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PARTE II – Valores na cultura científica brasileira 74

Capítulo 3 Prestígios e Poderes na ciência: valores de imparcialidade e

3.5   Por políticas de ciência 99

Um pontapé inicial na trajetória de participação da SBPC no delineamento das políticas científicas do país aparece já no primeiro ano de publicação da revista. "Ciência e Política”, editorial de 1949, procurava apontar os benefícios que a ciência traria para o progresso humano e da nação brasileira e, ao mesmo tempo, caracterizar como perniciosos certos usos dos conhecimentos científicos, dependendo dos contornos políticos. São dados exemplos de ambas as situações de bom e mau uso dos conhecimentos científicos no mundo e ressaltado o valor da liberdade de pesquisa:

A importância que a ciência assumiu nesta incipiente Era Atômica, como instrumento de domínio político ou desbravamento de regiões inóspitas, pode ser salientada por alguns fatos entre os mais importantes que ocorrem no mundo, atualmente... O que a muitos poderá parecer o sinal de

  decadência de uma civilização baseada na técnica não significará mais do que a sua infância, evidenciada pela insegurança com que a política ensaia a utilização de métodos e meios positivos de progresso, de cuja existência nunca suspeitara.92

Uma das situações se refere a protestos contra o excesso de vigilância policial, mantida por parte do governo americano e francês para garantir o segredo das pesquisas realizadas entre os maiores físicos atômicos de então e a fala (comemorada por cientistas) do presidente americano Harry S. Truman, no centenário da Associação Americana para o Progresso da Ciência: "Não podemos arrastar os bons cientistas para os nossos laboratórios, mas certamente podemos afastá-los, se tolerarmos intromissões levianas ou injustas nos seus trabalhos” 93

É diante das "forças mais poderosas do que a do presidente dos EUA"94 ou de qualquer ramificação da tentativa de controle sobre a pesquisa científica e seu direcionamento para finalidades específicas, determinada por forças políticas, que a SBPC vai levantar sua bandeira.

O dirigismo95, a vigilância intelectual foram rotulados como danosos, utilizando-se exemplos de acontecimentos e de discussões que se davam em outros países, como referência para aquilo que deveria evitar-se no Brasil.96

Apesar de a sugestão de que a melhor relação entre ciência e poderes políticos seria o próprio cientista tornar-se um representante político se dar com tom irônico, no contexto indi- cava as críticas que se fazia sobre a relação entre ciência e política, bem como a pretensão da SBPC (mesmo que não assim autointitulada) de ganhar espaço político no cenário nacional.

Talvez, a mensagem mais otimista das possibilidades de cooperação harmoniosa entre ciência e poderes políticos, nos venha da Palestina, onde um cientista, químico de reputação internacional, foi eleito o primeiro presidente da nova república hebraica. Nas universidades e institutos científicos por ele criados, trava-se a batalha da ciência contra o deserto, no sentido de tornar possível a absorção do elemento humano em                                                                                                                           92 CIÊNCIA E CULTURA,1949, p. 163. 93 CIÊNCIA E CULTURA,1949, p. 162. 94 CIÊNCIA E CULTURA,1949, p. 162. 95 CIÊNCIA E CULTURA,1955, p. 1-2 96 Loc.cit.

  região arenosa, de parcos recursos minerais. A ciência foi aí chamada para melhorar a situação material de milhões de imigrantes que esperam que a técnica lhes abra o único caminho possível de sobrevivência. Em nenhuma parte do mundo existirá talvez uma integração mais perfeita entre poderes políticos e o emprego da ciência, pela simples razão de que o poder político foi entregue a um químico experimentado, dotado ao mesmo tempo de profundo sentido humanístico. Para alguns poderá ser confortador saber que uma única bomba superurânica poderá destruir Moscou ou Nova York, ou para outros será consolador imaginar que nem todas as bombas atômicas criadas ou a serem criadas, poderiam destruir uma ideologia política, mas para uns e outros constituirá certamente motivo de inspiração saber que um instituto de pesquisa científica transforma a areia do deserto em lugar habitável para milhões de seres humanos.97

Apenas quando o CNPq foi criado em 1951, a SBPC vislumbrou algum prestígio da pesquisa científica junto ao Estado. A SBPC celebrou e cultivou o CNPq como um grande aliado nas suas causas, um alento.

O editorial98 que apresenta o CNPq aponta que sua importância era previsível, mas dependeria dos homens que para ele fossem indicados o maior ou menor sucesso de suas realizações. A SBPC ressaltou e apoiou o espírito da lei que criou o Conselho, o da liberdade de pesquisa, uma de suas principais bandeiras. Trinta e cinco anos depois, em 1986, um ex- presidente da SBPC veio a se tornar presidente do CNPq, o cientista Crodowaldo Pavan.

