reflexões epistemológicas freirianas, como parte do fenômeno ontológico humano de produção e reprodução do conhecimento.

Isso porque, em seu constructo epistemológico, o educador e filósofo brasileiro entende o homem como único ser, “[...] que tem um pensamento- linguagem, que atua e é capaz de refletir sobre si mesmo e sobre a sua própria atividade, que dele se separa, somente ele, ao alcançar níveis, se faz um ser de práxis” (FREIRE, 1983b, p. 39). Portanto, um ser de relações, travadas com o mundo, consigo próprio e com os outros homens dialeticamente, cuja presença nesse mundo compreende um “estar com” em permanente defrontar com esse mundo.

Dialeticamente também se dá o pensamento. Aliás, a dialeticidade é o elemento chave que permeia todos os entendimentos freirianos acerca de homem, mundo, conhecimento, conscientização, pensamento, todos estritamente relacionados com a educação, que na concepção freiriana não só possui conotação dialógica, mas também caráter político.

Em nosso entendimento, a compreensão freiriana de que todo o processo gnosiológico é dialético-dialógico compreende uma perspectiva revolucionária de ver tanto o pensamento quanto o conhecimento. Trata-se de um ponto de vista que alterou radicalmente toda a compreensão de processo educacional tradicional, tanto no tocante às relações professor-aluno, quanto no fato de a educação concebida como eminentemente política, e como tal pode a “prática educativa” (FREIRE, 1996, p. 70) tender tanto a ser opressora como libertadora, dependendo da forma como é usada e/ou entendida, compreendida.

Por esse viés, se a educação não é neutra, o pensamento ingênuo, assim como pensamento crítico, fomentado por ela também não o é. Pelo contrário, ele, o pensamento ingênuo fomentado, sobretudo pela educação pública, atende aos interesses envolvidos no que buscam a manutenção do status quo e, portanto, das classes dominantes.

Daí o motivo pelo qual entendemos que nos conceitos freirianos o trinômio pensamento-conhecimento-ação se movimenta ciclicamente. De tal forma, que o pensamento é o alicerce do conhecimento e este por sua vez é a base da ação. Nesse movimento, o pensar certo, exaustivamente defendido na obra freiriana, funciona como base de sustentação para o conhecimento, aqui também entendido

como saber. Assim sendo, pensamento autêntico gera conhecimento verdadeiro e este, por desdobramento, orienta o agir ético.

No nosso entender, é por esse motivo que todos os esforços freirianos se voltaram para explicitar a importância de uma educação que ajudasse o ser humano, homens e mulheres, mulheres e homens, a organizar o seu pensar, que estimulasse o pensar crítico, que não permitisse o emaranhar-se por visões parciais e destorcidas da realidade, mas que instigasse no alunado a busca dos nexos que liga os problemas e a respostas elaboradas no modelo dialético de pensar. Como afirma Freire (2000), as nossas crianças precisam crescer exercendo a sua capacidade de pensar, de indagar e se indagar, de experimentar; precisam aprender a decidir, precisam ser livres e aprender sobre a liberdade, aprender que esta não se faz por si só, mas sim pela apropriação dos limites éticos. Não se pode falar em liberdade desvinculada de responsabilidade.