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PORTO ALEGRE ANTES DO PLANO DE MELHORAMENTOS

Porto Alegre chega ao final do século XIX com uma população total de, aproximadamente, 60 mil habitantes acomodada, em sua maior parte, nas proximidades do porto. Symanski (1998), ao analisar a a arquitetura residencial da cidade nessa época, identifica que Porto Alegre, assim como muitas outras cidades brasileiras, trazia em sua forma urbana influências de antigas tradições urbanísticas de Portugal. Esse tipo de cidade é normalmente formado por lotes de testada estreita e com grande profundidade, em geral, ocupados por construções no alinhamento frontal sem recuos laterais. A área de fundo dos lotes permitia, com alguma frequência, que se formassem pequenas chácaras nos interiores dos quarteirões maiores.

Figura 58: Planta de Porto Alegre em 1881 elaborada por Henrique Breton

O mapa da cidade do final do século passado mostra a predominância do tecido ortogonal configurando um tipo de quarteirão que segue a tradição urbana, viabilizando que todas as edificações que compõem o conjunto de lotes tenham, ao mesmo tempo, interfaces com o domínio público e privado. Aguiar (2010), ao elaborar sobre a transformação espacial do quarteirão urbano de Porto Alegre, identifica que o padrão de urbanização predominante na cidade durante a segunda metade do século XIX mantém essa tradição baseada em um conhecimento urbanístico milenar que adota o quarteirão como elemento-base da morfologia urbana.

O padrão de urbanização de Porto Alegre em 1962 mostra claramente esse modo de organização [produto da tradição urbana]; as edificações distribuídas perimetralmente ao longo do alinhamento paralelo ao meio-fio. Fachadas constituem a rua. Nos fundos, o conjunto de quintais configura um grande pátio interno. (AGUIAR, 2010, p. 134)

Figura 59: Quarteirão na área central de Porto Alegre em 1862

FONTE: AGUIAR, 2010. p.134

Figura 60: Projeto de moradias em Porto Alegre exemplificando o modo de arranjo espacial de cômodos enfileirados

FONTE: http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3097 acessado em 2015.

Esse tipo de quarteirão caracteriza-se pela presença contínua de construções em seu perímetro. Essa configuração das construções permite, conforme a visualização em planta das áreas edificadas, o reconhecimento de um volume único que configura o quarteirão. As edificações se acumulam compondo, desde um ponto de vista de fundo-figura, partes indissociáveis de um mesmo volume, cujo perímetro externo, por sua vez, define o desenho do traçado viário. Nesse contexto, o domínio espacial do ambiente público é delimitado pelo perímetro externo desse volume, que é composto pela totalidade de fachadas das edificações. A leitura do espaço público evidencia-se através da regularidade do alinhamento frontal de quarteirões contínua e inteiramente edificados. As fachadas são então executadas com um gabarito constante caracterizado por uma interface com a rua com portas de entrada e janelas.

O arranjo espacial em planta baixa, afora variações decorrentes da geometria do lote, era comumente configurado por uma sequência longitudinal de compartimentos. Segundo Symanski (1998), as moradias, geralmente geminadas e frequentemente construídas para aluguel, tinham uma configuração em cômodos enfileirados. O cômodo da frente era usado para recepção da casa ou para a função de comércio. Os cômodos intermediários, denominados alcovas, eram dispostos lateralmente a um corredor e, em razão da ausência de janelas para o exterior, viviam praticamente às escuras, conforme projeto na figura 60. Ao fundo da casa ficava a cozinha ligada ao quintal, onde se mantinham hábitos rurais, como o cultivo de hortas e galinheiros.

Symanski (1998), baseado em relatos de viajantes que deixaram registros de suas impressões sobre o modo como eram as moradias da cidade nessa época, identifica o impacto das condições de salubridade na qualidade espacial do interior das moradias.

