• Nenhum resultado encontrado

Ao longo dos séculos, muitos pensadores procuraram identificar e solucionar a origem das desigualdades. Livros foram escritos, ideologias foram fundadas, guerras foram travadas e, embora tenhamos avançado significativamente no que diz respeito aos direitos humanos, continuamos desiguais. Uns têm mais, outros têm menos, às vezes quase nada: sabemos que muitos homens, mulheres e crianças – aproximadamente dois terços da humanidade – ainda vivem apartados de condições básicas de sobrevivência e têm poucas chances de manifestar publicamente seus pensamentos. Do mesmo modo, a compreensão mútua entre os povos continua sendo um ideal que, nesses tempos de conflito entre ocidente e oriente, entre citadinos e campesinos, entre apocalípticos e integrados14, se mostra cada vez mais distante. Nenhuma das soluções até agora propostas foram suficientes para promover uma sociabilidade saudável. Mas, afinal, por que nem as ideologias que

14

Referência à obra de Umberto Eco, Apocalípticos e Integrados. Os termos em questão foram usados pelo autor para designar os pesquisadores de duas correntes teóricas antagônicas que buscaram analisar a cultura de massa: respectivamente, os críticos da Escola de Frankfurt e os funcionalistas.

pareciam mais corretas e justas conseguiram fazer com que saíssemos de nós mesmos para compreender o outro, suas razões e suas angústias, de modo que assim constituíssemos um mundo mais igualitário? Talvez haja um pouco de pretensão no ímpeto de responder a essa pergunta, mas me atrevo a sugerir que a falha de todas essas ideologias, das práticas e instituições que promoveram, foi estarem alicerçadas em soluções puramente materiais. Mas tais ideologias não se desenvolveram assim por força do acaso. Desde os seus primórdios, a cultura ocidental tem privilegiado a objetividade em detrimento da subjetividade e, como sabemos, esta tendência culminou no materialismo reducionista que limita o real à esfera das coisas tangíveis, mensuráveis, quantificáveis. Grande parte dos cientistas, em prol da esterilidade de seus saberes, adotou uma atitude de desconfiança, senão de drástica recusa, a tudo o que se refere à emoção.

Das múltiplas dimensões da razão privilegiou-se uma, a instrumental- analítica, razão tecnológica com a qual se conseguiu em parte o domínio do mundo […].

Mas esse tipo utilitário de razão cobrou um preço excessivo. Ocasionou uma espécie de cegueira, verdadeira lobotomia no espírito humano, que ficou insensível à mensagem da beleza e da grandeza do universo. Fez-se cego ao mistério do real, colocando sob suspeita a emoção, o afeto e a ternura sob o pretexto de que impedem o conhecimento objetivo da realidade (BOFF, 2009, p. 112).

Embora o ethos da ciência tradicional tenha seu mérito o por meio dele tenhamos conquistado avanços significativos que resultaram em maior bem-estar para a humanidade, chegamos a um ponto do desenvolvimento crítico que nos permite questionar seus valores enquanto modelo para o futuro. Se até agora não conseguimos solucionar nossas misérias históricas por meio de conjecturas materialistas, talvez seja o momento de os afetos tornarem a fazer parte do pensamento ocidental, auxiliando-nos na formulação de propostas para a organização de uma sociedade saudável. Octavio Paz escreveu, muito oportunamente, que “o crime dos revolucionários modernos foi o de expulsar do espírito revolucionário o elemento afetivo. E a grande miséria moral e espiritual das democracias liberais é a sua insensibilidade afetiva” (1994, p. 154). Historicamente, a falência do sistema socialista, no final do século XX, nos convida a refletir sobre isso.

O fim do comunismo nos obriga a ver com maior rigor crítico a situação moral de nossas sociedades. Seus males não são exclusivamente econômicos mas sim, como sempre, políticos, no bom sentido da palavra. Ou seja, morais. Têm a ver com a liberdade, a justiça, a fraternidade e, enfim, com o que chamamos comumente valores. (PAZ, 1994, p. 146).

Portanto, Paz nos falou de uma solução que não é material, secular, mas abstrata. Para além de qualquer resposta utilitária aos problemas da sociedade, entre eles o problema da comunicabilidade, existe a possibilidade de abrirmos novos caminhos pelo campo dos afetos. Nesta, teríamos grandes chances de encontrar poderosos elementos de mobilização, sentimentos que, tais como um dínamo, impulsionassem as ações humanas. No seio das comunicações contemporâneas, carecemos de algo capaz de suprimir as desigualdades, a fragmentação do mundo especializado, a parcialidade dos discursos hegemônicos. Não parece possível que esse “algo” seja puramente técnico, mas que antes seja manifestação de uma vocação humana substancial e irrevogável: o amor. De acordo com Paz (1994), o amor tem sido um sentimento constantemente criador e subversivo, capaz de engendrar a aparição de novas práticas, ideias e instituições ao longo da história. E, nesse início da formação de uma sociedade mundial, sua imagem universalmente compartilhada se tornaria inseparável do destino da civilização. Logo, ele exerceria uma função social de suma importância no mundo contemporâneo, ajudando a aglutinar os diferentes segmentos sociais numa única comunidade humana. O amor seria também uma espécie de razão, que funciona como antídoto às cisões do materialismo: ele promove a abertura, a entrega e a empatia. “O amor é vida plena, unida a si própria, o contrário da separação. […] o amor é o descobrimento da unidade da vida” (PAZ, 1994, p. 130).

