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Com relação à situação de entrevista e ao engajamento interativo entre a pesquisadora e o adolescente entrevistado, percebe-se que os posicionamentos de self ofertados nessa pequena história são promovidos pelas representações de si que Januário deseja mostrar, tendo como interlocutora alguém que conjuga as características de mulher, adulta, psicóloga e parte do cenário da CSL. Januário se apresenta como um adulto que tem experiência de vida, que tem dinheiro para ostentar e histórias para contar. Ao se diferenciar dos seus amigos, Januário faz uma oferta identitária a Tatiana de alguém merecedor de respeito, maduro e que pode dar conselhos.

Ele enfatiza que se tornou um “cara de boa” ao opor seu passado de “curtição” (l.38) e seu presente “de boa” (l.39). Januário se auto-refere como um rapaz reflexivo, que avalia moralmente a própria vida e relata seus sentimentos sobre suas amizades. Os tempos verbais e os advérbios de tempo são relevantes para a análise desta pequena história, pois podem ser desmembrados nessas duas temporalidades e estilos de vida opostos. O seu presente, caracterizado como “de boa” (l.39), é marcado por verbos no presente e no gerúndio, e por pronomes na primeira pessoa do singular, como exemplificado em: “tava pensando” (l.20 e l.37), “tô pensando” (l.21), “mudando a vida” (l.35), “tô lá no meu pai” (l.14) e “deitei na cama” (l.21). Toda essa atividade reflexiva e caseira é localizada no tempo presente, com “Hoje em dia” (l.11), “Num dia desses” (l.20), “agora” (l.34 e l.39) e antes de ontem” (l.37).

Os verbos escolhidos para o tempo de “agora”, como o deitar (l.21) e o trocar idéia (l.11 e l.17), indicam um sujeito racional, comunicativo e caseiro. Januário emprega substantivos que corroboram essa visão do presente “de boa”, como “casa” (usado quatro vezes, nas linhas 14 e 15), “pai” (l.14), “namorada” (l.15), “aniversário” (l.16), churrasco” (l.16), “de boa” (usado três vezes, nas linhas 11 e 17), “mãe” (l.20), “sozinho” (l.21) e mudança (l.35). Por meio da afirmação de si em oposição à vida de “curtição”, Januário tenta se desvencilhar do seu passado infracional aos olhos da pesquisadora.

Januário narra o seu passado de “curtição” com verbos no pretérito e na primeira pessoa do plural, para minimizar sua agência nessas ações. Esta “curtição” é localizada temporalmente por meio do uso repetido do advérbio “antes” (l.18). Nesse passado narrado, Januário ostentava um significativo poder aquisitivo, que o capacitava a alugar casa (l.26), comprar diversos eletrodomésticos (l.27) e consumir uma grande quantidade de drogas (l. 28 e 29).

A qualificação da “curtição” como exagerada é marcada com advérbios e locuções adverbiais de intensidade, como em “mulher demais” (l.24), “tomar todas!” (l.25), ”tinha tudo” (l.27), “pintou o bicho todinho” (l.33) e “altas mulherada” (l.30). Assim, todos os dias (l.28), “todo mundo ia” (l.27) a essa casa consumir uma quantidade enorme de drogas (l.29). Essa intensidade das vivências da adolescência também é evidenciada pelo uso de diversas exclamações, como em: “Ixi, vai ser mulher demais!” (l.24), “Vamos tomar todas!” (l.25), “Demorou!” (l.26), “casa de trezentos contos!” (l.26), “era todo dia!” (l.28), cinqüenta, cem conto de pó!” (l.29), “cheirando e bebendo e curtindo!” (l.30), “altas mulherada também!” (l.30) e em “Foi massa!” (l.38).

Os termos associados à vida de “curtição” são: “boate” (l.4), “rua” (l.4), “fumar” (l.5), “amigos” (l.4), “máquinas” (l.6), “doidice” (l.6), “brincadeira” (l.18), “cerveja” (l.28), “cachaça” (l.28) e “pó” (l.29). O substantivo “frevo” é repetidamente empregado para caracterizar essa vida de “curtição” nas linhas 4, 6 e 12. O mesmo ocorre com o verbo curtir e suas variações nas linhas 4, 5, 25, 30 e 38; com o verbo cheirar, nas linhas 29 e 30; e com o substantivo mulher e suas variações, nas linhas 24, 29 e 30.

