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Soror Isabel do Menino Jesus afirma que eram “Meus Pais cristãos e muito tementes A Deus de ssangue linpisimo”342, referindo-se logo de seguida às suas

intensas devoções católicas: o pai era devotíssimo de Nossa Senhora e em sua honra jejuava todos os sábados; tendo sido professo da Ordem Terceira de São Francisco. Também aplicava disciplinas e usava cilício na Quaresma, jejuando desde a quinta-feira santa até ao sábado de Aleluia343. Da mãe, diz ter sido devotíssima das chagas de Cristo e de Nossa Senhora do Rosário; tendo sido também professa da Ordem Terceira344. Recorda que “ouuia misa todos os dias frequentaua os sacramentos”345.

339 Cf. António de Villas Boas e Sampayo, Nobiliarchia Portugueza. Tratado de Nobreza Hereditaria e

Politica, Lisboa, Oficina de Filipe de Sousa Vilela, 1728, pp. 181-182.

340 Cf. Idem, ibidem, pp. 181-182. 341 Cf. Idem, ibidem, pp. 181-182.

342 Cf. CMM, Soror Isabel do Menino Jesus, “Vida”, in Vida da Venerauel Madre Jzabel do Menino Jezus…

(ms.), op. cit., p. 1, § 2.

343 Cf. Idem, ibidem, pp. 1-2, § 2. 344 Cf. Idem, ibidem, p. 2, § 3. 345 Cf. Idem, ibidem, p. 2, § 3.

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Apesar disto, é possível que os pais tivessem ascendência judaica mais ou menos conhecida, estando a autora consciente de que tal não era abonatório da sua condição de mística. De facto, na sua escrita é de notar que há vários elementos do Antigo Testamento, explícitos e implícitos, que mais adiante mencionaremos. Embora faça também referências ao Novo Testamento, aquelas outras referências fizeram-nos suspeitar de que, na verdade, poderia ser descendente – talvez tetraneta ou quinta-neta – de sefarditas, cujas tradições orais, modo de vida, etc., talvez já muito decantados de geração em geração, vieram cair nos seus pais e nela própria, nascida e criada em Marvão, terra muito caldeada de judaísmo ainda antes de 1492, ano do édito de expulsão dos judeus dos reinos dos Reis Católicos, data em que a presença judaica ali aumentou consideravelmente, estimando-se que estiveram acampadas em Marvão entre 4. 000 e 5. 000 famílias sefarditas deslocadas, que depois começaram a organizar-se e a estabelecer-se na região346. Entraram pela Ponte de Marvão, o que, crê-se ainda hoje na região, terá dado origem ao topónimo de Portagem, aldeia da freguesia de São Salvador de Aramenha, no actual concelho de Marvão. Em Castelo de Vide já existia uma comuna judaica antes da expulsão, à qual se juntaram as famílias expulsas, acolhidas por D. João II, a troco de oito ducados de ouro. Mesmo depois da expulsão de Portugal, ordenada em 1496 por D. Manuel, várias continuaram na região, convertidas ao cristianismo, outras foram para Castela, onde ficaram por algum tempo, regressando às suas terras portuguesas já cristãs. Algumas, apesar da conversão forçada pelas circunstâncias, continuaram a conservar a religião mosaica, mas em segredo. Foram um dos alvos da Inquisição pelos séculos seguintes, mas muitos terão conseguido ocultar-se347. Muitos partiram para diferentes partes do mundo, designadamente para o Oriente348.

A hipótese de a autora ter ascendência sefardita relativamente próxima não nos parece descabida, pelo facto de haver então alguns processos inquisitoriais de indivíduos que usavam o apelido do seu pai, Morato. Na Inquisição de Évora havia processos de pessoas denunciadas pelo crime de judaísmo com apelido

346 Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, “Judeus e Cristãos Novos, no Distrito de Portalegre”, in A Cidade.

Revista Cultural de Portalegre, n.º 3 (Nova Série), Portalegre, 1989, p. 45.

347 Vd. Isabel Drumond Braga, “Judeus e Cristãos-novos: os que Chegam e os que Partem”, in Cadernos de

Estudos Sefarditas, n.º 5, Lisboa, 2005, pp. 9-27.