As políticas de ação do Conselho e também da CAPES, criada no mesmo ano, foram na maioria das vezes apoiadas pelos membros da SBPC, se constituindo em âmbitos em que circulavam nomes comuns. Anísio Teixeira, por exemplo, foi designado secretário-geral da CAPES e teve grande importância na mesma.

O CNPq e a CAPES foram frequentemente aplaudidos na revista, principalmente em ações de concessão de bolsas e outras ações de financiamento que traziam os recursos necessários para que houvesse, além do atendimento à demanda de industrialização do país, espaço suficiente para desenvolver a ciência pura, livre de interesses específicos, defendida pela SBPC. Essas instituições materializavam o ideal de financiamento da ciência pelo                                                                                                                          

97 CIÊNCIA E CULTURA,1949. p. 163-164. 98 CIÊNCIA E CULTURA,1951. p.1-2.

  Estado, que, segundo a SBPC, é o espaço possível da busca de interesses amplos para a sociedade, no campo da saúde, da higiene, da educação, livrando-a da "contaminação" de objetivos pontuais do interesse das indústrias99 bem como da então burocracia vigente nas universidades e institutos:

Em face das dificuldades cada vez maiores que entravam os estudos científicos nos institutos universitários e parauniversitários, decorrentes de uma legislação obsoleta que antes embaraça em vez de auxiliar e estimular as iniciativas, a concessão de bolsas de estudo do tipo que o CNPq instituiu, vem a ser, por assim dizer, uma tábua de salvação para o progresso da ciência entre nós... a atitude do CNPq é, na realidade, um raio de esperança na expectativa de que melhores poderão ser os dias vindouros para os que se dedicam à ciência no Brasil.100

Na abertura da 12a Reunião Anual da SBPC, em Piracicaba, Maurício Rocha e Silva

discursa101 sobre "Ciência e Tecnologia". Na oportunidade, explicita claramente a insatisfação da SBPC frente às ações e, especialmente, às verbas destinadas à Comissão Supervisora do

Plano dos Institutos102 (COSUPI). Rocha e Silva103 apresenta como indissociáveis as relações

entre ciência e tecnologia, colocando sempre a primeira como essencial para o desenvolvimento da segunda.

Esse discurso é um dos momentos em que para o público presente à reunião, e na revista, explicita-se o confronto SBPC versus COSUPI.104 A SBPC veio a se defender da pecha com que foram "agraciados" de serem cientistas puros que vivem em Torre de Marfim.105 "Seguramente não haveria no mundo marfim que chegasse!"106, responde Rocha e Silva (para abrigar os mais de 2.000 sócios e mais de 3.000 comunicações lidas e discutidas em 11 reuniões que antecederam àquela).

                                                                                                                          99 CIÊNCIA E CULTURA,1953. p.179. 100 CIÊNCIA E CULTURA,1951. p.1-2. 101 ROCHA E SILVA, 1960, p. 131-139.

102A COSUPI foi criada em 1960 por Juscelino Kubitscheck, após período experimental de dois anos e sempre presidida por Ernesto Luiz de Oliveira Junior. Em 1964, durante o governo Castello Branco, a COSUPI foi reunida com a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e o Programa de Expansão do Ensino Tecnológico (Protec) para constituir um só órgão denominado CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), subordinada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). 103 ROCHA E SILVA, 1960, p.131-139. 104 Passim. 105 Passim. 106 Passim.

  Todo o discurso se dá como um contra-ataque à mentalidade hostil à investigação científica107, que a SBPC percebia nas altas esferas do governo federal. A ênfase no ensino profissional para a formação de técnicos, especialmente dos engenheiros, que era o papel da COSUPI, foi debatida procurando-se esclarecer que o governo não deveria fazer alarde com o

termo tecnologia108 como a chave mestra do desenvolvimento, sem um entendimento de que a

ciência "não pode progredir sem investigação desinteressada dos fenômenos naturais"

A SBPC acusa o governo de insinuar que "a existência da ciência pura é um fator de pobreza do Brasil e que só a tecnologia nos viria a redimir da situação precária",109 enquanto de fato a conclusão deveria ser a oposta:

O Brasil não pode se dar ao luxo de desprezar as ciências básicas, como na realidade o fazem os seus governantes, na sua maioria, justamente porque é pobre, porque não está linha de frente. Ainda não se libertou do colonialismo intelectual, aceito molemente pelos seus dirigentes contentando-se com a ciência importada, na ingênua suposição de que possa gozar impunemente dos benefícios do trabalho de povos mais esclarecidos, mais empreendedores, sem fazer muita força. 110