As aproximações de entrevistado e entrevistadora se apóiam em similaridades e diferenças entre os dois. Tatiana é posicionada por Januário ao longo da narração da pequena história como adulta, jovem e “de boa”. Ele se apresenta a ela enfatizando essas mesmas características, como podemos verificar nas discussões anteriores sobre a oposição “adolescência de curtição” e “presente de boa”.

A horizontalidade da relação entre os dois é construída na pequena história com o freqüente uso do “né?” (l.2, 18, 19, 20 e 36) e do uso do enunciado de interjeição “Ó! Procê ver!”, na linha 25. O “né?” é especialmente usado nos enunciados saudosistas de Januário e como uma forma de confirmar os aforismos dos adultos sobre a adolescência sobre o amadurecimento humano e sobre as características típicas de cada fase do desenvolvimento humano, como em: “Cada um se amadurece, né?” (l.19), “Parece um tempo que não volta mais, né?” (l.35) e “Tudo tem a sua fase, né? Seu tempo” (l.36). Esses

dois recursos são uma tentativa de Januário para se apresentar para Tatiana como alguém semelhante à forma como ele representa sua ouvinte, ou seja, como um adulto “de boa”.

Januário posiciona Tatiana como psicóloga, a quem se atribui o papel de escuta de seus sentimentos (l.17), suas experiências de recuperação (l.38) e suas autocríticas (l.11, 25 e 35). Ele procura confirmar com a psicóloga que o ser humano amadurece com o passar dos anos (l.19) e que a “curtição” é típica da fase de desenvolvimento da adolescência. (l.36).

O vocativo masculino “Rapaz”, da linha 28, dissimula as diferenças de gênero, contribuindo para a construção de uma maior proximidade entre os participantes na situação de entrevista, uma vez que as representações sobre o feminino na cultura da CSL são dicotômicas entre a mulher santa e a dona do frevo. Essa dissimulação situacional do gênero da pesquisadora favorece as narrativas sobre as relações dos adolescentes com as mulheres, uma vez que estas descrições não são consideradas agressivas para a identidade de uma pesquisadora mulher-santa ou para uma pesquisadora adjetivada como dona do frevo. A inserção etnográfica nessa CSL contribuiu para essa atribuição situacional do gênero da pesquisadora como relativamente masculina, como evidenciado na mudança dos vocativos da pesquisadora, já discutidos no início do Capítulo 5.

Januário oferece um breve prefácio à história a ser narrada, na linha 20, “Tipo, eu morei com quatro. Eu e mais três amigos.”, anunciando que irá contar algo interessante à Tatiana. Esse prefácio indica um desejo de compartilhar com Tatiana a experiência de ter morado com seus amigos e criar expectativa na audiência. A pesquisadora indica na linha 23 que deseja ouvir a história anunciada, com a instrução: “É?”.

Para tornar a sua história interessante e canalizar a interpretação da sua audiência, Januário utiliza diversos recursos retóricos, como risadas, exclamações, gesticulações, exemplos de vozes e interjeições, alguns dos quais já foram discutidos ao longo dessa análise, como as exclamações e os exemplos das vozes dos personagens.

Januário realiza pausas freqüentes, indicadas pelo símbolo “...”, para a elaboração de seus sentimentos (l. 17) e para a escolha de palavras adequadas à imagem que ele deseja apresentar à Tatiana. Essas pausas são mais freqüentes quando ele descreve a sua época de curtição (l.5 a 7; l.27 a 30) e para elaborar suas comparações entre o presente e o passado (l.11 a 15; l.34 a 38). Ele ri nas diversas ocasiões em que se refere ao passado, nas linhas 7, 25, 26, 28 e 34. Suas risadas e a gesticulação cômica, que imita alguém entorpecido sob o efeito de drogas (l. 32), reforçam o caráter de diversão associado à sua adolescência, aspecto discutido anteriormente. Opostamente, quando Januário relata sua vida atual, ele

assume uma atitude séria, reflexiva e saudosista, franzindo as sobrancelhas frente a convites para sair e lamentando a perda dessa “curtição”, como na expressão “Porra”, dita balançando a cabeça como expressão de desapontamento, na linha 37.