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Agora a Jurema é um negócio que a pessoa trabalha, trabalha, trabalha tanto... E nunca chega ao fim da Jurema. Nunca chega! Todo mundo se vai, todo mundo se... uns já se foi, outros se vai, mas nunca chega ao final da raiz. Eu queria saber é isso. Nunca chega não, o final da raiz, não. Duvido! De jeito nenhum... Meu pai trabalhava de noite a dia, se fosse possível. Mas eu perguntava: “meu pai, como é o fim da Jurema?”. “Não tem quem dê fim... não tem quem chegue ao fim da Jurema”. E não tem, não... Não tem quem chegue ao fim da Jurema, não!

Este depoimento de Nicinha ilustra bem o que representa a tradição de conhecimento do culto da Jurema em Alhandra: um conhecimento infindo, seja ele do mundo espiritual, seja das práticas mágicas de cura, acessível apenas àqueles que cultuam este saber e que podem alcançar a sua ciência – o cientista –, ultrapassando qualquer espécie de sistematização racional. Ensinamentos estes que se encontram nos espíritos dos mestres juremeiros, que habitam sua cosmologia e são reverenciados também por meio das Cidades da Jurema; só é possível contatá-los através dos transes mediúnicos, ou mesmo por meio da intuição – o

trabalho de ciência.

E não só isso. Ao recolher as narrativas sobre a história de vida de Mestra Jardecilha, e a relação dos juremeiros com sua Cidade, possibilitou-me visualizar como parte deste conhecimento foi aplicado por ela. Pela influência que teve, tanto política, social e espiritual, as memórias que a permeiam trazem à tona o carisma e a estima que grande parte dos entrevistados ainda guardam por ela, compondo, assim, uma verdadeira “história das sensibilidades” E isso se reflete no respeito com que os sujeitos fazem referência a ela. Portanto, busquei integrar, na medida do possível, a tradição de conhecimento da ciência da

Jurema, com a prática espiritual desta importante mestra juremeira, para que pudéssemos ter

uma dimensão ampliada das manifestações em torno da Jurema Sagrada no município, compreendendo desde os vários aspectos dos seus princípios constitutivos, as influências que recebeu nas últimas décadas, e quais problemas enfrentados pelos juremeiros atualmente.

Mas acessar os significados em torno da Jurema Sagrada não foi tarefa fácil. Ainda mais quando se fala de um tema tão complexo, em que não se encontra um discurso necessariamente uníssono. Ao mesmo tempo, percebi que se faz fundamental em qualquer trabalho antropológico a compreensão das percepções múltiplas dos sujeitos, sem cair no erro de buscar um argumento pronto, ou mesmo de uma explicação plausível para o que está se observando, mas estar aberto, de fato, para um autêntico e verdadeiro encontro etnográfico,

ainda mais quando estamos lidando com um campo religioso tão amplo e difuso. E o que foi feito neste texto consiste em uma breve tentativa de reunir parte destes relatos.

Com isso, a ideia desta pesquisa foi de privilegiar as narrativas dos juremeiros, em detrimento de qualquer abordagem teórica mais rebuscada, relatos estes que levam estas pessoas a refletirem sobre a sua própria existência no mundo. “Dessa forma, a memória cumpre seu papel de guardar lembranças que, pelo ato de recordar dos sujeitos, traz de volta o que ficou inscrito. Assim, a razão narrativa cumpre seu papel de portadora da memória” (FERREIRA & GROSSI, 2001, p. 33). E são estas memórias que surgem para nos dar uma dimensão das verdades que emergem dos universos cognitivos dos juremeiros em âmbito local, permeados de aspectos totalizantes, e que conduzem a forma como está delineada a escrita deste trabalho.

Assim, concordo com Santos (1988) quando afirma que, ao vislumbrar um paradigma emergente para a ciência, todo conhecimento pós-moderno deve ser total e local.

Sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica (p. 66).

Por meio deste princípio, é que faço a escolha de me aproximar da categoria nativa de ciência como uma “verdade formular” (cf. GIDDENS, 1997), e em não tratá-la como um campo simbólico cheio de códigos que necessita ser decifrado pelos antropólogos. Isto, além de tirar do autor a imensa responsabilidade que teria com este trabalho, e que muitas vezes pode ser uma tarefa inglória, traz mais leveza à pesquisa e faz com os sujeitos nos guiem neste intento de expressar os seus contextos cognitivos.

Para tal, posicionei-me na condição de estar ao lado dos juremeiros não como um mero pesquisador, que está ali apenas para empreender sua pesquisa, mas como alguém que “se mistura” nos toques, seja cantando ou tocando um instrumento, assim como, também, querendo conhecer um pouco mais do que se encontra nos interstícios dos rituais e dos seus discursos. E esta relação aqui descrita não foi feita apenas por ocasião do presente trabalho. O que se leu nestas linhas foi o resultado do contato, desde 2008, com este universo de pesquisa, e com algumas destas pessoas, que abriram as portas das suas casas para que eu pudesse ouvir suas histórias, ou mesmo me hospedando amigavelmente durante os trabalhos de campo – como no caso da Mãe Judith, a quem agradeço imensamente.

Com isso, busquei também levantar questões metodológicas que considero importantes para o entendimento do campo em questão, desde a minha inserção nele, e os problemas que enfrentei, com o intuito de problematizar e melhor dimensionar as relações entre observador e observado. E tendo em vista estas fronteiras, considerei importante que elas também estejam expostas no momento da escrita.

Desta forma, conto aqui parte da história da minha vida, que interrelaciona com estes encontros, sujeitos e situações vivenciadas, que contribuíram, do seu modo, para que eu também ampliasse meu olhar em relação ao mundo. Sendo assim, estou ainda em consonância com Santos, quando ele afirma que “todo conhecimento científico é autoconhecimento” (ibidem, p. 67), e para que haja uma ruptura dos paradigmas dominantes da ciência:

É necessário que haja outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos. A incerteza do conhecimento, que a ciência moderna viu como limitação técnica destinada a sucessivas superações, transforma-se na chave do entendimento de um mundo que mais do que controlado tem que ser contemplado (p. 68).

E ao apreciar o campo aqui estudado, faço-o de forma a também estar integrado dentro dele, posicionamento este que pode até ter suas desvantagens, mas o resultado disso, acredito ser muito mais profícuo se assim não fizesse.

Por fim, a ideia com este trabalho foi de entrar, através das narrativas juremeiros acerca da história de vida de Mestra Jardecilha, como também acerca da ciência da Jurema, numa “perspectiva e num universo cognitivo daqueles que vivenciam experiências específicas, e perceber o sagrado e a religiosidade a partir de seus posicionamentos espirituais” (GRÜNEWALD, 2008, p. 32). E aqui, esta é minha humilde contribuição para os estudos sobre o culto da Jurema no litoral sul da Paraíba, tema este, que de longe, não se esgota com a realização da presente pesquisa. Mas que ela possa ajudar novos pesquisadores e fomentar outros trabalhos sobre aspectos aqui relacionados, e que carecem de maior atenção.

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