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2. EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

2.1. ARTE, ENSINO DE ARTE E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

2.1.3. Possíveis interferências na comunicação com a arte

nos exige, diante de uma amplitude de possibilidades de compreensão, a obra de arte também nos demanda critérios para a determinação das expectativas que lhe são pertinentes, estabelecendo nosso horizonte de compreensão.

A inesgotabilidade do sentido de uma obra de arte nos confronta, por fim, com a finitude de nossas próprias possibilidades de compreensão, uma vez que envolve sempre mais do que aquilo que conseguimos ou somos capazes de captar.

A arte e o encontro com a arte expõem a estrutura de uma experiência, revelando um caráter simbólico que diz respeito não ao que as coisas são em si, mas à maneira com que todas as coisas, potencialmente, vêm ao encontro de nosso compreender. Isso se dá pelo fato de a obra de arte “reunir em si e trazer à aparência o caráter simbólico que, visto em termos hermenêuticos, advém a todo ente” (GADAMER, 2010, p. 9).

2.1.3. Possíveis interferências na comunicação com a arte

É certo que a arte é o território por excelência da experiência estética. No entanto, autores como Gumbrecht (2006), acreditam que, “... em termo de conteúdos e efeitos, alguns desses moldes tradicionais da experiência estética alcançaram um alto grau de exaustão” (p. 62) e defendem que “tornou-se vital ter consciência daquelas pequenas crises da vida cotidiana, através das quais possam emergir energicamente ilhas e novos territórios ainda não mapeados”(GUMBRECHT, 2006, p. 63).

O autor destaca dois aspectos ou sintomas de seu diagnóstico de exaustão dos moldes tradicionais da experiência. Um deles, o que caracteriza por uma “obsessão contemporânea com gestos e funções auto-reflexivos”27, ao que questiona: “Existe mesmo um desejo por tanta arte e tanta literatura que se consome mostrando obsessivamente

27 Talvez, aqui, o autor esteja se reportando ao fato de que muitas das obras de arte contemporâneas

fazem referências a obras de arte anteriormente produzidas, o que pressupõe tenhamos uma relativa familiaridade com o campo artístico para melhor dialogarmos com elas. Além disso, muitas das obras apontam, questionam, pressionam a já referida ‘fronteira’ entre arte e não-arte, e de certo modo apontam seus questionamentos para seu próprio status como arte.

que é, de fato, arte e literatura?” (GUMBRECHT, 2006, p. 63). Outro sintoma dessa suposta exaustão seria o fato de que, por exemplo,

se deve saber tanta coisa para captar a forma e desfrutar a beleza da música erudita moderna, tanto mesmo que, para usar a expressão criada por Niklas Luhmann, suas exigências de inclusão se transformam em mecanismos de exclusão social (GUMBRECHT, 2006, p. 63).

Ecoando a pergunta feita por Ferreira Gullar, poderíamos nos questionar se “a razão dessa incomunicabilidade se deve à pessoa ou à obra?” Admitindo temporariamente, para efeito de pensarmos na experiência com a obra de arte, que a “culpa” seja da pessoa e não da obra, essa incomunicabilidade poderia ser fruto ou de uma insensibilidade, de um bloqueio, de uma ‘anestesia’ ou do fato de a pessoa ignorar algo que fosse necessário para possibilitar a experiência, como se não dispusesse de um elo que a conectasse à obra. É necessário, então, um conhecimento

prévio para que a experiência estética seja possível?

O aluno Joca, ao falar sobre poesia, comenta: “Eu leio poesia na Zero Hora, quando tem alguma coisa, quando tá ali do lado. Mas, às vezes, eu não entendo. Às vezes eu não entendo muito, assim, quando eu leio... Eu leio, mas não consigo”. Em seguida, sua colega Andréia, a respeito das Poesias no Ônibus, complementa: “Eu, várias vezes, dentro do ônibus, aquelas... Aquelas coisas não têm nada a ver, né?” E Joca acrescenta: “Algumas do ônibus eu não entendo...”

