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POPULAÇÕES TRADICIONAIS E O CONHECIMENTO TRADICIONAL

2 A BIODIVERSIDADE E A SUA PROTEÇÃO

2.4 POPULAÇÕES TRADICIONAIS E O CONHECIMENTO TRADICIONAL

O conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos, ou à sua forma de utilização, está definido perante a legislação infraconstitucional brasileira, perante a Constituição brasileira este somente foi mencionado como digno de proteção, por meio do texto da Medida Provisória n. 2.186-16/2001, como: a informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético.

Paulo de Bessa Antunes (2007, p. 449) entende que “o conceito normativo não é de simples compreensão, ou mesmo de singela aplicação. O sujeito de direito que se pretende tutelar não é uma pessoa física ou jurídica, mas uma comunidade que vive de forma tradicional ou diferenciada da sociedade envolvente”.

Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Barbosa de Almeida, na obra Enciclopédia da Floresta, definem conhecimento tradicional associado como “conhecimento tradicional da natureza é a interação de duas dimensões: pressuposições culturais que tendem a ter uma história longa e uma ampla distribuição geográfica”.

Então, a primeira ilação que se pode fazer é a de que o conhecimento tradicional que estaria protegido, ou abrangido pelo texto da MP é o que estiver associado ao patrimônio genético. Porém, como os silvícolas não detêm o entendimento do que vem a ser “patrimônio genético”, entende-se, para fins de aplicação da legislação, que o conhecimento tradicional tutelado é o pertinente a toda a biodiversidade.

A proteção outorgada pela legislação em vigor ao conhecimento tradicional abrange tanto a proteção deste direito em si, quanto os direitos relacionados a seu uso, sendo, pois, considerado ato ilícito a utilização deste conhecimento por pessoa não autorizada pelo CGEN.

Desta proteção outorgada pela legislação ao direito da comunidade tradicional, decorre o texto do artigo 31 da MP n. 2.186-16/2001, que estipula que para a concessão de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, os requisitos eleitos pela legislação citada devem ser observados, devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento tradicional associado, quando for o caso.

Uma separação de conceitos também se faz pertinente, pois, comunidade indígena e comunidade tradicional, não devem ser consideradas como sinônimos, pois, não obstante ambas as comunidades se identificarem como uma coletividade específica e distinta de outras com as quais convive, e com o conjunto da sociedade do país onde está, ambas possuem características que as distinguem. Os silvícolas são povos ou populações que habitam o país ou determinada região geográfica e que ainda conservam, no todo ou em

parte, sua instituição social, econômica, cultural e política12

12 Artigo 1º da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho

, ao passo que a população tradicional podem ser tidos como aqueles que detêm costumes não-escritos, crenças e rituais transmitidos de geração em geração, mas, não necessariamente ocupam o mesmo território.

O art. 3º do Decreto n. 6.040/2007 dispõe que povos e comunidades tradicionais são: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Antunes (2007, p. 449) diz que:

É importante que não se confundam comunidades tradicionais com comunidades pobres e marginalizadas em geral, embora, em muitos momentos, as duas condições possam estar presentes em um mesmo agrupamento social. Os pequenos produtores rurais, necessariamente, não ostentam a condição de comunidade tradicional, para os efeitos da aplicação das normas da CDB. Igualmente, penso que a definição não pode ser aplicada para comunidades urbanas. Sem perder de vista que a minha opinião pode ser tida por reducionista, parece-me que a CDB objetiva a proteção da diversidade biológica em ecossistemas não urbanizados e as suas regras de tutela e proteção de conhecimentos tradicionais dirigem-se às populações que, aos olhos dos “seres urbanos”, praticam um modo de vida “tradicional”.

Antunes (2007), por sua vez, conceitua as populações tradicionais como aquelas que “em princípio, encontram seus habitats em florestas nacionais, reservas extrativistas e reservas de desenvolvimento sustentável, ou seja, os grupos que são conhecidos como povos da floresta, caiçaras ou outros que, reconhecidamente, tenham uma forma de vida peculiar e característica, distinguindo-os da comunidade nacional”.

Diegues (1996) define as populações tradicionais como pequenos produtores que se constituíram no período colonial, freqüentemente nos interstícios da monocultura e dos ciclos econômicos, e formaram populações que detêm conhecimento dos recursos naturais que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo geralmente transferidos de geração em geração, por via oral, possuem noção do território que ocupam, econômica e socialmente e possuem moradia nestes lugares por várias gerações.

