• Nenhum resultado encontrado

Jorge Mpodozis

Por meio destas palavras finais, proponho-me a tecer aqui uma conversa breve, ou nítida, sobre os conceitos sistêmicos que estão por trás das discussões aqui expostas: os conceitos sistêmicos mais profundos, talvez mais vitais e mais necessários em todo esse discurso da Biologia sistêmico-histórica. E aí há um conjunto de conceitos sobre os quais quero falar e, talvez, torná-los mais claros.

Com efeito, tem sido comum que uma pessoa ouça esses conceitos discutidos até aqui e, depois, pareça não conseguir entendê- los claramente. E isso se dá pela maneira de ouvir, não pelos conceitos em si. Quando discutimos, por exemplo, o conceito de organização e de estrutura e, depois, ouvimos o que as pessoas dizem a respeito disso, parece que habitamos mundos diferentes; o que as pessoas ouvem e leem como consequência de nossos encontros e aquilo que elas entendem quando mencionam esses termos – organização e estrutura, devir, história – têm significados tão diferentes que passamos a duvidar do que foi que dissemos ou escrevemos.

Onde está o or

ganismo? | 196

E isso tem muito a ver, não com os conceitos, mas com o ouvir – porque as pessoas ouvem essas coisas a partir de uma transfusão de entendimento que não é necessariamente aquele de quem faz a conversação. Então, essas coisas se cruzam ou se superpõem com o entendimento que cada um traz, que tem a ver com um transfundo que, muitas vezes, é implícito, e não explícito, e que simplesmente se formou durante o viver no cotidiano da vida cultural e biológica em que cada qual vive. Forma-se um arcabouço de entendimento que confere a cada um uma maneira particular de ouvir.

Assim, é necessário um esforço adicional no sentido de traçar um modo de ouvir e de entender que seja comum e que nos permita avançar. Creio haver muitas dificuldades criadas exatamente por essas distintas maneiras de ouvir. Acredito que, apesar de falarmos em coisas que parecem abstratas ou conceituais, o pensar é sempre concreto, refere-se sempre a operações, a ações que fazemos ou que podem ser feitas nas circunstâncias em que podem ocorrer.

Esse é o conteúdo do pensamento. Quando alguém mostra uma abstração ou propõe um conceito, e o declara em termos discursivos, parece estar se referindo a algo abstrato, que existe em termos conceituais, afastado de qualquer coisa que tenha a ver consigo. Não penso, todavia, que seja isso o que se passa. Se estudamos Biologia, estamos fazendo experimentos, e é nossa tentação falar da Biologia. Assim, estaremos metidos em um discurso que é operacional, que tem a ver com o que se faz e com o que se pode fazer, e não com elementos de outra natureza.

Então, esse conceito de organização que parece esotérico e tão central, na realidade, é muito antigo e substancial ao pensamento, porque tem a ver com “distinguir o que permanece naquilo que muda”. Claro, porque Aristóteles, por exemplo, dá-se conta de que temos muitas árvores e que elas são todas diferentes, de forma que posso dizer: “Aqui está uma árvore”? Desse modo, o que tenho são instâncias de realização de uma generalidade.

Dentro dessa generalidade, todas as árvores pertencem à mesma classe. Mas o que faz a classe árvore? O filósofo diria que é algo principal e anterior às árvores particulares, porque o geral é mais importante que o particular. E o cambiável é menos importante que o permanente. Isso disse Platão. No entanto, estamos falando de árvores; falemos de seres vivos.

Posfácio – O modo de ouvir

|

197

Falemos dos animais porque eles se transformam de maneira muito incrível ao longo de sua história. O que permanece quando distingo um animal como membro de uma classe, digamos, um inseto que atravessa essas metamorfoses; o que estou distinguindo aí? Olhe este mamífero, este camundongo, este gato... O que estou distinguindo? Uma forma de mudar. O gato, ou melhor, o seu viver na “gatidade” é uma distinção que fazemos acerca de um modo dos gatos se transformarem no tempo.

Essa alusão ao modo de se conservar e de se transformar em seu viver é um ponto fundamental, porque, no caso dos animais, transformar-se faz parte de sua existência. Não posso me surpreender com as transformações históricas do organismo porque, no momento em que as impeço, ele morre. O que permanece é a forma de mudar. Como entender isso? Como entendê-lo concretamente, com as mãos, porque o pensamento muitas vezes se faz com as mãos, traduz-se em operações, coisas que se podem fazer ou não. Gostaria de explicar isso com as mãos: o que permanece é a maneira como muda. Posso dar-lhes um exemplo.

Noutro dia, pedi a um grupo de estudantes que fabricassem uma campainha que produzisse um único som metálico, como o de um sino. Mostrei a eles um modelo, como essas campainhas de recepção de hotéis, que acionamos com um apertar de botão para chamar um recepcionista, e lhes disse: produzam campainhas. E, alguns dias depois, meus alunos chegaram com duas campainhas construídas de maneira muito original. Uma delas, por exemplo, foi feita com um pregador de roupa que martela contra uma chapa de metal; outra foi construída com uma garrafa de refrigerante e uma chave dentro presa por um barbante que, quando se movimenta, promove o trinar da chave contra o vidro da garrafa.