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Morato ou Morata, ou filhos de Morato ou Morata, e outras casadas com Morato ou Morata: na vizinha Portalegre349, no Crato350, em Arraiolos351, em Montemor-

o-Novo352, no Vimioso353 e em Évora354. Não encontrámos processos relativos a

Moratos de Marvão, mas há pelo menos três processos marvanenses na época da autora, o que parece comprovar a presença de descendentes de judeus na vila355.

Dos processos relativos a Moratos, veja-se, em especial, o do estudante Francisco Morato, filho do boticário Rodrigo Tristão e de sua mulher, Violante Gomes, moradores na vizinha Castelo de Vide, sentenciado em auto da fé em 1666356. Depois de lhe ser retirado o hábito penitencial, mudou-se para Marvão, onde exerceu a profissão de médico, sendo conhecido como Dr. Francisco Tristão Morato, nome que surge nos assentos paroquiais. Foi, portanto, contemporâneo da autora. Soror Isabel era de tenra idade em 1678, data em que o médico judaizante, ainda morador em Castelo de Vide, tinha já uma ligação a Marvão, ali surgindo como padrinho num baptismo357. O mesmo ocorreria com o pai da autora, que é dito “Joaõ Mouratto de Marvaõ” num assento de baptismo da Igreja de Santa Maria da Devesa, naquela vila, como padrinho de uma criança da família dos Xaras358. A sua ligação a Castelo de Vide está também patente na venda de várias propriedades a pessoas que ali moravam. O médico e o pai de Soror Isabel, que tinham o mesmo apelido, bem poderiam ser parentes. Na verdade, os Moratos da região seriam ramos da mesma parentela, embora moradores em povoações diferentes. Alguns ramos terão atingido a vizinha Beira. E, assim, há processos da Inquisição relativos a Moratos moradores em Castelo Branco, denunciados por judaísmo359.

O apelido Morato poderá mesmo ser de origem judaica, porque derivado de mar, palavra aramaica, que em hebraico se pronuncia mor – Morato. Segundo

349 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 4821; e proc. 6747. 350 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Lisboa, proc. 9338.

351 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 2990; e proc. 6812. 352 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 962 e proc. 3399. 353 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 6626.

354 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 4959.

355 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 2048; proc. 1313; e proc. 1882. 356 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 9573.

357 Cf. ADP, Livro de Baptismos da Igreja de São Tiago de Marvão (1653-1699), f. 124v.

358 Cf. ADP, Livro de Baptismos da Igreja de Santa Maria da Devesa de Castelo de Vide (1688-1695), f. 94v. 359 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 1957; proc. 9331; e proc. 6199, entre outros.

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José Maria Abecassis, na sua Genealogia Hebraica…, o vocábulo mar equivale a mestre, ou chefe, e corresponde a um título honorífico usado pelos doutores do Talmude e pelos gaonim das escolas rabínicas de Sura e de Pumbanita, do século VIII ao século XI. Foi título também concedido às sumidades rabínicas da Idade Média e, mais tarde, tornar-se-ia equivalente ao título de senhor, como o é actualmente360. Uma das linhagens judias que usavam este título como apelido era a dos Mor-Yusef, Morjosef, ou Mor-Joseph, hoje Mor-José, descendente de um sábio, ou rabi, como seria o caso, supomos, dos Moratos, que no início século XV já usavam este apelido, em Leão, Castela e Portugal. Nas primeiras décadas do século XVII, na ilha de Maiorca, havia também uns cristãos-novos que usavam o apelido Morató, possível versão catalã de Morato361. Em Portugal o apelido Morato passou a ter também a versão de Mourato, certamente por corruptela.

Os ascendentes de Soror Isabel do Menino Jesus poderão, pois, ter sido cristãos-novos de Marvão, de Castelo de Vide, de Portalegre, etc., oriundos de Leão, onde, nas primeiras décadas do século XV, teriam sido prestigiados judeus do tempo de D. João II de Castela, cujo reinado teve períodos de perseguição aos seguidores da lei mosaica, o que poderá ter motivado a vinda de Gonçalo Morato, meirinho-mor de Leão, para Portugal umas décadas antes da expulsão, decretada três reinados adiante, pelos Reis Católicos362. Este acontecimento poderá ter determinado a chegada de mais Moratos a Portugal, reunindo-se aos seus parentes portugueses. Quando a autora nasceu, passavam apenas uns cento e cinquenta anos sobre a chegada desse primeiro Morato. Os seus descendentes ainda se recordariam de ouvir contar aos seus pais e avós que a sua origem era estrangeira e, se estamos certos na nossa suposição, que os seus antepassados, tanto em Castela, como em Portugal, tinham sido depois forçados a tornar-se cristãos, já no final daquela centúria, um tempo de acontecimentos profundamente traumáticos para os sefarditas, que se viram obrigados a abandonar as suas terras, perdendo os seus bens, honras, etc. Tanto quanto sabemos, nasceu e viveu sempre como cristã, não se depreendendo da sua escrita, nem de outras fontes, que tenha praticado a

