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a cidade vazia (2004), filme dirigido por Maria João Ganga, é a primeira produção fílmica realizada por uma mulher em Angola e a segunda produzida após a guerra civil que sucedeu o processo de independência do país. Lançado no International Film Festival de Roterdã, o filme recebeu o Prêmio Nacional de Cultura e Artes de Angola, na categoria cinema e audiovisuais, foi premiado no Festival de Cinema Africano em Mi- lão, no Festival Internacional de Filmes de Mulheres na França e no Festival de Paris, onde recebeu o Prêmio Especial do Júri. O sucesso alcançado em Angola fez com que a obra fosse lançada em DVD.

A narrativa começa ainda durante a passagem dos letreiros: enquanto são apresentados ao espectador os apoiadores da produção e os atores que protagonizam a história, ouve-se um diálogo que parece introduzir um filme de guerra. A ideia é reforçada pelos planos seguintes: é mostrada a hélice frontal de um avião girando para alçar voo, há um corte para o título do filme e, assim que se volta à imagem, a câmera já adentrou o avião, onde apare- cem, sequencialmente, uma freira, algumas crianças ao redor dela, militares fardados e um caixão bem no centro do espaço cênico.

Se a guerra impacta o receptor logo de início, será, no entanto, pouco retomada enquanto imagem ao longo da narrativa. Há referências na fala do protagonista, o pequeno N’Dala, mas o único momento em que o espectador tem uma imagem dela é por meio de uma divagação do menino, que rememo- ra o ataque que queimou sua casa e matou seus familiares. A menção à guerra em um filme que situa sua ação em 1991 parece evocar a memória recente de um país que esteve em guerra de 1961 a 1975 contra o colonizador português e, após a independência, mergulhou em guerras civis atravessa- das por intervenções internacionais, reverberando o contexto mais amplo de tensões que marcaram a Guerra Fria.

O avião aterrissa em Luanda e, enquanto a freira dá ordens às crianças dentro de um ônibus, N’Dala foge. Há novamente um corte, para a dedicatória

do filme, e a câmera encontra-se já dentro de uma sala de aula, onde os alunos se organizam para encenar As aventuras de Ngunga, conhecida obra literária do escritor angolano Pepetela. Escrito em 1972, o livro acompanha a trajetó- ria do jovem rapaz que, transitando pelo território angolano, constitui-se como sujeito no embate com as diversas situações com as quais é confronta- do. O olhar crítico que norteia os questionamentos do menino não impede a aposta nos valores que sustentam o trabalho coletivo de luta pela construção de um futuro mais digno para todos. A trajetória de Ngunga é também de es- truturação de sua integridade e maturação de uma consciência política que continua a depositar as esperanças na união daqueles que, se evidentemente não são infalíveis, “bons ou maus, todos tinham uma coisa boa: recusavam ser escravos” . A aposta é na coletividade de um “nós” que

recusamos viver no arame farpado, nós os que recusamos o mundo dos patrões e dos criados, nós os que queremos o mel para todos. Se Ngunga está em todos nós, que esperamos então para o fazer crescer?

A justaposição dos planos aponta para a intertextualidade que atraves- sará a caminhada do garoto N’Dala pelas ruas de Luanda, enquanto é procu- rado pela freira.

Se a caminhada do garoto pela “cidade vazia” poderia parecer irônica para quem conhece o cenário superpopuloso de Luanda, justifica-se pelo mo- mento em que decorre a trama, marcado ainda pelo toque de recolher na capi- tal. Inúmeras outras pistas são também capazes de situar historicamente a narrativa, signo de um momento em que a busca por abandonar as heranças de um contexto de violência colonial ainda é premente.

O pequeno garoto, em seu trânsito pela cidade, busca uma maneira de “voltar no Bié” – afinal, seus familiares só poderão ser encontrados novamen- te naquele céu. Sua caminhada apresenta espaços e sons da cidade, modos de ser e interagir, farras, danças, histórias; o próprio cinema. N’Dala vai aos

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poucos conhecendo a lógica urbana, faz amizades, consegue abrigo por in- sistência de seu amigo Zé.

A realidade complexa de uma cidade que tem a precariedade e a infor- malidade como marcas evidencia-se por meio de tensões: Zé acolhe o meni- no e se preocupa muito com ele. Por isso, insiste para que desista de se aventurar sozinho, “como Ngunga”, e arruma um abrigo para o companheiro com a prima Rosita. A prostituta, ao mesmo tempo que aceita abrigá-lo, obri- ga a criança a vender cigarros, competindo por espaço com tantos outros que exercem a mesma função. Joca, também chamado de primo, acolhe o menino, lhe dá presentes e ensina-o a fundir latas de metal para construir carrinhos de brinquedo como aquele que o garoto carregava desde o início do filme. A mesma lógica que considera todos “familiares”, balizada pela solidariedade em um contexto que apresenta poucas alternativas à sobrevi- vência aceitável, é aquela que explora o trabalho infantil em troca de abrigo e comida e que coloca crianças em situação de vulnerabilidade e risco enquanto buscam contribuir com parcela do sustento. A ambiguidade de um contexto espinhoso para todos os envolvidos acaba por enredar as persona- gens em situações de difícil resolução. A poderosa imagem encontrada por Maria João Ganga para o fechamento da trama convida o espectador a refle- tir sobre os rumos de uma nação que não cessa de ser continuamente cons- truída, alicerçada em profundas contradições.

JACQUELINE KACZOROWSKI é doutoranda em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa na Universidade de São Paulo, sob orien- tação de Rita Chaves. Trabalha sobretudo com literaturas africanas, bus- cando investigar as intrincadas relações entre produção artística e contexto histórico-social.

“AQUI AONDE

EU NUNCA VIM”:

O REEMPREGO

DE IMAGENS NA

ELABORAÇÃO DE

UMA“CONTRA-

-HISTÓRIA” DO

COLONIALISMO

TARDIO PORTUGUÊS