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Este ítem será desenvolvido tendo como base não as tradicionais buscas de analogia entre mudanças nas teorias científicas e mudanças conceituais dos alunos, mas sim tomando como suposição que “[...] a maneira pela qual entendemos a racionalidade científica é muito significante para o ensino de ciências. Ela afeta qual ‘imagem de ciência’ deve ser transmitida aos alunos através de livros-texto, laboratórios e aprendizado de sala de aula.” (NUSSBAUM, 1989, p.533). Portanto, o foco será aquele enfatizado pelas abordagens contextuais do Ensino de Ciências: a aprendizagem de Ciências deve ser acompanhada pela aprendizagem sobre a

natureza da ciência, ou seja, a Filosofia da Ciência é relevante porque oferece subsídios para o ensino de algo que é considerado cada vez mais como fundamental: a compreensão do que é o fazer ciência.

Como se observou no item 5.4, a concepção de ciência influenciada pelo positivismo ainda encontra muito espaço entre os professores de ciência, assim como entre os alunos e no ambiente acadêmico em geral. Um dos pontos que essa tese procura enfatizar é que um dos principais responsáveis, se não o principal, pela crítica daquela concepção tradicional de ciência foi Karl Popper. Apesar de ser erroneamente classificado por alguns como positivista, na verdade, sua crítica da concepção de verdade e de ciência apresentada pelos positivistas acabou se tornando uma das grandes responsáveis por toda a tradição posterior da Filosofia da Ciência, que passou a encarar as teorias científicas como conjecturas passíveis de refutação.

Para se ter uma idéia mais precisa a respeito dessas mudanças, seria interessante analisar com mais detalhe alguns pontos do quadro de Nussbaum apresentado anteriormente (item 5.2).

Ao se analisar o primeiro quadro, quando se compara, por exemplo, a resposta tradicional com a atual a respeito da pergunta: “Como o conhecimento científico cresce?”, observamos uma diferença na resposta que reflete claramente a influência de Popper. A resposta tradicional é: “Pela descoberta do homem ou pelo menos pelo conhecimento confirmado – admite-se – que o ‘conhecimento’ é aquilo que foi provado (ou confirmado).” O que Nussbaum apresenta como resposta atual é, claramente, como se pôde acompanhar no capítulo 2 desta tese, a resposta de Popper: “Pela construção do homem do melhor conhecimento contemporâneo – admite-se – que o conhecimento nunca é confirmado, e certamente não é provado.”

Ao se analisar o segundo quadro de Nussbaum (item 5.2), verifica-se que os dois subtítulos, que estão abaixo dos nomes de Popper, Lakatos, Toulmin e Kuhn, denotando que são posições comuns a esses autores, e contrapostas à concepção tradicional (empirismo, Kant), são frases que derivaram das idéias de Popper e que influenciaram profundamente todas as posições posteriores em Filosofia da Ciência, ou seja: “As teorias são especulações audaciosas, criativamente construídas” e “O conhecimento é não provável e não-confirmável”. Como no caso anterior, pode-se perceber que as idéias expressas pelas frases citadas representam uma imagem de

ciência bem distinta da imagem tradicional, colocando para o Ensino de Ciências o desafio da atualização.

Em seu trabalho, El-Hani (2007), apoiado no levantamento de oito documentos curriculares internacionais feito por McComas e colaboradores (1998), apresenta algumas “[...] idéias largamente aceitas sobre a natureza da ciência que se mostram bastante úteis.”(EL-HANI, 2007, p.298). Entre elas32, serão destacadas quatro que podem oferecer uma visão do impacto das discussões sobre ciências no Ensino de Ciências:

”O conhecimento científico, embora robusto, tem uma natureza conjectural”. Idéia que demonstra, primeiramente, uma avaliação positiva do conhecimento científico, mas que questiona seu caráter absolutista.

“O conhecimento científico depende fortemente, mas não inteiramente, da observação, da evidência experimental, de argumentos racionais e do ceticismo”.

A frase denota que o conhecimento científico ainda mantém seu caráter empírico, mas não, como na concepção tradicional, para conduzir a teorias verdadeiras ou provar a verdade de certas teorias, mas no sentido popperiano de testes de conjecturas.

“A construção do conhecimento científico requer registros de dados acurados, crítica constante das evidências, das teorias, dos argumentos etc. pelas comunidades de pesquisadores e replicação dos estudos realizados”.

