Capítulo 2 – Orientações teórico-metodológicas de uma paragem em Miraflor
2.1. Ponto de partida: definição do problema de investigação e modelo de análise
Revisitando o capítulo anterior, ficou presente que num momento em que a arte e
a cultura se assumem como veículo privilegiado de desenvolvimento e competitividade
das cidades e regiões, multiplicam-se os estudos de públicos e respetivas práticas
artístico-culturais. Esse processo de auscultação de quem frequenta, como e porquê os
circuitos do universo cultural e artístico, permite dar conta de uma série de alterações
estruturais no modo como os públicos se relacionam com essas dimensões da vida
social.
Essas mudanças ficam a dever-se, sobretudo, a uma série de processos
tecnológicos, sociais, políticos e económicos que facilitaram a produção, divulgação e
distribuição da oferta artística e cultural e que, segundo Firmino da Costa,
proporcionaram uma transformação na forma como os públicos se relacionam com a
cultura e com as instituições a ela associadas, assumindo “(…) uma relação mista de
distância e subalternização, de alheamento e ignorância, de reverência e desconfiança
perante as instituições” (2004a, p. 131).
De forma a dar conta dessas mesmas mudanças, esta investigação tem como
objeto de estudo os públicos visitantes das Galerias MIRA (Espaço MIRA e MIRA
FORUM), e respetivas representações acerca da arte e da profissão/figura do artista.
Todavia, mais do que uma mera caraterização de quem visita estes espaços e das suas
respetivas visões sobre o mundo da arte, esta pesquisa pretende fazer a ponte dos modos
de relação com a arte dos vários intervenientes do mundo artístico que protagonizam o
quotidiano das Galerias MIRA, pretendendo explorar, de igual modo, o papel mediador
da instituição em causa, e ainda perceber as representações sociais de uma amostra de
artistas sobre a arte, a profissão/figura do artista e a mediação artística. A proposta
inerente à realização desta investigação foi, portanto, estabelecer um paralelismo entre
as três esferas da arte – a receção, a mediação e a criação – protagonizadas,
respetivamente, pelos públicos visitantes do Espaço MIRA e MIRA FORUM, os
intermediários culturais que fazem parte desta instituição, e os artistas que expuseram
na Galerias MIRA.
Esta investigação respondeu a um conjunto de questionamentos, sintetizados nas
seguintes perguntas de partida: Como se caraterizam os públicos visitantes das Galerias
MIRA e quais as suas representações acerca da arte e da figura/profissão do artista? De
que forma as Galerias MIRA moldam, ou não, essas mesmas representações? Quais as
representações dos artistas das Galerias MIRA sobre a arte, a profissão/figura do artista
e a mediação artística?
Para dar conta dessas inquietações sociológicas, a par do objetivo geral de estudar
os públicos das Galerias MIRA e respetivas representações acerca da arte e da
profissão/figura do artista, assim como de compreender o papel mediador das Galerias
MIRA na relação entre públicos, artistas e comunidade, pretendeu-se também alcançar
alguns objetivos mais específicos. Aqui destacam-se as pretensões de traçar um perfil
sociodemográfico e socioprofissional dos públicos frequentadores da instituição,
perceber quais as motivações que os levam a procurá-la e analisar a sua posição
relativamente à arte e à profissão/figura do artista. Além disso, explorar os meios
através dos quais as Galerias MIRA desenvolvem o papel de instância mediadora,
analisar a sua relação com a comunidade envolvente e perceber de que forma as suas
ações moldam – ou não – as representações dos públicos, foram também objetivos
equacionados para esta investigação, assim como explorar a relação dos “MIRAS” com
as novas tecnologias e perceber quais as representações de alguns dos artistas que lá
expuseram sobre a arte, a profissão/figura do artista e a mediação artística.