O amor nos interessa porque é ele que confere às associações humanas o necessário equilíbrio de interesses, tornando-as coesas a partir do envolvimento afetivo. Não seria essa a coesão que leva à totalidade, ao compromisso e à participação profunda de que tanto nos falou McLuhan?15 Os membros de uma tribo não estão unidos por laços de afeto? Assim, subtraímos o poder das máquinas para devolvê-lo às pessoas: são elas – e não os chips, parafusos e engrenagens – os protagonistas da história. Ainda que os meios exerçam incontestável influência sobre

15“A aspiração de nosso tempo pela totalidade, pela empatia e pela conscientização profunda é um

as relações humanas, por serem criações do próprio homem, não deveriam ter vigor para sobrepujá-lo. Ao contrário do que tantos pensadores ainda afirmam, as máquinas teriam apenas relativa autonomia; a verdadeira autonomia seria nossa. A consciência dessa liberdade em relação ao desenvolvimento tecnológico é indispensável, pois não interessa que estejamos subordinados a qualquer espécie de totalitarismo, inclusive ao totalitarismo da técnica.

No âmbito da comunicação, o amor tem muito a contribuir, uma vez que falamos tanto na formação de uma sociedade mundial afeita aos moldes da tribo. Retribalizar as relações – se isso for possível – não é fazer apenas com que sejam em maior número e/ou maior extensão, mas que sejam também mais afetivas. Se o ser humano é “um ser de comunicação, um nó de relações ilimitadas” (BOFF, 2009, p. 133), tanto mais o será se agir segundo uma perspectiva amorosa. O amor nos resgata dos individualismos que fracionam a coletividade. Por meio dele, recobramos a noção de que somos seres socialmente inscritos e de que, para a saúde do grupo, as necessidades do “eu” necessitam dialogar estreitamente com as necessidades coletivas. Não se pretende aqui desqualificar a subjetividade emancipada pelo ideal burguês, que a duras penas conquistou o direito à individualidade, mas reavaliar seu lugar ao lado do sentimento de pertença ao conjunto humano.

Com o advento do papa Francisco, parece que o amor está em voga na Igreja Católica. Mas, como mencionamos anteriormente, sua chegada coincide com um dos piores momentos da entidade. Não por acaso, outro Francisco, o de Assis, atuou de maneira definitiva em ocasião de uma crise de imagem ocorrida na Igreja oitocentos anos atrás. Sem fazer uso de artifícios muito engenhosos, ele e seus primeiros companheiros agiram na base da sociedade, alterando o destino da mais poderosa instituição medieval. E não o fizeram com manifestações violentas. São Francisco de Assis “falou a linguagem do profeta pacífico positivo. Viu que a Igreja estava em ruínas. Não a denunciou, não a criticou, não a condenou. Amou-a sinceramente. Colheu as pedras do caminho não para atirá-las contra a Igreja ou contra a sociedade, mas para reconstruir uma e outra com muito amor e carinho”

(BIAZUS, 1983, p. 63).16 É precisamente isso o que os católicos de hoje esperam de Bergoglio: como o primeiro Francisco, ele deve saber colher pedras.

“O homem se comunica por todo o seu ser, mas especialmente pelo coração. ‘Cor ad cor loquitur’ (O coração fala ao coração)” (BIAZUS, 1983, p. 56). Qualquer que seja o meio responsável pela difusão das mensagens – cordas vocais, papel impresso, transmissões radiofônicas ou Internet banda larga –, não podemos negar o fato de que o ser humano se comunica para atender ao simples desejo de compreender e ser compreendido. Por mais que busquemos ser objetivos, a comunicação tem raízes fincadas no substrato da sensibilidade. A técnica não modificaria esse aspecto primordial. Por isso, acreditamos que o sucesso mediático de Bergoglio não deva ser interpretado como resultado inerente ao uso técnica, mas como algo que nos convida a olhar para a dimensão simbólica do ato comunicativo. O papa Francisco realmente é popular; possui milhões de seguidores no Twitter, ganha homenagem em quadrinhos, posa para foto de smartphone. Isso, contudo, não seria o que faz dele um comunicador notável. Como São Francisco de Assis, seu êxito estaria na adoção de um projeto de comunicabilidade pautado pelo amor. Assim, com o presente estudo, esperamos dar uma modesta contribuição teórica que permita reavaliar a importância dos afetos no problema geral da comunicação. Dois Franciscos, separados por oito séculos de História, serão aqui aproximados a fim de atender a esse objetivo. Afinal, qualquer que seja a técnica, ou ainda que toda a técnica desapareça, a atitude do homem permanece.

16

O autor faz alusão às igrejas literalmente em ruínas que foram reformadas por Francisco e seus confrades. Embora não se saiba ao certo em quantas obras o santo trabalhou pessoalmente, não há dúvida em relação à sua participação como pedreiro nas reformas das igrejas de San Damiano, San Pietro e Porziuncula.

Capítulo 2. O problema da comunicabilidade e outras definições teóricas