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Como pontuamos anteriormente, a proposta hermenêutica que Santos propõe, visa a uma dupla atividade interpretativa: de suspeição epistemológica e de recuperação pragmática. Assim sendo, a proposta de Popper, revisitada por Springer de Freitas, pode nos auxiliar na tarefa de explicar como novos fragmentos teóricos, pós-modernos e de natureza especulativa podem, ao adentrar em um conjunto epistemológico tradicional, crescer a partir do diálogo com este saber e fazer com que este evolua a partir da crítica que esses fragmentos lhe imprimem.

Nesse diálogo, teorias se deslocam dentro do disco epistemológico do conhecimento científico e, nesse movimento de mão dupla, do centro para a periferia, daqueles com menor potencial para rebater os novos problemas suscitados pela crítica, e da periferia para o centro, daqueles com maior potencial para rebater os novos problemas levantados, a ciência evolui sem rupturas desestruturantes, o que no direito significa “observar a dogmática de uma forma

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SALDANHA, Nelson. Ordem e hermenêutica: sobre as relações entre as formas de organização e o pensamento interpretativo, principalmente no direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.p. 3.

não dogmática” 144, ou seja, fora dos moldes da autojustificação moderna e na busca pela superação de suas limitações.

Levando em conta nosso objeto, a meroencefalia fetal, podemos, através de um exemplo prático, dirimir dúvidas que naturalmente surgem quando somos colocados diante de uma explanação teórico-abstrata. Quando essa anomalia fetal surge no meio jurídico, ela adentra no sistema como um fragmento revestido de uma complexidade que pressiona a baixa complexidade das bases modernas que estruturam o saber dogmático, provocando a desconfiança em sua capacidade de dar respostas passíveis de eficácia e legitimação em contextos politicamente democráticos e eticamente plurais como o contemporâneo.

Tradicionalmente, a natureza arbitrária da resposta formulada seria encoberta pela autojustificação de sua pretensa cientificidade na medida em que todo saber racional metodologicamente controlado era legítimo por ser eficaz, ou seja, por impedir o non liquet e por apresentar sempre uma solução para a lide apresentada, o que, na pós-modernidade, não se mostra possível pela descrença que se tem nessa própria racionalidade (hermenêutica de suspeição)145.

Contudo, para que tal raciocínio prossiga, temos de estabelecer previamente o que entendemos por modernidade, direito e complexidade para, depois, podermos explicitar como esse instrumental teórico pode dar conta da problemática suscitada neste projeto, ou seja, visualizar as características de uma teoria pós-moderna acerca do fenômeno vital através do apontamento das limitações das propostas teóricas tradicionais146.

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ADEODATO, João Maurício.O pensamento dogmático e sua crítica In: Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 29.

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Lembramos que, nos casos difíceis, qualquer resposta jurídica em forma de decisão tende a ser vista como arbitrária por uma das partes. No caso em tela, grupos feministas partidários da escolha livre da gestante e grupos católicos partidários da tutela da vida do nascituro, pelo menos, são estes os de maior visibilidade. Sem diálogo e sem uma proposta teórica mediadora, diferenciada das tradicionais em conflito, a polêmica persiste indefinidamente.

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Nesse intuito, a proposta de um ceticismo crítico que busca encontrar uma postura ética com ele compatível147 se aproxima bastante da proposta da dupla hermenêutica de suspeição/recuperação que aqui nos serve de esteio investigativo, e dela podemos retirar os conceitos de modernidade, direito e complexidade, embora este último necessite ser revisitado para se compatibilizar com nossa perspectiva investigativa, se não vejamos.

Adeodato148 leciona que a modernidade é marcada por uma diferenciação estrutural entre subsistemas sociais que inexiste na pré-modernidade e que tal característica se aplica ao direito modernamente organizado. Ou seja, enquanto na pré-modernidade não há separação entre o lícito/ilícito jurídico, moral e religioso, com as contribuições de Pufendorf e Thomasius, no Século XVII, a diferenciação se efetuará através do estabelecimento das dicotomias que possibilitam a classificação de ações sociais específicas em cada um desses subsistemas. O direito moderno seria aquele que se emancipa da influência externa de outros subsistemas e evolui a partir de mecanismos internos (autopoiesis/auto-referência), definindo o que é juridicamente lícito ou ilícito. Assim sendo, dentre as várias visões de mundo, religiosas, morais, etc, o direito escolhe uma e a dogmatiza na qualidade de norma jurídica prescritiva que passa a se proteger da discordância axiológica através de sua imposição social, politicamente garantida pelo Estado.

Se, de um lado, a generalidade das normas jurídicas possibilita variadas interpretações e, com isso, uma tolerância com várias visões de mundo, de outro, a necessidade constante de justificar-se perante as visões de mundo que não foram beneficiadas pelo ato interpretativo que fundamenta a decisão judicial o leva à contemporânea crise de legitimidade. Nesse ponto, os pensamentos de Adeodato e Santos se tocam na necessidade de fixar conteúdos axiológicos de forma responsável, buscando evitar que o mundo possa ser pior do que já foi

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ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 3.

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ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 205 a 220.

ou do que é, na forma de “um conhecimento prudente propiciador de uma vida decente”149, ou de uma “ética de tolerância”150.

Resta explicar por que a noção de complexidade apresentada por Adeodato deve ser revista aqui. Para o autor, o direito moderno é um direito mais complexo que o pré-moderno por se diferenciar estruturalmente, ou seja, por tornar-se auto-referente quanto à sua forma, no que concordamos, pois o próprio, enquanto cético, nos adverte dos riscos de uma subserviência cega à dogmática nos moldes da postura positivista da modernidade.

Contudo, é preciso elucidar que, quando dizemos nesta investigação que o direito moderno é de baixa complexidade, referimo-nos à sua base epistemológica, o que significa que ele, em sua auto-referência, torna-se autolegitimado, isto é, avesso a problematizar seus próprios pressupostos, o que limita a ética da tolerância, que nele observa Adeodato, e amplia à mencionada crise de legitimidade decorrente de sua postura autoritária, sendo isso o que postulamos.

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