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3 CALAR E NÃO FALAR

3.2 POROS, CORPOS, OLHOS: ABERTOS

Um mover-se revelado nas palavras ditas/escritas e nas experimentações práticas, diante da premissa da paciência e atenção, está tornando visíveis certos modos de compreensão mediados pelo corpo. Posto que tais percepções estão na contramão de uma clareza objetiva, torna-se evidente a necessidade de buscar, na articulação de diferentes áreas, especialmente das artes, as saídas para que as vivências dessa pesquisa se materializem na escrita da dissertação.

A música intitulada Tô, do artista Tom Zé, sabiamente reflete as dificuldades e as potências que encontro na pesquisa: “Eu tô te explicando/ Prá te confundir/Eu tô te confundindo/ Prá te esclarecer/Tô iluminado/ Prá poder cegar/ Tô ficando cego/ Prá poder guiar”. Ficar cego para poder guiar, iluminar para poder cegar, nas palavras do artista é aqui o início escolhido para uma reflexão sobre os modos de ver-me ao ser/dançar/performar/pesquisar/escrever. Ocupo-me em falar sobre o olhar, a visão, unindo dimensão biológica, simbólica e subjetiva para compreender

como seria possível ampliar os olhares ao abordar o campo das artes.

Neste interim, instiga-me pensar que as danças/performances realizadas possibilitaram refletir sobre o olhar que é direcionado ao mundo de maneira contingente, limitada, cultural e socialmente construída. Este olhar pode ser desconstruído, resignificado quando se reconhecem tais características. Para olhar não precisa-se apenas da fisiologia, da anatomia ou de processos biomecânicos que são desencadeados no indivíduo, permitindo-o transformar energia luminosa em impulso nervoso para produção de uma forma. O olhar é, também, uma ação simbólica, sobretudo subjetiva, e por isso não é função exclusiva dos olhos, mas sim do corpo em sua completude.

Desde a década de 60, os estudos sobre a visão “começaram a produzir dados que abalavam profundamente as crenças sobre como o ser humano constrói o conhecimento sobre o mundo” (DOMENICI, 2010, p. 72). A ciência passou a admitir que a subjetividade acompanhava o conhecimento, estando o corpo implicado diretamente com a cognição, ou seja, o corpo não é mais passivo aos acontecimentos do mundo mas “é um ambiente ativo que constrói novos conhecimentos e comportamentos na interação com o mundo em tempo real” (DOMENICI, 2010, p. 73).

Ao abrirem-se os olhos, o que é possível de ser visto? E ao fechar dos olhos, como o corpo vê o mundo? Aqui, começo uma reflexão acerca das formas de ver, na articulação entre olhos, poros e corpos que se abrem para ver. Essa abertura é possível, para mim, em uma correlação das abordagens somáticas com a cultura visual e demais autores que me permitem dilatar possibilidades de reflexão, questionamento e práticas de olhar o mundo. Para mim, o modo de olhar com uma sensibilidade mais apurada, nessa pesquisa, seria aquele das pequenas pausas, dos o que é isso?, das interrupções, dos paradoxos e contradições, dessa arte que chamamos contemporânea – uma arte em movimento. Objetivamente pode-se resumir a visão nas funções que o olho desempenha como um órgão do sentido. Por outro lado, para que se possa compreender de modo mais abrangente o que seria o olhar é preciso avançar nessa discussão. Maturana (2001) exemplifica um experimento realizado com uma salamandra, que pode nos permitir situar a atividade sistêmica do nosso organismo na relação com a visão e a motricidade:

colocamos um bichinho na frente da salamandra, ela lança a língua e o captura. Mas se alguém gira o seu olho e põe o bichinho no mesmo lugar, a salamandra gira sua língua e a lança para trás, e é claro, erra, não o encontra. (MATURANA, 2001, p. 20).

O autor explica que esse ato de lançar a língua para trás está relacionado com a formação da imagem que antes era produzida na retina posterior (o que faria o animal lançar a língua para frente) e agora é formada na retina anterior. Esse ato leva a salamandra a agir como se nada tivesse acontecido, ou seja:

Lançar a língua e capturar o bichinho não é um ato de apontar para um objeto externo, mas de fazer uma correlação interna. Uma correlação entre a atividade da retina e o sistema motor da língua. (MATURANA, 2001, p. 31).

Esse experimento, que a priori é bastante simples, mostra a complexidade dos corpos em articulação sistêmica interna e externa. Os indivíduos são influenciados pela biologia e pelo ambiente em que vivem, carregam subjetividades outras. Os modos de olhar o mundo estão sujeitos às mais variadas esferas da existência. Olha-se ao abrir os olhos em uma ação que é físico-química-biológica. Contudo, ao analisar que partes do corpo olham e como, abre-se a possibilidade de compartilhar essa função com o corpo inteiro, possibilitando um olhar ampliado. O que e com que olhos olham os cegos? E os que enxergam embaçado, desfocado, pixelado? Que cegueiras escondem os videntes? Seria um dos papéis da arte ampliar as esferas da visão?

Para Manuel de Barros13 “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação é o que

traz ver, que transfigura o mundo, que faz outro mundo para o poeta, para o artista”. A poesia trazida pelo referido autor faz parte do panorama apresentado pelo documentário Janela da Alma de João Jardim e Walter Carvalho14. Um exemplo

significativo de subjetividades do olhar, o filme mostra pessoas e seus modos singulares de ver o mundo, desfocados, cegos. O filme sugere que não existem apenas cegos e videntes e que esses adjetivos não são diretamente relacionados com a capacidade que o olho tem de enxergar, mas antes, com a capacidade que o corpo tem de se adaptar as suas fragilidades e apurar sua percepção.

Hermeto Pascoal, compositor e instrumentista brasileiro, em um de seus relatos durante o documentário, diz que sua cegueira é aparente, sua visão é interior.

13 Transcrição feita pela autora retirada do documentário Janela da Alma.

Segundo ele quando alguém quer olhar melhor se aproxima do que quer ver e enruga a testa, sendo ela a responsável por essa visão mais apurada. Ao passo que quando quer ouvir melhor algo, inclina a cabeça da mesma forma para o som alcançar a nuca. Para o músico, quem olha é a testa e quem ouve é a nuca, uma descrição tão singela, simbólica e poética. Hermeto Pasqual pode sentir (ver) o mundo pela pele, no exato limite entre o dentro e o fora dada sua particularidade física com a visão. Que modos de ver podem os videntes aprender com Hermeto Pascoal?

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