Por um lado, Joca ‘sente-se culpado’, enfatiza sua incapacidade de compreensão: ele acredita que há algo ali para ser compreendido, disponibilizando- se a compreendê-lo. Ainda assim, vê-se incapacitado para tal. Já Andréia, por outro lado, ‘culpa a obra’: acredita que algumas dessas poesias, algumas dessas “coisas”, “não têm nada a ver”. Para Andréia não é a ela que falta uma peça de ligação, um conhecimento, um macete, uma manha, e sim a obra, a poesia é que carece de sentido. Seja como for, seja de quem for ‘a culpa’, os alunos não as compreendem... Ou, dito de outro modo, frustra-se a experiência. Em ambos os casos fica evidente o fato de que há, muitas vezes, um esforço por parte dos alunos em busca da experiência com a poesia, a qual fica impedida devido a uma barreira que entre eles se interpõe.

Contemplar um objeto de arte e deixar-se atingir pela emoção que advém dessa contemplação requer, sim, uma disposição, uma disponibilidade específicas, mas podemos pensar que seria possível fazê-lo em diferentes níveis, pensar que o espectador seria capaz de aproximar-se dos objetos artísticos com mais desenvoltura à medida que superasse barreiras de estranhamento excessivo e passasse a interessar- se genuinamente pela obra.

Proponho, então, que o encontro com uma obra de arte, enquanto algo que nos é exterior, sempre comportará uma faceta de estranhamento, de estrangeiro, de exterior, que enquanto tal se oferece à nossa compreensão: “tudo o que conhecemos é aqui excedido” (GADAMER, 2010, p. 7). Ou seja, acredito que a dificuldade na relação com uma obra de arte, a existência de ‘barreiras impeditivas da experiência’, possa ocorrer por um dos seguintes motivos: ou por nos ser tão estranha que não nos disponibilizemos a dar-lhe ouvidos, ou por nos ser tão familiar que acreditemos deter de antemão o que ela tem a dizer.

Susanne Langer, ao discorrer sobre a repetição de uma execução de formas musicais, afirma que “o efeito jamais é exatamente o mesmo, porque o grau exato de nossa familiaridade com uma passagem afeta a experiência que se tem dela, e esse fator não pode jamais ser tornado permanente” (1980, p. 29). Fato que, se por um lado confirma que uma experiência é irreversível e irrepetível, por outro, permite pensar que seria possível transformar a experiência que se tem com relação a um determinado objeto. É como se quiséssemos fruir de um belo haikai, em japonês, e desconhecêssemos o idioma: poderíamos nos encantar com a sonoridade do haikai, mas, nos demais aspectos de sua forma e conteúdo, a experiência com ele permaneceria inacessível.

A experiência estética é eminentemente da ordem do sensível, o que não significa que prescinda da razão ou da cognição. Ela não existe desconectada do sujeito que a experimenta e de tudo aquilo que o constitui. Se a experiência estética, como toda experiência, envolve uma dimensão de desconhecido, de surpreendente, de inusitado, envolve também uma dimensão de familiaridade, de reconhecimento, de identificação, a qual permite que, a partir do que é produzido por outro, do que é alheio, seja possível despertar algo em si.

Nesse sentido, Feitosa (2004) afirma que

existe sempre um aspecto inteligível na experiência estética da arte que não deve ser negligenciado. Sem a interpretação daquele que vê ou ouve, sem a construção de sentido por aquele que percebe, não há beleza, nem obra de arte. A experiência do belo na arte envolve uma mistura entre o senso (tudo o que está relacionado ao pensamento, à racionalidade e à significação) e ao sensível (tudo o que se refere aos sentidos, aos afetos e aos sentimentos) (FEITOSA, 2004, p. 112).

Consideremos, assim, a experiência estética como uma via de mão dupla: aquilo que sabemos conduz a nossa interpretação e as condições mesmas da experiência, alterando-a. Ao mesmo tempo em que a experiência estética altera aquilo que sabemos – sobre o mundo, sobre o objeto da experiência e sobre nós mesmos.

Mas quais as implicações de pesquisar algo que não pode ser previsto, controlado, medido e cuja característica principal é sua singularidade?