A frase demonstra a preocupação das concepções mais atuais de ciência com a atitude crítica permanente (influência do racionalismo crítico popperiano), assim como com o caráter institucional do fazer ciência (também muito enfatizado por Popper, como foi visto no item 4.2 desta tese).

“Observações são dependentes de teorias, de modo que não faz sentido pensar em uma coleta de dados livre de influências e expectativas teóricas”.

A idéia que está em jogo é a da impossibilidade de observações totalmente neutras ou objetivas, tão caras para a concepção tradicional de ciência, e que encontrava apoio em um empirismo33, para o qual as teorias seriam constituídas a partir de observações isentas. O questionamento dessas idéias se converteu em importante apoio no desenvolvimento da concepção popperiana de ciência, como se procurou demonstrar no item 4.1 desta tese.

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Ver a íntegra na página 73 logo acima.

Apoiado nos trabalhos de Gil-Pérez e colaboradores (2001), que buscaram pontos de concordância entre os filósofos da ciência, El-Hani (2007, p.299-300) apontou algumas idéias que deveriam ser evitadas; entre elas destacamos três:

1-Uma concepção empírico-indutivista e ateórica, na qual a observação e a experimentação são entendidas como atividades neutras, independentes de compromissos teóricos, deixando-se de lado o papel de conceitos e hipóteses como orientadoras da investigação. (EL-HANI, 2007, p.299).

Esta orientação complementa a última e a segunda apresentadas acima.

2-Uma visão aproblemática e ahistórica, dogmática e fechada, da ciência, relacionada ao ensino como uma retórica de conlusões, buscando-se transmitir aos alunos conhecimentos já elaborados, sem mostrar os problemas dos quais eles se originaram, as dificuldades encontradas em sua solução, as possibilidades e limitações do conhecimento científico, etc. (EL-HANI, 2007, p.300).

Esta orientação complementa a primeira e a segunda apresentadas anteriormente.

3- Uma visão individualista e elitista da ciência, na qual o conhecimento é visto como a obra de gênios isolados, perdendo-se de vista a natureza cooperativa do trabalho científico. (EL-HANI, 2007, p.300).

Esta orientação, por sua vez, complementa a terceira que relacionamos logo acima.

O trabalho de Gil-Pérez e colaboradores procurou ainda identificar algumas idéias comuns a perspectivas epistemológicas distintas. Entre os pontos elencados, pode-se destacar dois, que refletem mudanças importantes a respeito da idéia de ciência:

(ii) A rejeição de uma visão empírico-indutivista, aceitando-se a dependência teórica da observação e enfatizando-se o papel das teorias na atividade científica e a natureza não linear do crescimento do conhecimento científico.

(iii) O reconhecimento do papel das hipóteses na prática científica, sendo estas entendidas como tentativas de respostas a problemas formulados cientificamente, que devem ser submetidas a testes rigorosos, mas jamais serão estabelecidas de maneira absoluta. Deve-se compreender, assim, a natureza conjectural do conhecimento, evitando-se concepções epistemológicas absolutistas. (EL-HANI, 2007, p.300-301).

Como se pôde acompanhar nos últimos parágrafos, a imagem da ciência se alterou significativamente ao longo do século XX, e mesmo não havendo consenso total entre os principais filósofos da ciência, alguns pontos de convergência, como se observou acima, podem ser apontados, e são eles que vêm exercendo, e devem

exercer cada vez mais, impacto no Ensino de Ciências. O item seguinte também contribui para que se tenha uma idéia ainda mais precisa de tal impacto.

6 A IMPORTÂNCIA DA CONTRIBUIÇÃO DE POPPER PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS

Com a intenção de avançar em relação às contribuições da Filosofia da Ciência para o Ensino de Ciência, Alberto Villani apresenta (VILLANI, 2001, p.176- 179) algumas questões interessantes para a reflexão dos que trabalham com estes temas. Como a intenção desta tese coincide com esta proposta de Villani - de explorar com mais profundidade algumas questões e analisar as implicações fundamentais de certos debates da Filosofia da Ciência -, serão consideradas algumas das questões por ele apresentadas.

Essas questões serão aqui consideradas não só pela sua relevância, mas também como oportunidade para se entender a importância da contribuição de

Popper para o Ensino de Ciências.