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Ao ingressar em um mestrado em Educação, tendo uma formação técnica voltada à mecânica e ao desenho no curso de tornearia da Escola de Educação Profissional do Senai Nilo Peçanha e, posteriormente, um curso superior em Arquitetura e Urbanismo, a docência e a pesquisa somente vieram a ser uma realidade, a partir do momento em que a segurança, a vontade e a necessidade de ensinar se alinharam.

Passado algum tempo como professor de nível técnico em escolas particulares voltadas ao mercado de projetos, a especialização se apresentava como um caminho natural e com ela veio também uma chance de aventurar-se pelos caminhos do Ensino Superior. Embora houvesse alguma desenvoltura nesta nova empreitada, existia um sentimento de buscar o crescimento através de um aprimoramento na área da Educação, o qual culminou no curso de mestrado em Educação e na linha de pesquisa história da Educação.

Durante o período de 2010 e 2011, uma experiência importante, que indicaria um possível tema de pesquisa, foi justamente a participação em uma comissão de infraestrutura da Faculdade da Serra Gaúcha, instituição que trabalho até o momento, e na qual o planejamento e a manutenção de espaços de estudo, salas de aulas, laboratórios, sala de professores, biblioteca, entre outros, oportunizaram um olhar diferente para o tema do espaço escolar. Havia notado, nesta ocasião, que existia algum elo perdido entre o planejamento, a execução e o real uso dos espaços destinados à educação e ao ensino.

Durante o curso de mestrado, foi possível tomar contato com as teorias de Michel de Certeau (1990), mais especificamente, com seus estudos sobre as práticas cotidianas, usos e consumos e estratégias e tática, as quais o autor chama de antidisciplina, ou a maneira de resistir a uma ordem imposta por um sistema, através das maneiras de usar ou

jogar exatamente com os postulados, as regras e as condições do sistema, publicadas em seus livros: A invenção do cotidiano: as artes de fazer (1990) e A invenção do cotidiano: morar, cozinhar (1996).

A bricolagem, um conceito que Certeau (1990) emprega para analisar o que o usuário, consumidor ou o espectador faz com aquilo que lhe é imposto, nem sempre é aquilo que o proponente esperava, já que, muitas vezes, o que o usuário faz do que lhe é imposto é outro produto. Uma bricolagem.

Esta teoria é complexa e difícil de visualizar no dia a dia, mas seria possível que o usuário fizesse bricolagem com o espaço escolar, e que tipo de consumo estaria fazendo destes espaços? Seria interessante verificar esta possibilidade, principalmente, numa realidade diferente daquela que este usuário estava acostumado a vivenciar.

As escolas multisseriadas surgem como um possível foco de investigação, em parte, através da memória de uma antiga escola do interior do Município de Vacaria, onde parentes, tios e primos estudaram e iniciaram a carreira do magistério. Foi possível conhecer esta realidade no período de infância, durante várias férias escolares, quando visitava a casa dos avós maternos e espiava aquelas aulas tão diferentes daquilo que se estava acostumado no colégio que frequentava, no centro da cidade de Caxias do Sul, uma das mais tradicionais escolas particulares e católicas da cidade.

Outro motivo sobre esta escolha foram os relatos detalhados, testemunhados em conversas com a nona, a avó de minha esposa, que diversas vezes falava sobre a escola improvisada e a rotina vivida por ela e, principalmente, por seu pai, um professor escolhido pela comunidade de imigrantes recém-chegados à colônia italiana no Estado do Rio Grande do Sul, por seus conhecimentos em relação à língua e à leitura. Segundo ela, as aulas aconteciam em um galpão próximo à capela de uma pequena localidade, e os estudantes vinham a cavalo e instalavam-se no próprio galpão onde tinha aulas à noite e também durante o dia em períodos curtos, de dois a três dias e após retornavam à rotina. Para ele eram muitas as dificuldades em ensinar, mas o reconhecimento que tinha por parte da comunidade, e as funções que desempenhava pareciam compensadores.

O aspecto comunitário das antigas escolas multisseriadas, fechadas durante o processo de nucleação, e a transição para uma escola maior que proporciona melhor socialização dos escolares, tanto de estudantes quanto de professores, pareceu ser um bom campo de pesquisas, para observar a relação do espaço escolar e o que os usuários ou consumidores faziam dele.

Durante essa transição, da escola multisseriada para a escola nucleada, os estudantes estão em processo de construção de sua identidade, que segundo Bauman (2003), é a substituta contemporânea da comunidade em um mundo cada vez mais

globalizado onde a existência de limites seria incompatível, mas, em contrapartida, se reforça como um “círculo aconchegante”,21

em um local hostil, próximo ao sentido original da comunidade, que pode ser descrita como sendo um local seguro ao qual se pertence e pode sempre retornar.

Neste aspecto, a nucleação de escolas-casa, multisseriadas, representa a reunião de várias destas pequenas escolas das comunidades, que preservam traços de identidade e cultura particulares, sob um mesmo local, a escola-grande. Portanto, concordando com Kreutz:

A dimensão étnico-cultural é construída e reconstruída constantemente num processo relacional em que os grupos e indivíduos buscam, selecionam, ou relutam em função do significado que fenômenos e processos têm para eles. Por isto a educação e a escola são um campo propício para se perceber a afirmação dos processos identitários e os estranhamentos e as tensões decorrentes da relação entre culturas. (KREUTZ, 2001, p. 123).

Ao relacionar os conceitos teóricos estudados ao longo da pesquisa, com as observações de campo das culturas escolares, geradas no processo de transição das escolas-casa para as escolas grandes, a importância de estudar sobre os espaços escolares foi aos poucos se fortalecendo.

Na busca por um entendimento sobre como essas comunidades utilizavam-se e consumiam o espaço escolar antes da nucleação, nas escolas-casa, e, após, no espaço das escolas grandes, vários questionamentos foram surgindo e dando rumo à investigação sobre o espaço e o tempo nas culturas das escolas rurais multisseriadas de Caxias do Sul.

Deste modo, o principal objetivo definido para a pesquisa envolveu a investigação sobre os usos e consumos que alunos e professores das escolas rurais multisseriadas fazem do tempo e do espaço e, desta forma, identificar as representações construídas sobre a escola da comunidade, a escola-casa e sobre a “escola-grande” da cidade.

Usos e consumos, estratégias e táticas são conceitos-chave, tomados emprestados de Michel de Certeau (1990) para o entendimento e a análise do campo de investigação pretendido, tentando estabelecer uma relação entre a maneira como alunos e professores consomem espaços e tempos numa e noutra instituição, assim como, quais pertenças ou resistências (antidisciplina certeauniana) se produzem no processo de transição, desencadeado a partir das nucleações.

21 O conceito de “círculo aconchegante” elaborado por Góran Rosenberg é utilizado por Bauman (2001) no capítulo 1 (Agonia de Tântalo), do livro: Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, publicado neste ano e empregado pelo autor para fortalecer a ideia de que a comunidade é um local seguro e protegido.

A relevância do estudo, portanto, se verifica na inexistência de pesquisa sobre as escolas multisseriadas na cidade de Caxias do Sul, cujas evidências são expressas no próximo item deste capítulo.

2.2 Um estado da arte a respeito de escolas rurais, isoladas, multisseriadas e