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Capítulo III: a afetividade e a escrita da história

3. Por uma história militante

A partir das questões propostas ao longo do capítulo, buscamos sustentar que a afetividade seria um critério importante para avisão sobre o passado, mas também para a escrita da histórianos textos críticos de Teófilo Braga sobre a historiografia portuguesa. As concepções cientificistas, tributárias do positivismo, ocupavam também um lugar central, privilegiando, muitas vezes, o elemento de racionalidade, como comumente o positivismo é interpretado no cânone historiográfico. A hipótese aqui é que cientificidade e afetividade constituem elementos de tensão na obra de Teófilo Braga, muitas vezes como estratégias para sustentar e legitimar as teses levantadas em suas obras. A escrita incorporava essa tensão, na qual esses elementos por vezes não estariam presentes como polos opostos. Na ideia de operação historiográfica, que compreende a história a partir de um lugar, de procedimentos de análise e da construção de um texto, essa última “etapa” do trabalho do historiador remete a uma “prática social que confere ao leitor um lugar bem determinado redistribuindo o espaço das referências simbólicas e impondo, assim,

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uma ‘lição’; ela é didática e magisterial”531. O contexto social, institucional e intelectual condiciona, sob essa perspectiva, o trabalho de escrita, pensado como uma prática.

O positivismo era representado como uma possibilidade redentora de compreensão da realidade social e política, como produto do avanço da ciência. A fidelidade a esse postulado possibilitaria a garantia do princípio de verdade alcançado por meio dos instrumentos de controle da investigação. No caso da história, isso se tornaria possível através do trabalho com as fontes, consideradas “provas” da hipótese do inquiridor. A tese de Teófilo Braga em relação aos moçárabes, concebidos como uma raça, ilustra muito desse esforço de buscar validade em diferentes documentos. Assim, sobre a convivência entre cristãos e árabes, temos que:

Assim como os nomes próprios, que firmam importantes documentos desde o começo do século X, nos revelam a fusão que produziu a sociedade mosarabe, por títulos de transações e inventários de propriedades se deduz a existência de numerosas vilas, aldeias (...), donde se conclui que a população dos estados neogóticos já estava criada, e que geralmente se tornou alheia às lutas entre os leoneses e o califado e emirados dos árabes532.

A prova dotava de autenticidade o trabalho de investigação, exaustivo em meio aos papeis empoeirados dos arquivos. Um dos historiadores com os quais Braga mais dialogava era Gervinus, interessado em dotar de perspectiva política a história literária. Suas obras, em especial Fundamentos de teoria da história (1837) e Introdução à história

do século XIX (1853), expressavam a necessidade de “pensar as especificidades da

narrativa histórica”533. Gervinus, ao lado de Ranke, investiu na importância da crítica documental. O apego ao princípio de veracidade da narrativa em relação ao passado estava ligado à defesa da objetividade. Na concepção moderna de história,

A objetividade, a ‘extinção do eu’, como condição de ‘visão pura’, significa a abstenção, por parte do historiador, a outorgar louvor ou opróbio, ao lado de uma atitude de perfeita distância com a qual ele deveria seguir o curso dos eventos conforme foram revelados em suas

531 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1982. p. 95. 532 Idem, p. 303.

533 BENTIVOGLIO, Julio. “Gervinus”. In: MALERBA, Jurandir. Lições de história. O caminho da ciência no longo século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 156.

199 fontes documentais (...). Objetividade, em outras palavras, significava não-interferência, assim como não discriminação534.

A busca pela objetividade tinha, assim, algumas implicações para a narrativa e na postura do autor. Segundo Lorraine Daston, no século XIX, mais do que “alcançar a verdade ou a certeza”, a exigência era a de “se libertar de certos aspectos da subjetividade, aqui, notadamente, a interpretação”535. O alcance desse postulado poderia se concretizar pelo estabelecimento da distância entre sujeito e objeto que, em tese, garantiria um maior controle e confiabilidade à análise. Uma das formas de cumprir essa exigência de distanciamento necessário para a compreensão dos acontecimentos viria com a distância temporal ou mesmo espacial536. A passagem do tempo seria condição para a elaboração de uma visão “correta” e estável, transmitida de modo a se tornar preponderante. Essa seria uma prerrogativa do positivismo, mas também da perspectiva etnográfica adotada por Braga, na qual o valor da tradição estaria em sua sobrevivência no decorrer dos séculos. A manifestação popular transformada em documento para a etnografia do povo apresentaria essa característica, pois seria um resquício de um passado longínquo.