Então, pode-se dizer que o conhecimento tradicional é aquele relacionado com a cultura de um povo e com o ecossistema no qual esta vive, e que pode pertencer a pessoas de culturas diferentes, enquanto o indígena é relativo aos que se identificam como tal e são pertencentes a uma determinada região, o que leva à conclusão de que o conhecimento indígena pode estar contido dentro do conceito de tradicional, por ser o outro mais abrangente.

Então, o conhecimento tradicional é aquele empírico, acumulado ao longo das gerações, proveniente das observações da natureza e de seus fenômenos, notadamente incrustado de práticas religiosas, e pertence não a um indivíduo, mas a toda a uma coletividade.

Bertogna & Cibim (2006, p. 132) mencionam que os conhecimentos tradicionais associados são:

“conhecimentos ou técnicas surgidos da mais elementar ciência – da observação da natureza. Esses conhecimentos não alcançam os níveis de inventividade exigidos para a concessão de patentes ou cultivares, além disso, muitas vezes não têm aplicação industrial imediata. Ademais, grande parte dos conhecimentos tradicionais associados é utilizada por toda a comunidade, através de diversas gerações, logo, esses conhecimentos não são absolutamente novos, e, assim, não preenchem o requisito da novidade. Ademais, não são, via de regra, expressados em suporte material. São transmitidos oralmente, sem que qualquer documentação seja produzida. Mais esta característica lhes retira a possibilidade de ser objeto de proteção pelos tradicionais sistemas de propriedade intelectual.”

Entre as décadas de 80 e 90, diversos debates foram travados tanto sobre a proteção dos recursos da biodiversidade, quanto sobre a proteção que deve ser concedida ao conhecimento tradicional a estes associado, podendo ser citado o texto da CDB como um marco, pois foi o primeiro acordo multilateral a regular a conservação e o acesso aos recursos genéticos e a reconhecer o papel das comunidades tradicionais nas áreas protegidas.

Neste sentido é a alínea J do artigo oitavo da CDB que disciplina que cada parte contratante deveria:

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.

Assim, vê-se que a CDB legou aos Estados o direito soberano de regular o acesso a tais bens, restando, pois, inconteste que estes não são um patrimônio da humanidade (ZANIRATO & RIBEIRO, 2007), e a contrapartida pelo seu uso se daria pela transferência de biotecnologia.

No caso do Brasil, o parágrafo único do artigo 9º da MP 2.186-16/2001, estabelece que qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.

Pretendeu-se, então, com este dispositivo, proteger o conhecimento das pessoas, ainda que individualmente, que dentro da comunidade possuem tais conhecimentos, tais como xamãs, pajés, curandeiros, ou outros nomes que lhes possam ser dados.

O maior problema encontrado é a questão da adaptação do conceito de patente e direito de propriedade industrial à proteção dos direitos comunitários (BASTOS JR. 2001), haja vista que a criação de instrumentos regulatórios de direitos coletivos exige grandes inovações jurídicas e políticas.

Bertogna & Cibim (2006, p. 133) mencionam que o consenso atingido pelos estudiosos do tema foi no sentido da necessidade de criação de:

(i) bancos de dados que documentem os conhecimentos tradicionais associados, para fins de consulta pelos escritórios de patentes, com vistas à composição do estado da técnica e aferição da novidade de invenções e (ii) sistemas sui generis de propriedade intelectual que garantam a exclusividade de exploração comercial dos conhecimentos e, consequentemente, a faculdade de os titulares autorizarem o uso por terceiros, mediante adequada retribuição e que, enfim, confiram aos titulares o devido reconhecimento moral.

Segundo Paulo de Bessa Antunes (2007, p. 338):

Tanto a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI quanto a Organização Mundial do Comércio (OMC) têm dedicado muita atenção às intensas e nem sempre tranqüilas conexões entre o TRIPS e a CDB, especialmente naquilo que concerne à necessária proteção legal do conhecimento tradicional associado à diversidade biológica.

Prossegue o referido autor mencionando que o Brasil é um dos principais atores envolvidos em todas as discussões pertinentes ao tema, pois, além de ser “o maior detentor de diversidade biológica do mundo, possui também um expressivo número de comunidades locais e populações indígenas que são detentoras de imensos conhecimentos tradicionais sobre os seus habitats” (2007, p. 338).

Ressalte-se além disso, e como já mencionado, o papel do Brasil como líder na criação do regime internacional de ABS, corroborando por sua atuação na posição de Presidente do Grupo dos Megadiversos Afins.