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Em uma pintura de história, quando o artista decide representar em seu trabalho um personagem já conhecido na literatura, por exemplo, uma questão pode ser levantada: seria possível reconhecer esse personagem só pela imagem, sem ter a necessidade de atribuir-lhe uma legenda? Se Delacroix não houvesse intitulado A

Morte de Ofélia, seria possível identificar a personagem em suas obras? Será que

suas obras despertariam igual interesse se não houvesse a citação da personagem de Shakespeare?

Du Bos (2005) afirma que os poetas têm uma capacidade maior que a dos pintores de despertar no público o interesse em personagens. Além disso, defende a ideia de que os pintores deveriam anexar uma espécie de legenda explicativa em seus quadros para que o conteúdo seja mais compreensível ao público. Acerca desse assunto, o autor comenta:

[...] É ainda incomparavelmente mais fácil para o poeta do que para o pintor, fazer com que nos afeiçoemos aos personagens, despertando nosso interesse por seu destino. As qualidades externas – como a beleza, a juventude, a majestade e a ternura – que o pintor pode dar a seus personagens, não motivam nosso interesse por seu destino tanto quanto as virtudes e as qualidades de alma que o poeta pode dar aos seus... Eis aí o que um pintor não pode fazer: para nos comover, ele fica restrito a utilizar personagens que já conhecemos; seu grande mérito é fazer com que reconheçamos fácil e inequivocamente esses personagens.

[...] Por várias vezes, me surpreendeu que os pintores, que têm grande interesse em fazer com que reconheçamos os personagens que escolhem para nos emocionar e que devem ter muita dificuldade em torná-los reconhecíveis somente com a ajuda do pincel, não anexassem uma breve legenda a seus quadros de história. Três quartos dos espectadores, que, aliás, são perfeitamente capazes de fazer justiça à obra, não são suficientemente eruditos para adivinhar o tema do quadro. Este, para eles, às vezes é como uma pessoa bonita e agradável, mas que fala uma língua incompreensível; logo se entediam de olhá-lo, pois a duração dos prazeres de que o intelecto não participa é muito curta (DU BOS, 2005, p. 64-65). Lessing também comenta a respeito do reconhecimento dos personagens, nas artes visuais, por parte do público, afirmando que, para o pintor ou o escultor representar, por exemplo, deuses e seres espirituais, esses deveriam manter constantemente a mesma caracterização, pois são abstrações personificadas. Para justificar esse raciocínio, o autor dá como exemplo a representação de Vênus na poesia e na escultura.

Para o escultor, a Vênus não é nada senão o Amor; ele tem que dar a ela toda a beleza decente e pudica, todo o encanto gracioso que nos extasia em objetos amados e que portanto nos levam ao conceito isolado de amor. O menor desvio desse ideal faz com que não reconheçamos a sua imagem. [...] Para o poeta, pelo contrário, Vênus decerto também é o Amor, mas a deusa do Amor que além desse caráter possui a sua própria individualidade e, consequentemente, pode ser capaz tanto do impulso da repugnância quanto do da afeição [...] (LESSING, 1998, p. 148-49).

Assim, Lessing (1998) atenta para o fato de que é possível para a poesia deixar claro as diversas qualidades de um personagem, enquanto que, nas artes visuais, corre-se o risco de “descaracterizar-se” o personagem, tornando-o irreconhecível ao público.

A maior parte da produção artística de Delacroix situa-se na primeira metade do século XIX e é recorrente em seu trabalho a alusão à cultura e às fontes literárias, bem como a reflexão sobre grandes autores do passado e contemporâneos. Baudelaire, que muito escreveu sobre Delacroix e seus quadros expostos nos Salões de Paris, o descreveu da seguinte forma: “Eugène Delacroix amava tudo, sabia pintar tudo, e sabia apreciar todos os gêneros de talentos. Era o espírito mais aberto a todas as noções e todas as impressões, o fruidor mais eclético e mais imparcial” (BAUDELAIRE, 1998, p. 39). Com esse e outros comentários acerca do gênio e da modernidade do pintor, além de considerações estéticas de seu trabalho, Baudelaire o elegeu como um modelo a ser seguido.