As verbas do Conselho Nacional de Pesquisas, que o manteria apenas em uma vida inglória, quase vegetativa111, foram comparadas com as verbas da rica COSUPI, em que milhões eram distribuídos por um único homem “sem assessoria técnica para desenvolver o profissionalismo tecnológico sem base na investigação científica”. Tudo isso ameaçava deixar no abandono os poucos centros onde, no Brasil, a ciência teria florescido para dar lugar a "suntuosos edifícios que se erguem em regiões ainda não suficientemente amadurecidas para recebê-los"112

A visão expressa pelo governo e pela COSUPI, de que o investimento na profissio- nalização tecnológica seria possível sem a pesquisa básica, foi considerada contraditória. Rocha e Silva, no discurso de 1960, pretendia jogar um pouco de lenha na fogueira113 da

                                                                                                                          107 ROCHA E SILVA, 1960, p. 131 108 Loc.cit. 109 ROCHA E SILVA, 1960, p. 135 110 Loc.cit, 111 ROCHA E SILVA, 1960, p. 132 112 Loc. cit. 113 ROCHA E SILVA, 1960, p. 132

  relação entre ciência e tecnologia, assunto quase crônico114 nas reuniões da SBPC. Queria fazer chegar até aos ouvidos das altas esferas do governo federal aquilo que para os cientistas poderia até soar como lugar comum:

No Brasil, para os governos compreenderem o valor da ciência, parece que é preciso ocorrer uma calamidade pública. Foi a febre amarela que determinou a criação do Instituto de Manguinhos, a peste que criou o Instituto Butantã, a broca do café que criou o Instituto Biológico. Em um momento, logo após a bomba de Hiroshima, o governo federal tornou-se consciente do poder da ciência e apressou-se em criar o Conselho Nacional de Pesquisas. Agora tudo voltou à normalidade, os cientistas encontram novamente dificuldade em explicar seus pontos de vista. Os seus apelos, rogos e considerações encontram apenas indiferença da parte do governo federal.115

O tema da COSUPI tomou lugar em editoriais da revista, discursos e assembleias da SBPC no período de existência dessa Comissão, subordinada ao Ministério da Educação, que propunha a abolição da pesquisa científica nas universidades, buscando restringi-la a centros de pesquisa, com sua substituição pelo ensino vocacional e criação de tecnologia.116 As críticas obviamente se dirigiam também ao montante de verbas destinadas a essa Comissão, na qual a comunidade científica da SBPC não tinha um papel, concentrando o poder de decisão de grandes investimentos nas mãos de um único homem, o Sr. Oliveira Júnior.

Quando Jânio Quadros criou por decreto, em 1961, uma assessoria técnica científica para o governo federal, ocorreu uma reação imediata da SBPC, organizando uma reunião para estudar a assessoria e elaborar uma lista de nomes de assessores qualificados. A comissão produziu um documento intitulado "Uma política para o desenvolvimento científico do Brasil" que foi comentado por alguns jornais, em Ciência e Cultura e distribuído a todos os participantes da 13a Reunião.117

Ia ficando cada vez mais clara para os membros da SBPC, a necessidade de uma política científica consistente, que pudesse contribuir com as ações esporádicas por parte do

                                                                                                                          114

ROCHA E SILVA, 1960, p. 132. 115

ROCHA E SILVA, 1960, p.138 (Grifos nossos). 116 ROCHA E SILVA, 1960, p. 132

  governo em relação ao desenvolvimento científico brasileiro, na maioria das vezes consideradas equivocadas.

Em 1962, o tom do discurso118 de abertura da Reunião, proferido por José Leite Lopes,

"Ciência empobrecida e tecnologia de segunda classe", foi também de críticas à ausência de uma política científica nacional que se assentasse na pesquisa pura e às incompreensões do governo para com a comunidade científica, que novamente frisava, não estava em torres de marfim119. Isso podia ser confirmado pelas várias sugestões apresentadas pela SBPC para questões práticas em diferentes momentos vividos pelo país, como ocorrera, por exemplo, sucessivamente no caso das reuniões extraordinárias da SBPC sobre: desenvolvimento da físi- ca nuclear no Brasil (1954); utilização pacífica da energia atômica no Brasil (1956); regime de tempo integral nas universidades e institutos de pesquisa (1956); universidade e desenvol- vimento econômico (1957); programa de energia atômica brasileira (1958), ciência, tecnolo- gia e o papel da COSUPI (1959), estrutura da projetada universidade de Brasília (1960).

