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3.1 ORIGENS E TRAJECTÓRIAS SOCIAIS DOS ALUNOS DOS CURSOS DE

3.1.2 AS POSIÇÕES ESTRUTURAIS

Tal como já foi referido, estas famílias têm também como traço transversal a pertença aos grupos mais desfavorecidos e desqualificados da sociedade portuguesa. Embora não se utilize uma classificação dos indivíduos em categorias socioprofissionais de pertença, é possível através dos dados recolhidos, afirmar que todos os entrevistados estão posicionados nos lugares mais baixos da escala social. No caso dos que trabalham, as profissões desempenhadas são de negociantes (ou vendedores ambulantes) por conta própria25 e de empregadas domésticas por conta

de outrém.

“JP – Depois, olhe, fui trabalhar ali p’rá Praça... Ent – Há quantos anos…então sempre trabalhou ali? JP – Sempre trabalhei desde pequenino...

Ent – Desde pequenino…

JP – Quando saí da escola fui p’ráli...” (sexo masculino; 45 anos; solteiro; etnia cigana; frequência da 3ª classe)

“Ent – Trabalha em quê?

R – Trabalho em casa duma senhora... Ent – Sim

R – Como doméstica... e é isso...” (sexo feminino; 24 anos; solteira; natural de Angola; frequência da 3ª classe)

25 É recorrente no caso das famílias de etnia cigana terem o ‘negócio’ como um contínuo da esfera familiar, e por isso, é

tão habitual observarmos nos mercados e feiras todos os membros do agregado a colaborarem na venda como forma de conseguir o sustento e assim assegurar a subsistência de todos.

“F - E então daí comecei então a trabalhar a dias que é o que tou a fazer agora é trabalhar a dias...” (sexo feminino; 58 anos; viúva; sem escolaridade)

Verifica-se a par com as situações enunciadas, por um lado, o desempenho destas actividades comerciais, por vezes ilegalmente, e por outro, a inexistência de contratos formais de trabalho, ou seja, a permanência de modo mais ou menos clandestino no mercado laboral.

“Ent – Como é que foi para electricista, como é que surgiu essa oportunidade, não é? Podia ter ido para outra coisa qualquer?

A – Ahh! Antes disso estive a trabalhar de… em azulejos... Ent – ladrilhador…

A – e chão... estive a trabalhar nisso também... mas estive o quê?... um mês... tive um acidente, parti a boca... esta parte aqui... depois o homem, pronto, não tinha seguro... mandou-me embora para casa, não sei que mais... e eu “então o senhor não me leva ao hospital??”... logo... “ Ahhh e tal...” levou-me até à linha do comboio, deixou-me e fui para casa... fui para o hospital sozinho... uma dor imensa... e eu pronto, daí nunca mais trabalhei, pronto... trabalhar nas obras nunca mais...

Ent – Pois, e ele nunca mais apareceu nem quis saber…

A – Pois eu depois quando voltei lá, tinha outro senhor a trabalhar no meu lugar... Ent – Pois…

A – Agora tou a trabalhar de electricista, mas é, pronto, é... é mais fios... para fazer as ligações...” (sexo masculino; 24 anos; solteiro; etnia cigana; sem escolaridade)

Estas situações de marginalidade relativamente ao trabalho tornam-se ainda mais graves no caso das famílias de etnia cigana, devido ao facto das desigualdades sociais e económicas se acumularem com outras, como por exemplo, as desigualdades étnicas (Enguita, 1996). Por detrás da aparente regularidade social da maioria dos indivíduos terem referido que tinham como principal ocupação/profissão e meio de vida o ‘negócio’, esconde-se uma diversidade de situações que os estruturam também internamente face a esse ‘nicho’ do mercado de trabalho.

Identificam-se, pelo menos, duas variáveis que podem distinguir a forma de fazer a ‘vida do negócio’. Em primeiro lugar, a variável idade que se relaciona directamente com o percorrer de uma trajectória que dependendo dos casos, e muitas das vezes também das condições socioeconómicas das famílias de origem, se pode revestir de maior ou menor sucesso financeiro, logo de mobilidade intracomunitária e intrageracional (ascendente ou descendente). Em segundo lugar, a variável recursos financeiros mobilizáveis para o investimento nas actividades

comerciais é tomada, em relação directamente proporcional com os montantes, como um pressuposto para uma vida mais à vontade.

“Ent – E não quis ir para o negócio?

A – Não quis ir para o negócio, não é isso... não... não... não havia situação, não havia era ... situação financeira p’ra comprar negócio, p’ra comprar roupa... aquelas bancadas... uma pessoa que tem uma vida boa, pronto, tem assim uma bancada grande, tem a roupa ali... agora a gente ter um quadrado daqui p’ráli...???

Ent – Claro, tem de ter dinheiro para investir, não é?

A – Pois. Tem que ter uma base... tem que se criar do pouco p’ra ter...” (sexo masculino; 24 anos; solteiro; etnia cigana; sem escolaridade)

Estas variáveis funcionam como estratificadoras da comunidade cigana, podendo identificar-se três situações, diferenciadas e diferenciadoras, de ‘andar ao negócio’, elemento centrípeto do quotidiano26 destas estruturas familiares:

a) “Andar com uma alcofa”

Esta situação é o modo mais precário da vida do negócio. Caracteriza-se, essencialmente, por andar pelas ruas com uma alcofa27 servindo como meio de

transporte e armazenamento das peças para vender. O material para venda, nestes casos, é uma pequena quantidade de peças que se expõem nos braços, habitualmente, de mulheres. De referir que é o modo que se reveste de maior ilegalidade, tendo por isso os vendedores que andar a fugir à polícia.