Quartos podiam ser escuros e abafados – sem ar e sem luz. A cozinha, considerada lugar de negros, nada significava.

E de banheiros e demais instalações sanitárias nem se fale, porque a cidade não dava água nem esgoto...

É custoso, mas deve dizer-se: a casa antiga do porto-alegrense era tudo que havia de mais sombrio, de mais triste, de mais anti-higienico.

(...) Em toda a parte escuridão, bolor e falta de ar. (SYMANSKI, 1998, p. 75)

Sob o ponto de vista das condições de habitabilidade dos espaços internos das edificações, a qualidade espacial fica prejudicada pela redução de aberturas de contato com o exterior. A geometria dos lotes, profundos e de testada estreita, dificultava a criação de vãos de iluminação e ventilação nos compartimentos centrais da planta baixa.

A partir do final do século XIX, Porto Alegre passa por um processo de crescimento populacional impulsionado por uma série de fatores, entre eles a consolidação e o fortalecimento dos

negócios do porto local, a chegada de imigrantes europeus e também pela industrialização que atrai moradores do campo para as cidades. Segundo dados do IBGE (2010), a taxa de crescimento populacional passa dos 2,5% registrados entre 1872-1890 para 3,4% no período 1890-1900, chegando aos 5,90%, maior da história da cidade, entre 1900-1910. Em meio a esse cenário de crescimento populacional, em 1893 o governo institui regras para a construção com a criação do 1º Código de Posturas Municipais sobre edificações – Lei n° 2 de Porto Alegre (1893). Com 42 artigos, esse código regulamenta, entre outros assuntos, dispositivos de controle de edificações com normas que interfeririam na concepção tanto na interface das edificações com o espaço público quanto na configuração interna dos espaços privados. Fazem parte das normativas que compõem esse código a limitação de altura e a definição da taxa de ocupação máxima – limitada a 2/3 da área do terreno. “Art. 3. Parágrafo 8: A altura da fachada sobre a rua não poderá ser superior a uma vez e meia a largura da mesma.” (PORTO ALEGRE, 1893).

No que se refere à salubridade no interior das edificações, o Código de 1893 cria a obrigatoriedade de áreas de ventilação para construções com mais de 20 metros de comprimento. Quanto a isso, consta na lei: “Art. 3. Parágrafo 2. Nenhuma habitação terá mais de 20,0 m de fundo sem que medeie uma área ou pateo, cujo lado mínimo seja pelo menos igual a um terço da altura total do edifício.” (PORTO ALEGRE, 1893).

Faz parte desse mesmo contexto de preocupação com a qualidade espacial do interior das edificações, a disposição sobre a ventilação dos cômodos. Diz o art. 3. Parágrafo 7. “Todos os compartimentos terão o conveniente arejamento.” (PORTO ALEGRE, 1893).

Além disso, a intendência municipal estabelecia, no artigo 30 da lei em questão, a largura mínima de 17,60m para as novas ruas, mas não estabelecia regras específicas para dimensionamento dos lotes, tais como medidas de testada mínima e proporção adequada entre testada e profundidade do lote, sendo com isso utilizadas desde a fundação as medidas vindas dos regimentos coloniais. Os lotes coloniais seguiam o sistema português de palmos: 10 palmos - 2,20 metros; 15 palmos (3,30 metros), 20 palmos (4,40 metros), 25 palmos (5,50 metros), 30 palmos (6,60 metros), 35 palmos (7,70 metros), 40 palmos (8,80 metros), 45 palmos (9.90 metros) e 50 palmos (11,00 metros). Os lotes maiores eram resultado da soma de dois ou mais lotes.