As perguntas de partida e os objetivos são ferramentas essenciais que funcionam
como eixos de estruturação do problema investigativo, permitindo, dessa forma, chegar
ao modelo analítico da pesquisa. Este tem como função sintetizar os eixos analíticos da
investigação, cruzando, neste caso, conteúdos temáticos como as três esferas da arte – a
criação, a mediação e a receção – com o caso particular das Galerias MIRA, enquanto
espaço de comunhão dessas três dimensões (Figura 4.).
O modelo analítico elaborado coloca a ênfase no conceito central desta
investigação, o de representações sociais, neste caso dos públicos visitantes das Galerias
MIRA acerca da arte e da profissão/figura do artista. É a partir desta que ganham
contornos as restantes esferas de análise, cuja identificação é visualmente imediata:
existem três eixos de análise a sustentar esta pesquisa, nomeadamente as esferas da
receção, mediação e criação artística, que embora sejam comumente associadas a uma
lógica circular, apresentam-se aqui numa ordem linear inversa de forma a facilitar a
análise individual de cada dimensão de acordo com a sua centralidade na investigação.
Os blocos a tracejado indicam os eixos de análise principais, sendo eles, em
primeiro lugar e com especial destaque, os públicos visitantes das Galerias MIRA,
seguindo-se as Galerias MIRA enquanto instituição mediadora na área artístico-cultural,
e ainda uma outra linha de análise, relativa aos artistas associados a esta instituição, cuja
centralidade não é tão evidente como nas duas anteriores, mas que ainda assim fornece
pistas enriquecedoras para o tema desenvolvido. De certa forma, com o intento de
explorar os modos de relação com a arte dos diversos protagonistas do universo
artístico, o modelo apresentado ilustra a tentativa de uma abordagem totalizante ao caso
em estudo, colocando em relação os múltiplos intervenientes das Galerias MIRA –
públicos, intermediários e artistas.
Naquele que se considera o eixo de análise privilegiado desta pesquisa, destaca-se,
em primeiro lugar, a análise do perfil dos públicos visitantes das Galerias MIRA,
enquadrando-se aqui as suas caraterísticas sociodemográficas, socioeducativas e
socioprofissionais. No que concerne às duas primeiras, estas são fundamentais para
identificar os traços caraterizadores dos visitantes de ambas as galerias, ao passo que o
terceiro indicador, por sua vez, permite situar os indivíduos no espaço social através de
uma aproximação ao seu lugar de classe. Recordando as enunciações teóricas
exploradas no capítulo anterior, relativas à relação entre posição social e contacto com
as artes, achou-se interessante explorar os posicionamentos classistas dos visitantes com
o intuito de identificar possíveis tendências de homogeneização ou heterogeneização
nas galerias em causa. Para isso, partiu-se da matriz de análise de Dulce Magalhães
(2005), que cruza as variáveis profissão e situação na profissão de acordo com a
Classificação Nacional das Profissões de 1994
23. Isto é relevante na medida em que,
recordando os enunciados de Pierre Bourdieu, as práticas sociais, e neste caso em
particular a prática cultural de frequência de uma galeria de arte, não ocorre de forma
furtuita e desvinculada de um conjunto de condições propícias: longe de se afirmar
como uma escolha pessoal, natural ou inata, a relação com as artes é antes produto de
uma dupla imposição inconsciente, quer por parte da posição ocupada na estrutura, quer
por parte das disposições inscritas no habitus, na qual a família assume uma posição de
relevo na inculcação e modelação de formas de participação social e cultural (Bourdieu,
1994).
Além do perfil dos públicos visitantes, uma outra dimensão relevante dentro
esfera da receção é a das motivações inerentes à visita, analisando-se, para isso,
indicadores como as razões da visita e a satisfação face um conjunto de componentes.