“A – Não, não tenho lugar na praça... chegamos cá, pronto, não há lugar... vendemos nas ruas a fugir à polícia... muita chato, ‘tás a ver...

Ent – Hum, hum...

A – Uma pessoa andar a vender, não estamos a fazer nada de mais, estamos a vender e estamos a fugir deles… por ‘tar a vender…

Ent – … por estar a vender… E eles andam sempre atrás de vocês, não é? A – (risos)” (sexo masculino; 24 anos; solteiro; etnia cigana; sem escolaridade)

b) “Ter um lugar na praça”

Este modo de andar ao negócio já é uma forma de estabelecimento. Pressupõe uma licença camarária para ocupar um lugar num mercado ou praça mediante o pagamento de uma determinada quantia de aluguer. Permite comercializar maior quantidade de material e é, de certo modo, uma forma mais estável e

26 Alguns dos dados empíricos recolhidos através de idas ao mercado tornaram possível aferir algumas das dinâmicas

familiares e profissionais através da observação directa no próprio contexto, o que serviu para corroborar os dados obtidos pelas entrevistas, e ao mesmo tempo, registar com maior detalhe as vivências in loco da venda ambulante.

permanente de obter rendimentos. Habitualmente, toda a família ou alguns dos seus membros tomam conta do negócio, tendo sempre o homem o papel predominante do ‘gestor’. É comum, observarmos neste tipo de situação, as mulheres a tomarem conta dos filhos em idade pré-escolar ou ainda bebés28,

bem como, algumas crianças mais velhas a terem essas responsabilidades enquanto os pais trabalham. Os homens alheiam-se de todas estas responsabilidades dedicando o seu tempo e esforço à ‘gestão do negócio’ ou agrupando-se com outros homens.

c) “Comprar aos lotes”

Esta última situação é a mais privilegiada económica e socialmente no seio da comunidade cigana que se dedica a este tipo de actividades profissionais. Pressupõe que já se tenha obtido a situação anterior, ou seja, um ‘lugar na praça’ para vender. Os indivíduos nesta situação têm, habitualmente, recursos financeiros para investir no negócio, não só fazendo-o nas grandes quantidades de mercadoria para a venda, mas também, na aquisição de automóveis (os mais vulgares são os furgões de carga) e na obtenção de cartas de condução29 para

que possam ir comprar directamente nas fábricas onde os materiais são produzidos30. O processo consiste em arrematar lotes de material que depois se

vendem aos clientes por um valor à peça, proporcionando lucros já de alguma dimensão, pelo menos em termos relativos.

Para além dos que desempenham uma profissão com um carácter de maior ou menor formalização, existem ainda, e particularmente, no caso das mulheres solteiras pertencentes à etnia cigana, alguns testemunhos que afirmam não ter

28 Uma das situações habituais é a de alimentar as crianças em cima das bancadas, muitas vezes, misturadas com as peças

para venda. Estas situações são também por vezes fontes de conflitos familiares entre mães e filhos, ou porque as crianças se recusam a comer, ou porque estão a estragar a mercadoria, ou somente porque há um transporte das práticas e comportamentos da esfera privada para o domínio público.

29 As quais muitas das vezes são obtidas em circuitos ilegais, como o demonstra a seguinte citação:

“Ent – E o seu marido tem carta de condução? D – O meu marido tem carta de condução...

Ent – E tirou porque já sabia ler ou tirou por aquelas modalidades mais...

D – Tirou por... aquelas cartas chega-se ali, compra-se... eu vou dizer como é que é... é umas cartas que eles dão uma palavra ou duas e depois pagam 400 contos por isso... e depois têm a carta, passa-se pela polícia, passa-se bem... pronto, não é grave... a maior parte dos ciganos todos e sem ser ciganos têm cartas assim dessas...” (sexo feminino; 26 anos; casada; etnia cigana; sem escolaridade)

30 A maioria destes indivíduos deslocam-se a fábricas da indústria têxtil situadas no Norte do país (onde existe também

maior concentração deste tipo de indústria), fazendo as viagens durante a noite para chegarem de madrugada aos locais onde podem adquirir as peças que saem com pequenos defeitos da produção.

nenhuma ocupação fora do espaço doméstico, dedicando todos os seus esforços às tarefas da casa e ao cuidar das crianças ou dos idosos da família.

“ML – (risos) a minha vida não tem nada que contar... é... sou doméstica... vivo com o meu pai, não tenho mãe, já faleceu há 10 anos... vivo com os meu pai, com uma irmã minha, tomo conta dos meus sobrinhos quando a minha irmã vai trabalhar p’ró negócio... e eu fico a tomar conta deles... vou às compras, venho p’ra casa arrumar, chego a esta hora venho p’rá escola... é assim a minha vida” (sexo feminino; 37 anos; solteira; etnia cigana; frequência da 2ª classe)