Como exposto por José Leite Lopes,120 uma política de pesquisa científica e

tecnológica de qualidade, e não de segunda classe, se fazia urgente.

Para ele, o Brasil não precisava de "demagogos", de pessoas que tomassem decisões isoladas de investir o dinheiro sem consulta aos cientistas, (como o presidente da COSUPI, que se orgulhava de, com muito dinheiro, ter criado 13 institutos de uma só vez, sem critério e sem assessoria). Leite Lopes disse ser necessário sensibilizar as autoridades do país para a importância da pesquisa de forma séria, e não usando de demagogia para conseguir verba e aplicá-la de maneira irresponsável.

O que poderia permanecer seria o que fosse construído a partir de uma curiosidade genuína e desinteressada121. E esse era o caso de muitas das ações incentivadas pela CAPES e pelo CNPq, que a SBPC via com muito bons olhos e cujas políticas foram sendo, progressivamente, divulgadas e detalhadas, especialmente na sessão de comentários de Ciência e Cultura.

A SBPC buscava promover uma autoimagem de imparcialidade política. Mesmo que muitos de seus cientistas tenham sido posteriormente exilados ou aposentados compulsória-                                                                                                                           118 LEITE LOPES, J., 1961. p.121-125. 119 Loc.cit. 120 Loc.cit. 121 LEITE LOPES,1961. p.121-125.

  mente por serem considerados indivíduos subversivos, tachados de comunistas, mesmo que ela tenha dirigido críticas específicas a determinados membros ou ações dos governos populistas, aquelas que afetavam diretamente o funcionamento das instituições de pesquisa e que "distorciam" seus rumos, ainda assim as representações que ficaram registradas em Ciência e Cultura apresentam a tendência de buscar dissociar os seus interesses de algum interesse político-partidário ou ligado a determinados grupos, a não ser o dos cientistas.

A política era mais "acusada" de desvirtuar os caminhos que a ciência vinha abrindo, a duras penas, para o progresso da humanidade. Mas, de fato, mesmo sobre essa imagem de neutralidade, as ações da SBPC podem ser interpretadas como progressivamente ativas, ao menos na causa da defesa das políticas científicas nesta primeira fase. O entendimento de que a comunidade científica precisava participar diretamente nessas esferas e estar ciente das vias de como fazê-lo, e principalmente utilizar estas vias, vai aparecendo na visão que o grupo constrói sobre política científica.

Na 15a Reunião Anual, Maurício Rocha e Silva discursa122 sobre “Ciência e

Progresso”. Conta o episódio em que o município de Campinas recusou-se a contribuir para a primeira reunião da entidade e que na mesma lista dos pedidos negados constava também um carro funerário. Parece que o autor quer ironizar a desvalorização da ciência por parte dos poderes públicos, ao dizer que aquele tipo de postura não teria mudado quase nada em relação

à ciência pura, desde aquela primeira reunião. Rocha e Silva123 critica o tratamento dos gover-

nos em relação à ciência no Brasil, que se salvava apenas por algumas contribuições mínimas dos governos estaduais e da CAPES, deixando de lado a genuína comunidade científica brasileira, uma arraia-miúda e gastando alguns milhões para trazer alguns prêmios Nobel, figurões da ciência internacional. Para ele, a ciência brasileira se caracterizava por um grupo

de aristocratas endinheirados124 contra a tal arraia-miúda que precisava implorar e

pechinchar, o que seria uma inglória atividade, incompatível com seu trabalho intelectual125

As mudanças estruturais para o desenvolvimento científico, propostas por Rocha e Silva,126 se referem à já tão defendida associação entre ensino e pesquisa. Ele posiciona-se também contra a proposta de criação do Ministério de Ciência e Tecnologia. Reunir num                                                                                                                          

122 ROCHA E SILVA,1963. 123

ROCHA E SILVA,1963, p.165-171. 124

Não fica claro quem seriam estes, mas parece que há aqui uma disputa entre grupos de cientistas. 125 Ibidem.

 

mesmo barco a ciência e a tecnologia seria um equívoco enorme, já que a mais forte iria vencer, enquanto a mais fraquinha, a ciência, ficaria esquecida. Para Rocha e Silva, o grande equívoco dessa proposta estava justamente em não associar o ensino de ciências a esse ministério. Ele sugere um "Ministério da Ciência e do Ensino Superior". Essa sugestão marca bem o valor e o peso que tinham para ele e para a SBPC a relação entre ensino e ciências e a orientação de que a mesma deveria ser desenvolvida nas universidades.