Pretende-se, em última instância, perceber se essas motivações assumem contornos
diferenciados para cada uma das galerias (Espaço MIRA e MIRA FORUM), ou se, por
outro lado, os fatores evocados na procura destes espaços são semelhantes. Estas duas
dimensões estão diretamente relacionadas com o conceito central da investigação, as
representações sociais, neste caso dos públicos visitantes das Galerias MIRA acerca da
arte e da profissão/figura do artista, incluindo-se aqui indicadores como as perceções
acerca das funções da arte, das áreas/fronteiras da produção artística e das caraterísticas
de personalidade dos artistas, cuja auscultação foi elaborada por meio de questões
abertas no inquérito por questionário aplicado em ambos os espaços. Um dos desafios
desta investigação passa por perceber se essas representações: a) são influenciadas, de
algum modo, pelo perfil dos públicos visitantes; b) têm alguma relação nas motivações
que os levam a procurar as Galerias MIRA.
O segundo eixo analítico deste trabalho de pesquisa situa-se na esfera da
mediação artística, nomeadamente no papel que a instituição em causa e os seus
protagonistas desempenham na formação/modelação das representações dos públicos
visitantes sobre a arte e a profissão/figura do artista. Reconhecendo que “(…) o
intermediário cultural é aquele que serve de canal, de facilitador da ligação entre dois
mundos (produção e consumo, princípio e fim)” (Madeira, 2000, p.1), entende-se que o
papel das Galerias MIRA tende a afigurar-se como fundamental na produção de um
enquadramento da criação artística, proporcionando um contato mais estreito entre a
esfera da criação e receção. Neste eixo de análise da pesquisa dá-se protagonismo a três
dimensões: a da mediação artística propriamente dita, através de indicadores como
sendo os critérios de escolha dos artistas, as estratégias de captação de públicos e as
atividades de aproximação de artistas e públicos; a do impacto na comunidade,
nomeadamente através das estratégias de adaptação da programação ao contexto e dos
modos de relação com a comunidade envolvente; e por fim, a dimensão da influência
nas representações dos públicos, através das atividades/estratégias de aproximação entre
públicos e arte/artistas.
O terceiro e último eixo de análise dá conta da esfera da produção/criação artística
no seio das Galerias MIRA. Tendo como base a convicção de que o mundo da arte, e
mais especificamente a esfera da criação, é pautada pela coexistência de discursos que
privilegiam simultaneamente visões românticas e pragmáticas da arte (Pais, 1995),
destacam-se aqui dimensões como as representações sobre o campo artístico e a
profissão/figura do artista, por meio de indicadores como as perceções acerca das
funções da arte, das áreas/fronteiras da produção artística e das caraterísticas de
personalidade dos artistas. A acrescentar a isso, uma outra dimensão deste eixo de
análise diz respeito às representações sobre a mediação artística, medidas pela
recetividade ou resistência às atividades/estratégias de aproximação entre públicos e
arte/artistas, e pela opinião e experiência de trabalho com as Galerias MIRA.
Observando agora o modelo de análise de uma perspetiva mais geral, procura-se
perceber se existem relações de influência direta ou mútua entre os elementos que o
compõem, e se essas influências se fazem sentir ao nível das representações sobre a arte,
a figura/profissão do artista e a mediação nos diversos intervenientes da instituição em
causa.
No que concerne à análise dos públicos, que assume um lugar de destaque nesta
pesquisa, acredita-se que os perfis dos visitantes assim como as suas motivações, estão
na base de diferentes modos de utilização das Galerias MIRA, nomeadamente como
espaço simultâneo de recriação/lazer; convívio e trabalho/aprendizagem, modos esses
que podem refletir-se numa tipologia de públicos, na qual se incluem os “curiosos”, os
“afetivos” e os “especializados”, sendo esta última designação retirada do estudo Maria
de Lourdes Lima dos Santos (2002). Os resultados dirão se a estes diferentes perfis
correspondem diferentes formas de ver e representar a prática artística, e se as Galerias
MIRA concorrem para a modelação dessas mesmas representações.
No documento
Estação MIRA(flor) - No cruzamento entre a criação, a mediação e a receção artística
(páginas 49-55)