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Esta paisagem se estende por todas as trilhas e caminhos do território

quilombola. A distância entre as habitações são sentidas a cada trajeto que se explora.

Algumas se localizam nos pontos mais distantes em que é necessário percorrer até 10

km ou mais para se chegar. Estes pontos são denominados pelos moradores de

“sertão”. É comum ouvi-los falar, por exemplo: “hoje o fulano foi pro sertão”, ou “tal

pessoa mora lá mais pro sertão”. Nesta expressão já se percebe uma identificação

destes com um ambiente rural “distante”.

Esta descrição geográfica inicial sobre o acesso principal à comunidade São

João é aqui exposta para transmitir a percepção de como é chegar até esta localidade,

refletindo no grau de isolamento em que vivem e as dificuldades de locomoção

impostas.

Como uma das principais características da abordagem dos community studies

é valorizar a ótica do sujeito pesquisado é relevante mostrar como os quilombolas

vivenciam e distinguem seu mundo rural. Uma das formas que possibilitou perceber

como isto ocorre, foi a partir de uma perspectiva etnográfica.

Os moradores da comunidade estabelecem pontos de referência do relevo

para fins de localização relacionando-os com os córregos e serras que recebem

denominações ligadas a elementos da própria comunidade. Alguns deles são: Córrego

da Bica, Serra do Querosene, Morro do Cruzeiro e Ilha dos Cedros. Também

distinguem subunidades baseados nas sub-bacias hidrográficas. Desta forma as terras

do Rio Pardo, as terras do Rio São João, as terras do Córrego Feital Grande/Córrego

Comprido e as terras do Rio dos Veados representam 04 subunidades do relevo.

(LÖWEN SAHR et al, 2010).

Os moradores ainda adotam elementos referenciais próprios que diferem da

cartografia convencional que se baseia na estrutura organizacional vivenciada por eles

e que tem como ponto inicial de referência o sentido “Nordeste - Sudoeste” e não

“Norte” como é convencional.

Esta observação aparece descrita em um trecho do Relatório Antropológico:

Os elementos referenciais do relevo são utilizados pelos moradores para se referir a suas práticas rotineiras e classificações variadas do território. Esta é uma das maneiras de organizar o conhecimento sobre o território por eles ocupado. A denominação dos locais representa uma maneira que a comunidade tem de identificar e classificar o ambiente, que passa a ser também uma maneira de autoidentificação e autodefinição da própria comunidade enquanto grupo social particular. Assim, na mesma medida em que produz conhecimento sobre a natureza, a comunidade de São João forja de maneira inconsciente, como todos os outros grupos sociais, sua identidade cultural e social. No caso da comunidade quilombola de São João é evidente a integração humana com a natureza sem utilização de técnicas modernas de localização e reconhecimento dos locais (LÖWEN SAHR et al, 2010, p.118).

O conhecimento local do mundo rural que habitam é também observado nos

caminhos e trilhas utilizados em suas práticas cotidianas de trânsito e para estabelecer

contato com comunidades vizinhas ou com o mundo urbano. Esta rotina permite-lhes

adquirir profundo conhecimento deste ambiente sendo ordenado e classificado pelos

moradores por meio de uma linguagem própria que é por eles compartilhada. Aqui se

visualiza a importância deste conhecimento para as estratégias adotadas nas relações

estabelecidas entre os dois mundos.

Em um dos percursos diários que acompanhei durante a primeira fase de

imersão na comunidade, uma resposta referente ao conhecimento que estes

habitantes possuem do local em que vivem, foi surpreendente. Na ocasião,

acompanhava as crianças em seu trajeto diário realizado antes do nascer do sol até a

guarita localizada na entrada da comunidade para o aguardo do transporte escolar.

Sem lanternas ou qualquer objeto luminoso, as crianças – a maioria delas descalças

segurando seus calçados nas mãos para não sujá-los – caminhavam tranquilamente

pela trilha em pedregulhos, por trechos de córregos, em meio à mata e aos ruídos de

animais peçonhentos e insetos. Ao questionar uma das estudantes sobre como

conseguem caminhar descalços no escuro e seguir tranquilamente a trilha, a menina

respondeu: “É que nós conhecemos cada pedrinha deste lugar.”

Esta integração com o meio ambiente caracteriza um dos elementos

tradicionais de auto-identificação que pôde ser observado também em outras

perspectivas etnográficas como o conhecimento botânico dos moradores da

comunidade. A etnobotânica é um conhecimento extremamente rico que possuem da

vegetação local. Além de o conhecimento representar por si só a forte convivência

com o meio ambiente através de sua conservação, esta é uma prática tradicional

passada de geração a geração que revela uma cultura própria.

Na descrição das espécies, os quilombolas estabelecem certas classificações

relacionadas aos locais em que são encontradas. Conforme esta classificação, as

plantas são da “mata virgem” (mata mais fechada) ou da “capoeira” (locais mais

próximos das moradias e trilhas) (Quadro 02).

Espécies da “Mata Virgem”

Espécies da “Capoeira”

Canela (amarela, preta, fogo, sassafrás),

Jatobá,

Angelim,

Araribá,

Peroba,

Gratambu,

Canafristi,

Bocuva,

Mandioqueiro,

Pimenteira,

Pau-Brasil,

Tapiá, Cascudo, Vaguaçu, Pau-de-óleo,

Cabriteira, Tarumã, Araçá, Goiabinha,

Imboeiro, Guararema, Cacheta, Coração

de Bugre, Palmito Jussara, Guaraeiro,

Caingá, Corocaia, Garajuva.

Tamanqueira, Goiabeira, Zóio de Cabra,

Cirinjuva/Canjiuva,

Fruto-de-Pombo,

Café-bravo, Tabucuva, Goê, Graricica,

Camarinha, Caquera, Ingaeiro, Rabo de

burro,

Taiuva,

Tucum,

Beijauva,

Gavirova, Imbauva, Bico de Pato,

Espinho

de

Agulha,

Vassoureiro,

Assapeixe, Cambará, Carne de Cavalo,

Alecrim, Coqueiro, Marmelo, Angico,

Jacaré.

Quadro 02: Classificação da flora local segundo moradores da comunidade São João

Fonte: LÖWEN SAHR et al (2010, p.129)

A partir do que fora relatado durante as conversas e entrevistas informais e

também através da própria observação, pode-se verificar em que este conhecimento é

empregado. Algumas plantas e ervas são utilizadas para o trato de enfermidades,

sejam tomadas como chás ou aplicadas de outras formas. Outras espécies são

consumidas dentro da prática de subsistência como alimentos como a banana nativa,

a goiaba, a batata-doce, e há ainda outras formas de uso, como as madeiras da “mata

virgem” que são usadas para as construções de pau-a-pique. O Tucum (Foto 03) é

uma planta no passado servia para a confecção de linha para pesca.

Foto 03: “Tucum”- espécie utilizada no passado pela comunidade para confecção de