• Nenhum resultado encontrado

O ponto de demanda é utilizado nas rodas de jongo para desafio. Por meio desse ponto, o jongueiro-cantador mostra sua sabedoria em linguagem enigmática e tenta “amarrar” os demais jongueiros que participam da roda. Nesta “roda” da pesquisa, reservo o “desafio” às temporalidades do jongo, às experiências de tempo provocadas pelos jongos em sua multiplicidade. É por meio de suas possibilidades que construo o “enigma” desse “ponto” que entôo até o momento de sua decifração.

Para entender como as temporalidades são estabelecidas e compartilhadas nas rodas de jongo e como se agenciam as diversas possibilidades de manipulação dessa grandeza que o jongo oferece em sua materialidade em diferentes contextos, lanço mão novamente da análise praxeológica. Após explorar suas estratégias em relação aos espaços do jongo, faço o mesmo sobre os tempos e temporalidades dessa expressão performática.

Nesse sentido, cabe relembrar que na dimensão temporal a análise praxeológica observa sua composição, sua ordem e sua articulação. A composição temporal diz respeitos às ações executadas pelos sujeitos que compõem o processo observado, no caso desta pesquisa o jongo. Elas podem ser reunidas em grupos e fases necessárias para o desenrolar da atividade (FRANCE, 1983; MATSUMOTO, 1999; 2009). A ordem temporal traz dois critérios pelos quais as ações são ordenadas ao longo do processo: a sucessão e a simultaneidade. A articulação temporal “[...] pode ser de fato definida como o modo de encadeamento das ações sucessivas (gestos, operações, fases): tanto consecutivas (se sucedendo imediatamente), quanto não consecutivas (apresentando entre elas uma pausa)” (MATSUMOTO, 2009, 200).

Em atenção específica à ordem temporal, organizo minhas considerações sobre as formas que as ações são compartilhadas e/ou apresentadas nas rodas de jongo. Os dois eixos da sucessão e da simultaneidade são estratégias interessantes para compreensão das temporalidades criadas a partir da organização performática das ações. É exatamente nessa direção que Milton Santos destaca essas possibilidades de percepção do tempo nas ações:

[...] a questão do tempo pode ser trabalhada ao menos segundo dois eixos — um é o eixo das sucessões e o outro é o eixo das coexistências. O tempo flui e por conseguinte um fenômeno vem depois de outro fenômeno. Assim, há uma sucessão de fenômenos ao longo do tempo. As coisas se dão em uma seqüência. Esta é uma das dimensões com que podemos trabalhar [...] e que nos leva a idéia de pedaços do tempo ou, em outras palavras, da seqüência no acontecer, uma espécie de ordem

temporal. A cada momento se estabelecem sistemas do acontecer social que caracterizam e distinguem tempos diferentes, permitindo falar de hoje e de ontem. Esse é o eixo das sucessões. Temos também, o eixo das coexistências, da simultaneidade. Em um lugar, em uma área, o tempo das diversas ações e dos diversos agentes, a maneira como utilizam o tempo não é a mesma. Os respectivos fenômenos não são apenas sucessivos, mas concomitantes, no viver de cada hora. Para os diversos agentes sociais, as temporalidades variam, mas se dão de modo simultâneo. No espaço, para sermos críveis, temos de considerar a simultaneidade das temporalidades diversas (SANTOS, 1994, 82).

Diante da multiplicidade performática dos jongos, considerei melhor não organizar suas ações em fases ou etapas. Essa organização é possível e pode ser dada de diversas maneiras. Para a análise que me propus nesta pesquisa, articulação das ações dos jongos em um mapa temporal parece-me ser mais produtiva. Apresento, então, o mapa temporal dos jongos representado na figura 31. Nesse mapa, estão articuladas as ações dos jongos, apresentadas como contingentes ou obrigatórias para a realização de uma roda, em suas dimensões de consecutividade e de simultaneidade observadas nas rodas de jongo. Além disso, destaca-se também se essas forma de ordenação das ações se dão de forma obrigatória ou contingente.

Diante do exposto até aqui sobre as múltiplas formas de realização do jongo, fica claro que esses agenciamentos das ações em obrigatórias e contingentes e de suas ordenações em consecutivas obrigatórias, consecutivas contingentes, simultâneas obrigatórias e simultâneas contingentes variam de acordo com o contexto de realização das rodas e com a forma em que as comunidades jongueiras assumem suas práticas. Algumas ações, como veremos em seguida, são necessariamente obrigatória para a realização da roda de jongo para algumas comunidades. Já para outras, essas mesmas ações passam a ser contingentes. Em algumas rodas de jongo, algumas ações acontecem obrigatoriamente de forma sucessiva, enquanto que em outras rodas essas mesmas ações ocorrem de forma simultânea. São inúmeras as variações e possibilidades.

Tentei, então, trabalhar com alguns parâmetros, algumas noções que estabeleci para construir essa “fotografia” das temporalidades dos jongos. Como ações obrigatórias indiquei aquelas que são imprescindíveis na maior parte das rodas observadas para o andamento, o funcionamento da performance. São ações que se não executadas comprometem o compartilhamento e a apresentação da performance com base nas rodas que presenciei e participei. As ações entendidas como contingentes foram executadas por alguns grupos jongueiros ou em alguns momentos da roda. Conforme ressalva anterior, para realização da roda em algumas comunidades, essas ações se tornam obrigatórias. Sobre as ordenações das

ações, busquei registrar todas as possibilidades que foram observadas nas rodas. Dessa forma, é possível perceber que algumas ações podem ser tanto sucessivas obrigatórias como simultâneas contingentes. Essas formas diferentes de articulação foram vistas tanto no decorrer de uma roda de jongo como na comparação de uma roda para outra. Note-se, então, que mesmo considerando a prática de uma comunidade jongueira específica, há uma variação na ordenação das ações. Os jongueiros, como que num ponto de demanda, “desafiam” o tempo e escapam constantemente de uma ordem fixada, pré-estabelecida. A ordenação é construída em performance, na negociação entre os jongueiros que compartilham a ação e o contexto de acontecimento da roda.

Como muitas ações já foram detalhadamente mencionadas e descritas em outros momentos do texto, darei ênfase às articulações estabelecidas entre elas. As ações que ainda não foram exploradas abordarei conjuntamente com suas possibilidades de ordenação.