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CAPÍTULO I – GÊNERO, PARENTALIDADE E O "NOVO PAI"

I. 5 O uso dos tempos de homens e mulheres no cuidado infantil

I.5.2 Portugal em foco

Em Portugal a realidade não é muito diferente. Perista et al. (2016) apontam uma relação assimétrica no que diz respeito à participação de homens e mulheres no trabalho não remunerado, seja nas tarefas domésticas como nas tarefas relacionadas ao cuidado. A partir de um trabalho de investigação dos autores – que incluiu uma componente quantitativa e uma componente qualitativa11

– verificou-se que as mulheres investem, diariamente, 55 minutos a mais na prestação de cuidados e 1 hora e 12 minutos a mais nas tarefas domésticas, em comparação aos homens. No total, em média, o trabalho não pago implica para as mulheres uma afetação de tempo diária de 4 horas e 23 minutos; e para os homens de 2 horas e 38 minutos, ou seja, menos 1 hora e 45 minutos.

Essa assimetria, como indicam as respostas dos entrevistados de Perista et al. (2016), pode ser causada por motivos associados à natureza das atividades profissionais dos homens ou às políticas e práticas da sua entidade empregadora, tendo em vista que eles acabam por ter uma carga horária maior e, sendo assim, menos tempo para se dedicar à família. Ou seja, é um efeito onde causa e consequência se misturam. Um ciclo que depende de muitas outras mudanças para ser rompido.

A análise de Perista et al. (2016) permite constatar ainda que tal disparidade assume o seu valor máximo em relação à prestação de cuidados físicos (dar de comer, dar banho, etc.) aos quais as mulheres dedicam, em média, 1 hora e 44 minutos, enquanto os homens dedicam 1 hora e 11 minutos. Também há uma diferença notável no que se refere às atividades de natureza mais lúdica, como ler, brincar e conversar com as crianças, às quais os homens dedicam 1 hora e 6 minutos e as mulheres, 1 hora e 22 minutos.

A pesquisa mostrou que, apesar de perceberem a injustiça, algumas pessoas aceitam a diferença nos papéis parentais, sobretudo por conta de fatores biológicos (amamentação,

11 A componente extensiva/quantitativa consistiu na aplicação de um inquérito nacional aos usos do

tempo. Responderam ao inquérito um total de 10.146 pessoas. Uma vez aplicados os critérios de ponderação acima referidos, obteve-se uma amostra constituída por 5.797 mulheres (57,1% do total da amostra) e 4.353 homens (42,9%) A componente intensiva/qualitativa do estudo baseou-se na realização de um conjunto de 50 entrevistas em profundidade. As entrevistas abrangeram 28 mulheres e 22 homens em diferentes zonas do território nacional (Perista et al., 2016).

vínculo mãe e bebê) e, especialmente, em virtude da diferente duração das licenças atribuídas às mães e aos pais:

As tensões manifestam-se desde logo no usufruto das licenças parentais iniciais. É à mãe que cabe tipicamente a incumbência de assegurar o bem-estar da criança nos primeiros meses de vida, enquanto o pai, se presente, cumpre o papel de provedor económico a par de uma função auxiliar (de “ajuda”) no que toca a cuidados físicos ou emocionais. (Perista et al., 2016, p. 122)

A investigação Family and Gender Roles Survey, que aborda a percepção de justiça da divisão de trabalho em casais da sociedade portuguesa, apresenta resultados semelhantes. De acordo com a análise dos resultados feita por Amâncio e Wall (2004), a divisão das tarefas domésticas segue um padrão tradicional, muito embora haja um forte desejo das mulheres de que os homens participem mais. Mais uma vez, constata-se que para as mulheres cabem as tarefas relacionadas à limpeza, à organização e às refeições do lar, enquanto que os homens se ocupam de reparações na casa.

Quando questionados diretamente sobre a “percepção” de justiça em torno do trabalho doméstico, os entrevistados demonstraram que

[...] embora com significativas variações entre os sexos e níveis de escolaridade, não existe um claro reconhecimento de que a divisão das tarefas é injusta e a resposta que suscita maior concordância, e que ancora a divisão das tarefas domésticas nas representações de género, ou seja, “cada um faz o que sabe”. (Amâncio & Wall, 2004, p. 6).

