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Por que Luhmann recorre à semântica da justiça em sua teoria dos sistemas autopoiéticos?

No documento Justiça na teoria dos sistemas autopoiéticos (páginas 123-128)

2. JUSTIÇA NA TEORIA DOS SISTEMAS AUTOPOIÉTICOS

2.4 Por que Luhmann recorre à semântica da justiça em sua teoria dos sistemas autopoiéticos?

Mesmo trabalhando com a perspectiva da alta complexidade da sociedade atual, Luhmann preserva a antiga temática da Justiça nos debates sobre a sociedade funcional de caráter autopoiético.213

Não sem razão. Dentro do direito ainda persistem as discussões sobre o tema e a questão continua longe de ser superada. Mesmo autores como Kelsen e sua busca por uma teoria “pura” a ser aplicada ao direito não conseguiram superar o problema da justiça.

No caso específico de Kelsen, o direito positivo poderá contrariar as ordens atinentes à esfera da justiça214 (conceito mais ético) sem que, em razão disso, seja considerado inválido. Na teoria pura, direito é direito posto (positum – posto e positivo)215 decorrente da auctoritas do legislador, considerado válido

por respeitar às condições formais previamente estabelecidas dentro de determinado sistema jurídico. Assim, fica adistrito ao plano nda validade e, portanto, não precisa observar um contéudo ético mínimo, pois sua natureza está garantida com a existência de “valor jurídico”. Validade e justiça são juízos de valor diferentes podendo uma mesma norma ser considerada: válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; inválida e injusta.

213 Com a alteração da estrutura de uma sociedade pré-moderna para uma sociedade moderna

funcionalmente diferenciada, também a questão da justiça se altera substancialmente. Com o abandono da semântica jusnaturalista pré-moderna e a assunção de uma semântica moderna positivista, a ideia de Justiça se descarrega de seu antigo status metafísico e ontológico, deixando de lado toda e qualquer herança que a remeta ao jusnaturalismo atípico aristotélico, ao jusnaturalismo típico e ao jusracionalismo, que apenas se desmantela após Hegel e os pandectistas (Ver: El derecho de la sociedad, p. 281 e ss).

214 O que é justiça?

– Justiça, direito e política. São Paulo: Martins Editora, 2011.

Kelsen tenta expulsar da teoria do direito qualquer preocupação com o que seja considerado justo ou injusto. Entende que justiça contém valoração relativa sobre a qual não há consenso teórico ou mesmo no âmbito da praxis. Em outros termos, discutir sobre justiça seria tarefa da ética, ciência que se destina a analisar as normas morais e, assim detectar o que pode ser considerado justo ou injusto.

Importante lembrar que esta tentativa de extração da justiça das discussões internas do direito, não significa que Kelsen não esteja preocupado em discuti-la e em investigar uma concepção para ela. Significa apenas que pretendia colocar a questão em outros campos de estudo. É na ética que, para ele, será possível debater sobre justiça ou injustiça em vários níveis (como o político, o econômico).

Luhmann, inversamente, capta o sentido e a necessidade atrelar a justiça para a teoria do direito. Resgata seu sentido sob a perspectiva autopoiética e a trata dando uma função específica e curial ao sistema do direito: é a fórmula de contingência do sistema.

O fato é que impossível excluir esta discussão do direito. No âmbito de aceitação (pode-se inclusive, inocar o âmbito da eficácia) do direito pelos destinatários finais das comunicações sociais a ele relativos, a questão da justiça é de primeira ordem. É o primeiro ponto a ser questionado e o primeiro a ser rechaçado: uma determinada situação jurídica é justa?

De modo sagaz Luhmann aproveita o conceito de justiça (como faz ao estudar outros sistemas sociais autopoiéticos)216 inserindo-o na esfera de

correção das atividades sistêmicas. Passa ser ela, a Justiça, como acima desenvolvido, a ser interpretada como: fórmula de contingência ou complexidade adequada do sistema jurídico.

Havendo situações conflituosas no interior do sistema, aplica-se a fórmula para corrigir a contingência ou, em termos diversos, adéqua-se a complexidade do sistema, reduzindo o nível de conflituosidade sistêmica.

216

“Com a diferenciação dos sistemas funcionais particulares, se desenvolvem fórmulas de contingência (referentes a cada um deles) (...)” (La sociedad de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2006. p. 371).

São fórmulas aplicáveis a casos extremos nos quais haja dúvida de modo a afirmar “o que para cada sistema constitui o especificamente indiscutível”.217 São exemplos de fórmulas de contingência: a escassez para a

economia, a legitimidade para o sistema político, a justiça para o sistema jurídico, a limitacionalidade para o sistema científico.

Fórmula de contingência importa naquilo que sempre está em questão dentro do sistema, ou seja, é a instância em que algo apenas pode ser definido de momento em momento sem uma resposta final ou definitiva. Trata- se de uma condição essencial para a continuidade da circulação comunicativa autopoiética no sistema. No caso específico do direito, justiça seria aquilo que é definido como consistente internamente e adequado ambientamente no caso especificamente tratado.

Ou seja: há para o sistema do direito como para outros sistemas sociais, uma fórmula de correção sempre presente, mas aplicável especialmente para os casos de difícil solução, quais sejam, aqueles que apresentam paradoxo autorreferencial,218 serve para apontar quais os pontos do sistema não são discutíveis e, claramente, nestes casos, se determinada decisão contraria tais pontos indiscutíveis estará a contrariar a própria lógica (aqui entendida no sentido de forma) de todo o sistema, no caso do direito, esta diretriz inviolável é aquilo que convencionamos chamar justiça.

