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“No começo era o caos”; segundo o poeta Hesíodo em sua obra Teogonia.

“Lá existe o espaço aberto, a pura extensão do ilimitado, o buraco inconsolável! De repente, a primeira realidade sólida se inicia: Gaia, a Terra.

Isso deu sentido ao caos, estabeleceu limites, instalou o chão”.

PEREIRA (2013, p. 82)

Depois de viver com as crianças os primeiros meses, foi necessária uma intensa reflexão acerca do que seria importante destacar no encontro pedagógico com aquele grupo. Primeiro, superar um sentimento de impotência muito grande nos primeiros meses, em que eu era invisível no grupo, as minhas palavras não significavam nada, a sensação que eu tinha enquanto estava na sala era como se não tivesse um adulto ali, não importava o que acontecesse entre as crianças, minha presença não alterava em nada. Essa invisibilidade percebida logo no início mostrava a resistência do grupo. Porém, é relevante destacar aqui, com Madalena Freire (2008, p. 80) que,

Uma descoberta que gera muita angústia, muito medo, raiva, frustração e ansiedade é perceber-se incompetente diante do novo, do não saber. Contudo, ela é uma descoberta essencial no processo de aprender e construção do conhecimento, ela é motor que aciona em nós a busca do conhecer, aprender.

Pensar acerca dessa resistência das crianças em relação ao adulto foi uma experiência importante, visto que esse movimento da turma me colocou em uma encruzilhada: poderia escolher resistir com a mesma força ou empregar força mínima. Nesse sentido, Richard Sennett (2012) nos mostra através do seu estudo sobre a cooperação que a força mínima é a maneira mais eficaz de trabalhar com a resistência,

Ao passo que, fazendo uso de força mínima, tanto física quanto socialmente, podemos nos tornar mais sensíveis ao ambiente, mais ligados a ele, mais envolvidos. As coisas ou pessoas que resistem a nossa vontade, as experiências que opõem resistência a nossa compreensão imediata passam a importar em si mesmas. (SENNETT, 2012, p. 256).

Optei então em empregar a força mínima, no sentido que Sennett lhe dá, para estabelecer um vínculo entre eu e as crianças, entre eu e o grupo, algo

que permitisse um tipo de comunicação entre nós. Precisava fazer parte desse grupo. Nas palavras de Russo (2007, p.68, grifos do autor),

Procurei ser transparente o máximo possível e não agir segundo critérios incompreensíveis: é a questão da coerência das mensagens e das regras a que me referi no início. Mas quando as regras já foram bem compreendidas, quando os deveres não são tantos e tais que ditam a forma da nossa relação a cada dia, essa relação vai em frente, muda tem crises que são superadas, tem impulsos, desenha a própria forma. Tudo isso pode ser dito, trocado reciprocamente, não somente entre adultos/as em ocasiões como essa, mas com as próprias crianças. Porque elas têm o direito de ver restituída a vantagem de saber, de compreensão das coisas e delas próprias, que eu continuo a acumular sobre elas à medida que nos conhecemos.

Diante disso, passei a interrogar como pensar o cotidiano na educação infantil? Em meu percurso muitas foram as situações de “caos” organizador do grupo, especialmente aquelas que emergiam dos primeiros encontros com as crianças de um grupo, nos “começos” de nossas interações nas quais tanto os adultos quanto as crianças estávamos em processo de aprender a conviver no coletivo. Porém, com esse grupo o que surgiu como novidade pedagógica extrema para mim foi o desafio de interpretar a convivência em “turno integral”.

Manhã e tarde com as mesmas crianças, no mesmo espaço, com os mesmos limites de ação pedagógica. Logo compreendi que o que não poderia se manter o mesmo era justamente minha ação docente. O que teria que aprender com essas crianças? Trago então Deleuze (2003) por me ajudar a refletir sobre meu processo de aprender a decifrar o grupo enfrentando o caos como porvir da existe aprendiz que não seja „egiptólogo‟ de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. (DELEUZE, 2003, p. 4).

Posso então considerar que me torno pedagoga tornando-me sensível aos signos do grupo de crianças com as quais convivo, pois “tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos” (DELEUZE, 2003, p. 4). Algo que exige um trabalho

da inteligência, pois é preciso para Deleuze (2003, p. 22), “sentir o efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que forçado a procurar o sentido do signo”. E essa procura, essa exigência do pensamento, supõe dispender “tempo” com as crianças para tornar possível o esforço do pensamento interpretar os signos por elas emitidos em nossa convivência.

Passei a compreender que não basta listar ou até mesmo descrever o que e como vamos fazer coisas com as crianças. Estar com elas em tempo integral – dispendendo tempo – me forçou pensar acerca dos muitos tempos que vão costurando o dia a dia na educação infantil. O modo como o planejamento se tece no cotidiano se reflete nas opções pedagógicas que norteiam a organização do tempo e do espaço. Danilo Russo (2007, p. 63) nos lembra em seu texto que “tudo aquilo que há na sala está lá porque eu escolhi, dentre aquilo que a escola da infância nos oferece, com uma ideia de como podemos fazer uso delas”. E foi assim que passei a configurar minhas ações, propondo também outras situações para as crianças. Em termos de organização do tempo e do espaço, fui fazendo minhas tentativas a partir da configuração da roda.