Ao lançar um olhar histórico para as mudanças na sociedade portuguesa, Aboim e Cunha (2010) esclarecem que houve uma grande evolução na equidade dos papéis de homens e mulheres nomeadamente na vida pública, mas que essa transformação parece não se refletir na privada. Ao analisarem o passado, as autoras demonstram que a realidade de 40 ou 50 anos atrás – marcada por uma sociedade rural, pobre e iletrada – evidenciava ainda mais as diferenças de gênero, em um contrato desigual “centrado na oposição entre dona de casa e o provedor da família” (Aboim & Cunha, 2010, p. 39).

Em 1960, o aumento da taxa de atividade feminina sinalizou uma das mudanças mais espetaculares da sociedade portuguesa profissional. Após o 25 de abril de 197412 a entrada feminina no mercado de trabalho evoluiu rapidamente, transformando Portugal “num dos

12 Conhecida como a “Revolução dos Cravos”, a Revolução de 25 de Abril refere-se a um evento da história

de Portugal que depôs o regime ditatorial e iniciou um processo que viria a terminar com a implantação de um regime democrático (Barreto & Mônica, 2000).

países europeus com maior número de mulheres activas a trabalhar a tempo inteiro” (Aboim & Cunha, 2010, p. 39), o que afetou diretamente a organização familiar:

Do ponto de vista da família, estas alterações significam, pelo menos ao nível do trabalho pago, a passagem de um modelo de organização familiar centrado numa divisão diferenciada dos papéis de género – o homem, fora de casa, responsável pelo ganha-pão; a mulher, doméstica, consagrada à lida da casa e aos cuidados dos filhos – para um modelo de família centrado numa divisão mais simétrica e “igualitária” dos papéis de género, em que ambos os cônjuges participam no mercado de trabalho e contribuem para o rendimento familiar. (Aboim & Cunha, 2010, p. 42).

Assim, as mudanças iniciadas nos anos 60 marcam o começo da entrada das mulheres em esferas tradicionalmente masculinas. Contudo, como concluem Aboim e Cunha (2010) e Perista et al. (2016), essas conquistas femininas não se refletem em uma mesma entrada do homem no domínio privado. Os pesquisadores indicam uma crescente participação masculina, porém são elas que continuam a ter que arcar com a maioria do trabalho doméstico e parental.

Dessa forma, observa-se que em ambos os países é ainda necessário romper com preconceitos e ideias de gênero estereotipadas para que se possa ter uma divisão mais justa no uso dos tempos de homens e mulheres nas tarefas que envolvem cuidado com a casa e com a família. A noção de que o cuidado das crianças é um assunto feminino representa um grande obstáculo para o envolvimento dos homens. Então, um caminho para combater essa assimetria é investir em uma licença-paternidade de maior duração, pois “argumenta-se, por exemplo, que uma maior presença do pai nos primeiros dias de vida da criança poderia mudar o comportamento das famílias quanto à divisão das tarefas domésticas” (Almeida, Pereda & Ferreira, 2016, p. 503).

Isso também é o que afirma o relatório Parental leave: Where are the fathers? realizado pela Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) (2016), ao concluir que pais (homens) que tiram licença-paternidade têm mais probabilidade de executar tarefas como alimentar e dar banho no bebê e, logo, envolver-se mais no cuidado com a família e a casa. De acordo com Levtov et al., 2015, a licença paternidade representa um importante passo para o reconhecimento da importância da divisão do cuidado das crianças e uma estratégia para a promoção da igualdade de gênero no ambiente doméstico, no trabalho e na sociedade em geral. Embora a maioria das sociedades industrializadas atuais defendam um maior envolvimento do pai na vida familiar, tanto mães como pais experienciam uma pressão vinda de seus empregadores, relacionada à criação dos filhos e,

geralmente, a mãe acaba pagando uma pena extra no espaço de trabalho (Ammari & Schoenebeck, 2015).