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Ao enfatizar que o presente estudo se orienta por uma epistemologia feminista, aponto

18 No original: “Entender que tanto la raza como el género han sido constitutivas de la episteme moderna colonial; no son simples ejes de diferencias, sino que son diferenciaciones producidas por las opresiones que, a su vez, produjo el colonialismo, y que continúa produciendo en la colonialidad contemporânea” (CURIEL, 2014, p.55).

para as estreitas relações entre ciência e gênero, discutida por inúmeras pensadoras como Donna Haraway, Sondra Farganis e Ilana Löwy, para citar algumas. Conforme Löwy (2009), as pesquisas nesse campo desvelam que as formulações do pensamento científico foram marcadas pela existência da dicotomia entre o masculino e o feminino na sociedade, e que, historicamente, o fazer científico foi empreendido por e para indivíduos do sexo masculino.

Os pressupostos de neutralidade, objetividade, racionalidade e universalidade da ciência comumente traduzem a visão de mundo de quem produz tal pensamento, ou seja, homens brancos, ocidentais e membros da classe dominante.

A emergência dos movimentos feministas na década de 1970 propiciou a crítica do próprio processo de produção do conhecimento científico (GIFFIN, 1995, LÖWY, 2009). A tomada de consciência do caráter androcêntrico da ciência, marcado por dicotomias – natureza/cultura, mente/corpo, razão/emoção – que foram sendo associadas às diferenciações entre homens e mulheres – sendo os homens associados às ciências, ao pensamento racional, à cultura e as mulheres à natureza, ao corpo, à emoção – levou as mulheres ao questionamento dos pressupostos que orientavam o mundo acadêmico, conforme evidencia a pesquisadora norte-americana Karen Giffin (1995).

A utilização do conceito de gênero para assinalar a construção social do feminino e do masculino e as relações de poder entre os homens e mulheres representava, dessa forma, a recusa do destino biológico das mulheres, presente no discurso sociocientífico corrente, bem como a negação do papel redutor da mulher como reprodutora, confinada ao espaço doméstico. Buscava-se, a partir das pesquisas envolvendo o conceito de gênero, que os paradigmas científicos disciplinares fossem transformados (GIFFIN, 1995).

O feminismo, além de empreender uma crítica contundente ao modo hegemônico de produção de conhecimento científico, tem proposto formas alternativas de operar nesta esfera, o que possibilita que se discuta a conformação de uma – ou seriam várias? – epistemologia feminista (RAGO, 1998). Epistemologia, nesta perspectiva, é definida como

um campo e uma forma de produção do conhecimento, o campo conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito objeto do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade com que operamos (RAGO, 1998, p.6).

Para Farganis (1997) a epistemologia feminista contemporânea implica na crítica ao modelo cartesiano de ciência, evidenciando os preconceitos do gênero que foram sendo associados tanto ao método científico quanto à tradição epistemológica ocidental na qual este se insere.

A contestação feminista não é a de afirmar que as mulheres podem, tão bem quanto os homens, raciocinar ou "fazer" ciência tal como é praticada agora. Em vez disso, sua posição é de que as mulheres que reconhecem e aceitam os pressupostos feministas sobre o mundo praticarão ciência de modo diverso num mundo que legitime esses pressupostos: usarão uma metodologia diferente ou se basearão num conjunto diferente de práticas para observar e compreender o mundo a sua volta;

serão conscientes da intencionalidade de seus estudos e dos usos que deles se farão (FARGANIS, 1997, p. 224-225, grifo no original).

Compreender que gênero é uma variável que intervém no desenvolvimento científico suscitou e continua suscitando inúmeras críticas e controvérsias, adverte Löwy (2009). A historiadora brasileira Margareth Rago (1998) aponta para os riscos de que uma epistemologia feminista sustente a reificação de características naturais ou biológicas e defende que o feminismo se coloque como uma outra forma de fazer e pensar a ciência, a relação entre sujeito e objeto e contribua para o descentramento do sujeito – masculino, ocidental, primeiro mundista, branco, hétero.

Farganis (1997) enfatiza que o caráter social do gênero confere às mulheres “uma perspectiva diferente e o lugar onde estão – suas atividades dentro do mundo e a forma como são consideradas em uma sociedade estratificada pelo gênero – fará delas praticantes de um tipo diferente de ciência” (FARGANIS, 1997, p. 225). Refere que tal argumento distingue-se de uma posição essencialista, uma vez que compreende que os modos de pensar e, portanto, produzir conhecimento são afetados por fatores sociais concretos, entre os quais o gênero.

Sandra Harding (2002) convida a pensar se há um método de investigação feminista, distinto dos métodos tradicionais. Traz considerações a respeito das diferenças entre método, metodologia e epistemologia e ressalta que não é suficiente agregar mulheres à pesquisa e reconhecer aquelas que estão produzindo ciência para que se constitua um fazer científico feminista. A autora assinala que o desafio dos feminismos se situa na formulação das perguntas e em desvelar aquelas perguntas que nunca são formuladas, ou seja, evidenciar quem é o sujeito e quem é o objeto dos estudos. Defende ainda que a investigadora ou o investigador se coloque no mesmo plano crítico que o objeto que se vai investigar, de modo a recuperar a análise do processo mesmo de produção do conhecimento junto aos resultados produzidos: “em outras palavras a classe, a raça, a cultura, as pressuposições em torno ao gênero, às crenças e o comportamento da investigadora, ou do investigador mesmo, devem ser colocados dentro do marco da pintura que ela ou ele desejam pintar” (HARDING, 2002, p.

25, tradução nossa)19. De tal modo que os investigadores não se apresentem mais como uma

19 No original: “En otras palavras la classe, la raza, la cultura, las presuposiciones em tomo al género, las creencias y los comportamientos de la investigadora, o del investigador mismo, deben ser colocados dentro del

voz anônima, invisível, mas como sujeitos concretos, históricos, com desejos e interesses particulares.

Embora reconheça a importância de se questionar a ciência em seu caráter androcêntrico, Ochy Curiel (2014) critica a universalização da categoria gênero e os binarismos subjacentes à epistemologia feminista, entendendo que esta se coloca como essencialista ao pressupor tratar das experiências femininas de forma unívoca. Considerando os aportes teóricos de Haraway (1995) acerca do conhecimento situado, que convida a historicizar a quem faz a investigação e evidenciar seu lugar de enunciação, Curiel (2014) defende este como um pressuposto ético primordial e assinala que a tomada de posição na construção do conhecimento se dê a partir da consideração da geopolítica, da raça, classe, sexualidade e capital social.

O feminismo decolonial corresponde assim a uma aposta epistêmica, um movimento em pleno crescimento que se propõe a revisar a teoria e proposta política do feminismo, dado seu viés ocidental, branco e burguês. Tal perspectiva teórica busca revisitar e reinterpretar a história da modernidade, não só a partir de seus conceitos androcêntricos e misóginos, como tem sido feito pela epistemologia feminista clássica, mas também por seu caráter racista e eurocêntrico (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014).

Sob a perspectiva do feminismo decolonial, faz-se premente a busca por referenciais epistêmicos e filosóficos que permitam não só desvelar a colonialidade, mas também recriar e repensar novos modos de análise e compromissos de ação. Trata-se de construir “uma epistemologia feminista decolonizante, que não reproduza as dicotomias e binarismos que estão na base da lógica epistêmica ocidental” (RED DE FEMINISMOS DECOLONIALES, 2014, p. 461, tradução nossa)20.