Esse é um caso como o de Aristóteles, porque aqui estão esses dois objetos, duas instâncias de uma realização de certa entidade que não é em particular nenhuma dessas duas coisas. O que têm essas duas coisas em comum? O interessante, no caso desses objetos que estão aqui e de outros, é que, se os olharmos, veremos que, apesar de seus componentes e do modo como estão feitos serem diferentes, a forma – diria Aristóteles – é a mesma.

E qual é esta forma? Há algo que gera um pulso e uma superfície ressonante em ambos os exemplos feitos por meus alunos. Dá no mesmo, qual seja o pulsador e qual seja a superfície ressonante. A relação entre estas duas coisas é o que faz destes objetos o que são.

Onde está o or

ganismo? | 198

Então, o interessante disso está em que a organização é comum às duas campainhas (Aristóteles falava de forma). Qual é o segredo da organização? As relações, pois o segredo está na distinção de relações entre coisas.

Ah, é evidente que, para que certo objeto ou entidade possa converter-se em um membro da classe definida por essas relações, os materiais que formam esse objeto ou entidade não podem ser qualquer coisa. Quando tenho uma campainha, vou ter algo que sirva de ressonador. Quer dizer, a constituição de um desses objetos, como membros de uma dada classe, pressupõe haver componentes que materializam essas relações. E, a partir desse ponto de vista, nem todas as coisas podem ser componentes de um determinado sistema. É interessante isso.

Há algo que eu apontava a meus estudantes quando pedi que construíssem campainhas. Onde está o som? O som não está na campainha, não é um componente desse sistema. Qual é a função da campainha? Produzir o som, chamar a atenção. É, contudo, o som um componente dela? Isso parece trivial, mas é interessante. O que digo desse sistema em termos funcionais não me ajuda a saber como ele está feito. O ressonar, a produção do som, não toma parte nisto: resulta da operação disso, mas não é componente disso. Não ponho sons aqui: ponho arame, madeira, vidro. O som surge da interação de alguém que pode ouvir com o operar desse sistema.

A função não faz parte da estrutura. E é interessante, também, considerar a noção de organização – aquilo que permanece no que muda. Ah, todas as árvores são instâncias da “arvoridade”, como todas essas campainhas pertencem à mesma classe; portanto, têm em comum uma organização, e o que estou distinguindo são, pois, as relações. Interessante, porque a distinção das relações é também uma “coisa”. As relações distinguidas são tão “coisa” quanto as coisas que formam isso, os componentes.

É central entender isso quando estamos lidando com seres vivos por uma razão muito simples: porque eles estão em contínua transformação. São sistemas históricos. Então, a identidade do sistema não está em sua continuidade material, mas sim nas relações que o definem. As relações se dão entre os componentes no espaço, embora pudéssemos dizer, filosoficamente: as relações não ocupam lugar no espaço.

Posfácio – O modo de ouvir

|

199

Posso mudar, por conseguinte, os componentes, como na história da espada de Bernardo Ohiggins – o pai da pátria chilena – que mantinha a espada em condições impecáveis, brilhante. E quando lhe perguntavam como a conservava, assim, em tão boas condições, ele respondia: “É que já troquei muitas vezes a empunhadura e a lâmina.” Então, a espada de Bernardo Ohiggins tem uma continuidade histórica.

Isso se passa no viver. O automóvel que usamos é levado ao mecânico para que se troquem peças. E certo senhor, também, teve o coração substituído por outro, e sua identidade não se alterou. E há muitas outras transformações estruturais que são possíveis sem que a identidade se perca. Isso é particularmente interessante quando temos um sistema dinâmico, contínuo, porque, se detivermos a dinâmica de transformações estruturais em que o sistema atravessa em seu operar, ele se desintegra. Posso tirar uma fotografia do sistema, ou, digamos, congelar uma célula. Uma célula congelada é uma célula? É algo que tem a potencialidade de ser uma célula caso a descongele; mas o contexto das relações que fazem disso uma célula não está presente.

Se eu detenho o fluxo estrutural, rompo o ser vivo, sua organização, porque a mudança estrutural contínua é constitutiva dos seres vivos como sistema. Menciono isso porque é muito interessante essa questão, e coloco imediatamente a história como o eixo central na Biologia. Isso não é nada maravilhoso, excepcional, não resulta de uma grande inspiração; não é algo que dizemos para chamar a atenção para algo raro, nem algo que se acentue na Biologia do Conhecer, do Dr. Maturana, que tem sua história. Dizemos isso porque não podemos dizer outra coisa. Quando estamos tratando de seres vivos, temos que ver sua biologia no que tem de transformações históricas.

E é constitutivo e inevitável exatamente por essa razão, porque, se o bicho está em contínua transformação estrutural e esse é seu modo de organização, o que vai se passar é que vai se transformar, do ponto de vista de sua estrutura. O que se conserva em uma linhagem de seres vivos? Tomemos a ontogênese: há um gato, e tem um filho, que é um gato. Ao distinguir um gato, distingo, na verdade, um modo de transformar-se na história. Não distingo um momento particular, ainda que, comparando os momentos particulares, possa encontrar o curso da transformação histórica à qual chamo “gato”. O interessante é que, quando vemos a transformação transgeracional, percebemos a conservação de um modo de transformar-se.