Como parte da estratégia positivista republicana de modernização da cidade, são iniciados serviços que visavam promover a melhoria da infraestrutura urbana, como o abastecimento d’água e o transporte público por bondes elétricos, medidas que contribuiriam para a criação novos bairros fora dos limites do centro da cidade. Já então os tradicionais agentes imobiliários, como comerciantes com capital excedente, herdeiros e investidores individuais que atuavam em empreendimentos de pequeno porte – loteamentos de chácaras, construção de vilas e pequenos conjuntos residenciais –

são aos poucos substituídos por grandes incorporadoras interessadas na realização de grandes loteamentos.

(...) a partir da última década do século XIX, a figura solitária do proprietário fundiário começa a desaparecer do cenário da capital cedendo lugar às companhias de loteamento, criadas especificamente para atuar no mercado de terras. (STROHAECKER, 1996, p. 817)

Em estudo sobre o surgimento das principais empresas atuantes no mercado imobiliário de Porto Alegre a partir do final do século XIX, Strohaecker (1996, p. 815) sugere que “o emergente setor imobiliário de Porto Alegre teve no Estado seu forte aliado”, já que o Código de Posturas Municipais (1893) exigia que os interessados em doar ruas à municipalidade deveriam anexar uma planta com a situação delas. A esse respeito, está escrito na lei: “Art. 27. Parágrafo único. - Os que oferecerem à municipalidade terrenos, mesmo suburbanos, para a abertura d'esses logradouros, deverão apresentar uma planta bem orientada, com indicação das ruas vizinhas.” (PORTO ALEGRE, 1893).

Os empreendimentos focavam classes sociais distintas, de acordo com as condições do sítio. Segundo Strohaecker, áreas alagadiças, como a do bairro Navegantes, por exemplo, eram comercializadas para classes menos favorecidas, como imigrantes recém-chegados e operários. Como o imposto predial era cobrado por largura de testada, normalmente esses lotes eram muito estreitos, em torno de 6 metros.

O loteamento Navegantes-São João, lançado em 1896, obedecia a um rígido traçado ortogonal estruturado por vias (...) de largura uniforme de 80 palmos (17,60 metros), mínimo prescrito pela administração municipal da época. Os lotes, por sua vez, eram comercializados por metro de testada, não guardando uma proporção entre largura e comprimento dos mesmos. Geralmente os lotes eram estreitos e muito profundos (...). (STROHAECKER, 1996, p. 817)

Em contrapartida, em regiões localizadas em áreas mais altas e em sítios mais aprazíveis do ponto de vista de recursos naturais, como as áreas adjacentes ao bairro Moinhos de Vento, o antigo arraial São Manoel, eram lançados loteamentos visando atrair classes mais abastadas, medindo em duas vezes o tamanho dos lotes colonais.

Lotes estreitos e profundos geram limitações à incidência de iluminação e ventilação natural no interior das edificações em decorrência do arranjo espacial em fileira. Já sob o ponto de vista da configuração do quarteirão, as testadas mais estreitas aumentam a quantidade de lotes a comporem um mesmo quarteirão. Em consequência, a diversidade dos agentes envolvidos no processo de construção do espaço urbano que implicaria um aumento da sua capacidade de transformação.

Figura 61: Mapas viários de Porto Alegre em 1888 e 1896. Comparação mostra a ação das companhias loteadoras principalmente na continuidade do centro em direção norte

FONTE: http://prati.com.br/fotos-antigas-mapas-e-plantas/ acessado em 2015.

As mínimas restrições legais em relação ao loteamento de terras impostas pelo município davam, conforme exposto por Strohaecker, liberdade para a ação dos empreendedores. Como resultado, identificamos em sua pesquisa que no final do século XIX o mercado imobiliário da cidade já estava em grande parte sob o comando de somente três companhias, e a partir do início do século XX fica praticamente monopolizado pela Cia Predial Agrícola, que se mantém nesse posto até a década de 1920. A preponderância de poucas empresas operando no mercado de terra restringe a atividade de pequenos agentes. A redução do número de atuantes envolvidos no mercado de terras tem caráter negativo sob o ponto de vista da urbanidade, componente da qualidade espacial urbana.