Por mais que esteja baseada em ambiente filosófico, a justiça reflete problemas que dizem respeito à sociedade, guarda em si problemas reflexivos os quais a humanidade tem debatido há muito tempo e não superado: a racionalidade e a objetividade.

Por mais que variem os teóricos, seja na teoria da ação individual, seja na teoria dos sistemas, como bem separa Habermas,219 escondida atrás da justiça

há a questão da razão.220

217 Idem, ibidem.

218 O paradoxo da autorreferência, como decorrência lógica da própria autopoiesis, é superado

fundamentalmente pelo “re-entry criativo”, que desparadoxiza o sistema, e ao mesmo tempo desparaliza sua circularidade operacional e recursiva (SPENCER BROWN, Laws of form, p. 69 e ss.).

Como em toda situação multifacetada, aqui também o problema aparece com duas faces: de um lado a faceta individual eclipsada na teoria dos sistemas pela coletividade, ou seja, o que quer dizer “justiça” para os sistemas psíquicos e sistemas sociais que não sejam o direito? De outro lado, aparece a faceta mais proeminente da teoria dos sistemas autopoiéticos: o que significa justiça em termos de uma sociedade de comunicação autorreferencial?221

Para analisar cada uma dessas perguntas é necessário ousar agir do modo sugerido por Norberto Bobbio,222 ao analisar o desenvolvimento do

pensamento de Kant sobre o direito, no sentido de que “antes, quem se apega ao direito positivo, como faz o jurista, não poderá nunca estabelecer o que é justo e injusto (quid sit jus), mas poderá somente estabelecer se um determinado fato ou ato seja lícito ou ilícito sob o ponto de vista jurídico (quid sit jus). Em linguagem moderna, poderíamos dizer que o jurista que não domina o direito positivo pode, sim, estabelecer o que é válido sob o ponto de vista jurídico (ou problema da validade do direito) mas não o que vale como direito (ou problema do valor do direito). A única maneira para se chegar a compreender o direito como valor, ou seja, como ideia de justiça, é abandonar o terreno empírico, ou seja, à razão pura”.223

220

Utilizamos aqui afirmação exposta na “teoria do discurso” de Habermas. Para Luhmann, a racionalidade remete a apenas uma dimensão possível dos sistemas funcionais. No que concerne à razão, como projeto inacabo do iluminismo, Luhmann o abandona definitivamente, o considerando esgotado e ultrapassado, nesse sentido se aproximando de Adorno.

221 Para esclarecer a essa questão, Marcelo Neves recorre à obra de Michael Walzer (Esferas

de justiça).

222 A compreensão de Bobbio sobre o pensamento de Luhmann deve ser vista com ressalvas.

Embora o autor italiano tenha procurado analisar a teoria dos sistemas, o fez de forma limitada em Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. (Apresentação de Celso Lafer. Barueri: Manole, 2007). Da mesma forma, qualquer vinculação de Luhmann a Kant é insípida. Numa série de artigos, Luhmann esclarece, que sua postura não é nem crítica e nem empírica (positivismo científico), mas sim de pesquisador como artefato semântico do sistema da ciência, disso decorre sua perspectiva descritiva a partir do sistema científico que opera com o código verdade/falsidade.

223 BOBBIO, Norberto. Os problemas fundamentais do direito no pensamento de Kant. Direito

Tal postura é eminentemente filosófica o que demonstra a necessidade de aproximação entre filosofia e sociologia para compreender o sentido de justiça que é dado por Luhmann na teoria dos sistemas autopoiéticos.224

Nesse mesmo sentido, o que vale225 como direito, na teoria dos sistemas autopoiéticos, não apenas o que é lícito ou ilícito, fator de diferenciação do sistema do direito em relação a outros, o que lhe é trivial, é também se a contingência a que o sistema é submetido em níveis cada vez mais complexos, está adequada a ponto de manter a forma de todo o sistema. Somente dentro de limites adequados de contingênciais e complexidade é que o sistema pode ser considerado justo.

Somente quando a fórmula de contingência é devidamente aplicada, o sistema pode ser tido com valoroso e não apenas como válido.226

Esse movimento racional em que há a aplicação correta da fórmula de contingência do sistema, ou seja, a justiça, tal qual compreendida por Luhmann, serve como mecanismo de universalização das instâncias do direito, tornando racionais as decisões tomadas no decorrer do processo decisório.

Além de, ao movimentar-se dessa forma, refletir as expectativas sociais (sociologicamente, portanto) no que tange ao direito, o sistema do direito encontra seu respaldo lógico, legitimando-se, validando-se e valorando-se da

forma correta em cada caso tratado.

224 Habermas (A constelação pós-nacional: ensaios políticos) chega a discutir a

aproximação entre sociologia e filosofia com o intuito de entender a modernidade enquanto fase histórica.

225 Entenda-

se “validade” jurídica apenas como símbolo que circula no sistema jurídico, ver: El

derecho de la sociedad, p. 154-167.

3. APLICAÇÃO DA FÓRMULA DE CONTINGÊNCIA NO DIREITO

No documento Justiça na teoria dos sistemas autopoiéticos (páginas 123-128)