Na ótica cientificista do positivismo, a distância se pautava também em uma postura estabelecida entre sujeito e objeto, percebida, muitas vezes, por estratégias mobilizadas pelo autor na escrita.A alusão ao critério científico assegurava a validade da crítica. A ciência, com seus postulados e métodos, indicava até mesmo o modelo da oposição política: “Onde, então, uma verdadeira oposição sistemática, mas desapaixonada, desinteressada na sua crítica e sem ser ilusória nos seus alvitres? Essa oposição existe, e tal é o destino da Ciência em qualquer das suas especialidades”537. Desapaixonada e desinteressada, assim deveria ser a reflexão formulada sob a égide da ciência. Tal pilar guiava a crítica dirigida aos contemporâneos, inclusive ao tratar de determinados conflitos do meio intelectual português que envolviam a figura do próprio Teófilo Braga. Se não havia a distância temporal, a objetividade seria alcançada por

534 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 79. 535 DASTON, Lorraine. Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017. p. 76.

536 NICOLAZZI, Fernando. “Representação e distância: naturalismo, linguagem e alteridade na escrita de Os Sertões”. In: PEREIRA, Matheus et all (orgs.). Contribuições à história da historiografia luso brasileira. São Paulo: Hucitec. 2014. p. 251.

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outros caminhos. No livro As modernas ideias na literatura portuguesa, ao tratar da Questão Coimbrã, Teófilo Braga inseriu o debate em torno de suas obras de poesia. A questão é assim introduzida:

Castilho, porém, vendo essa corrente admirativa de frases que consagrava os livros da Visão dos Tempos e Tempestades sonoras, que eram apresentados ao público sem a chancela de uma Carta-prólogo (...), julgou amesquinhar o merecimento do autor desses dois livros, confundindo-o na plêiade grotesca do conhecido estilo coimbrão (...). Por esta fórmula insidiosa se atacava o rebelde, que aparecera sem se inscrever no Elogio mútuo, e sem trazer a chancela de um prefácio laudatório de Castilho538.

Teófilo Braga se referia a si mesmo na terceira pessoa, como o autor de Visão dos

Tempos e Tempestades sonoras, ou ainda como “o rebelde”. Tratava-se, assim, de se

considerar como um ator importante para os debates direcionados à hegemonia intelectual de Castilho. No entanto, o lugar ocupado seria de distanciamento, pois Braga não aceitava ser associado aos círculos que praticavam o “Elogio mútuo” que confirmavam, através da figura de Castilho, o valor dos novos escritores. Para além da construção de uma memória do próprio Teófilo Braga, ressalta-se a forma como o autor busca, no texto, retratar com impessoalidade os debates que diziam respeito ao seu papel nas disputas intelectuais coimbrãs. O uso da terceira pessoa e a reprodução de trechos escritos por outras figuras do período não seriam um impasse para a consagração do jovem poeta como “rebelde”, que não se envolvia em intrigas estéreis, mas ainda assim já era reconhecido por suas obras. Os depoimentos recortados no texto cumpriam a função de reiterar o ponto de vista do autor. Teófilo Braga se apresentava, assim, como capaz de analisar com neutralidade os eventos que o envolviam. Ou ainda, o fato de ser contemporâneo a muitos dos debates narrados sob sua pena seria um fator de fidedignidade da análise. Como homem de letras guiado pelo espírito científico, Braga entendia ser possível se distanciar dos embates ao construir a narrativa. A presença e o olhar se tornavam instrumentos para a crítica “desapaixonada”.

538 BRAGA, Teófilo. As modernas ideias na literatura portuguesa. v. 2. Porto: Lugan & Genelioux, 1892. p. 161.

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