As referências literárias de Delacroix são bem variadas e é possível notar, desde seus primeiros trabalhos, um forte empenho em tornar os personagens reconhecíveis ao público, como, por exemplo, em A Barca de Dante (1822) e A

Morte de Sardanapalo (1827), obras muito celebradas do artista. O primeiro quadro

(Figura 5), que retrata a cena do oitavo canto do Inferno dantesco15, foi realizado por Delacroix de maneira muito fiel ao texto original. O segundo (Figura 6), retratando a tragédia histórica Sardanapalo, escrita em verso branco, em 1821, por Lord Byron. O drama relata a queda da monarquia assíria. Sardanapalo, o último rei dos assírios, após abater as populações vizinhas e se dedicar a formas de prazer dissolutas, considerando que não havia mais o que realizar, decide tirar a própria vida e incendeia tudo ao seu redor. A Morte de Sardanapalo, de Delacroix, é um quadro de grandes dimensões (395 x 495 cm), que provocou forte escândalo e não foi muito bem aceito na ocasião em que foi exposto – Salão de 1827-1828 (ABRIL COLEÇÕES, 2011, p. 58). No entanto, A Barca de Dante, primeira obra do pintor a ser exposta em um Salão, além de ter sido muito elogiada na época, oportunizou ao artista uma maior visibilidade no campo das artes.

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Corresponde à primeira parte do poema A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita no século XIV, sendo as outras partes denominadas Purgatório e Paraíso.

Figura 5 – Eugène Delacroix, A Barca de Dante (Dante e Vigílio no Inferno), 1822. Óleo s/ tela, 187,9 x 240,5 cm. Musée du Louvre, Paris.

Figura 6 – Eugène Delacroix, Morte de Sardanapalo, 1827. Óleo s/ tela, 368 x 495 cm. Musée du Louvre, Paris.

Por ser uma personagem já bastante explorada na pintura e devido à notoriedade da obra shakespeariana – a peça mais estudada e interpretada no mundo – é bem provável que espectadores que conhecem a história de Hamlet

identifiquem Ofélia nas obras em que Delacroix retrata a sua morte, ainda que sem uma legenda que especifique o tema. Mas seria possível essa identificação na época do pintor?

É provável que a retomada de Shakespeare na França, especialmente no período do Romantismo, possa ter contribuído para que um número maior de pessoas identificasse a personagem Ofélia em obras de arte. Além disso, após a temporada da companhia inglesa de Edmund Kean e Charles Kemble, entre 1827 e 1830, Achille Devéria e Louis Boulanger homenagearam Harriet Smithson, com a elaboração de um álbum com doze litografias – Souvenirs du Théâtre anglais à Paris –, por sua excepcional performance. O álbum continha litografias das principais peças encenadas pela companhia. As litografias foram muito difundidas, juntamente com outras gravuras de Harriet Smithson, no papel de Ofélia, e isso provocou uma associação das características e expressões da atriz com a personagem elaborada por Shakespeare (LAFOND, 2012, p. 171-72). A interpretação de Smithson e as diversas gravuras da atriz nos papeis shakespearianos difundidas em Paris contribuíram substancialmente, portanto, para a difusão da imagem de Ofélia, na França.

Abaixo uma das litografias do Souvenirs du Théâtre anglais à Paris, representando Harriet Smithson no papel de Ofélia. O trecho ilustrado é possivelmente a cena V do ato IV, onde Ofélia expõe sua loucura diante da corte de Elsinor. Na cena ilustrada, Ofélia aparece com os cabelos soltos, o que denuncia seu estado de delírio. Os gestos e expressões alterados da personagem despertam a preocupação de todos, especialmente do rei e da rainha.

Figura 7 – Achille Devéria e Louis Boulanger, Folie d'Ophélie: Souvenirs du théâtre anglais à Paris, 1827. Litografia, Folger Shakespeare Library.

Em outra passagem do texto Ophélie in Nineteenth-Century – French Painting, Lafond (2012) também comenta a respeito da disseminação da imagem de Ofélia, afirmando que, no século XIX, houve um aumento considerável de reproduções da dama das águas por artistas franceses, seja em pintura, gravura ou escultura, e muitas dessas obras foram expostas nos Salões de Paris. A autora complementa relatando que:

Em 1888, Georges Japy, colaborador da Revue d’art dramatique, deplorou a ubiquidade da presença de Ofélia no mais famoso Salão de Paris: “Assim como em anos anteriores, até mesmo nas mesmas salas e nos mesmos lugares, podemos ver uma outra meia-dúzia de Ofélias! Na pintura, sabemos que toda mulher caminhando perto de um rio é chamada de Ophélie. Não basta afogá-la.”16 (LAFOND, 2012, p. 169, tradução nossa). Para a autora, a mais famosa heroína de Shakespeare tornou-se uma espécie de figura mitológica, um ícone para os pintores franceses, portanto, a partir de meados do século XIX, sua identificação na pintura pelo público francês foi excepcionalmente intensificada.

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No original: In 1888, Georges Japy, contributor to the Revue d’art dramatique, deplored the ubiquity of Ophelia’s presence at the famous Paris Salon: “Just at in previous years, even in the same rooms and in the same places, we can see another half-dozen Ophelias! But we do know that in painting every single woman walking by a river is called Ophélie. It’s no use drowning her.