360 Cf. José Maria Abecassis, Genealogia Hebraica. Portugal e Gibraltar. Sécs. XVII a XX, Lisboa, Gabay-

Serfaty, 1991, vol. III, p. 453.

361 Cf. Josep Llobel Frasquet, “El Elemento Judío en la Repoblación del Siglo XVII en Altea y las Marinas”,

in Sarrià. Revista d’Investigació i Assaig de la Marina Baixa (nova época), , n.º 1, Vilajoiosa, 2009, p. 12.

362 Vd. José Amador de los Ríos, Historia Social, Política y Religiosa de los Judíos de España y Portugal,

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religião mosaica. Mas possivelmente saberia que o apelido Morato era o de pessoas sentenciadas pela Inquisição, conhecendo, pelo menos, a existência do caso do mencionando Francisco Tristão Morato, médico de Marvão durante a sua infância; e os casos de Portalegre, que mais adiante mencionaremos, passados já quando era religiosa nesta cidade. A sua declaração sobre o sangue limpíssimo dos seus pais assim no-lo parece indicar, parecendo-nos que sentiu necessidade de se por a salvo de suspeitas, sobretudo junto dos que a conheciam, legitimando, assim, a sua vida ascética e mística.

Segundo Fernanda Olival, o Santo Ofício nunca deu muita importância a Marvão, terra pequena e confinada à suas muralhas, no alto da Serra do Sapoio, porque já em 1579, visitando várias zonas da fronteira do Alentejo com Castela, demorou-se em Marvão apenas cinco dias, “sinal de que a população cristã-nova também não seria muita”363. Todos saberiam da vida uns dos outros, as denúncias

não foram expressivas. Em consequência, segundo a mesma autora, ali nunca houve muitos familiares do Santo Ofício. Um deles foi, como mencionámos, o sargento-mor Pedro Fernandes Sotil, compadre e vizinho dos pais de Soror Isabel. Mas, apesar de se afirmar cristão-velho e de ser nobre, talvez tivesse, na verdade, uma ascendência judaica, porque Sotil, que também se escrevia Sutil ou Subtil, poderia ser apelido sefardita364. Na época, alguns Sotis alentejanos judaizavam. Há notícias de uns bem posicionados Sotis de Elvas, por exemplo, Manuel Lopes Sotil, escrivão do judicial de Elvas, filho de André Lopes Sotil, dito cristão-velho e nobre, e de sua mulher Maria Álvares, cristã-nova, que foi acusado de perjúrio e perturbação do ministério do Santo Ofício365. Esse Manuel Lopes Sotil e sua

mulher, Maria Coelha Delgada – sendo esta acusada de judaísmo, apostasia e heresia366–, tinham um filho, André Lopes Sotil, acusado de falsidade367; e uma filha, Maria Nunes Sotil, sentenciada por judaísmo, heresia e apostasia368. Há

363 Cf. Fernanda Olival,“Marvão, uma Vila Guardiã da Fronteira (Sécs. XVI-XVIII)”, in Marvão. Estudos e

Documentos de Apoio à Candidatura a Património Mundial, coord. de Jorge de Oliveira, Lisboa, Edições

Colibri/Câmara Municipal de Marvão, 2014, p. 204.

364 Pedro Fernandes Sotil, sargento-mor de Marvão, assinava “Pedro Frd’s Sotil”364. Cf. AHM, Livro das

Vereações da Câmara de Marvão de 1668, f. 12v.

365 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 4732. 366 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 7150. 367 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 10441. 368 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 1975.

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também notícias de Isabel Subtil, denunciada no processo inquisitorial do seu primo Francisco de Faria, escrivão das sisas de Elvas, acusado dos mesmos crimes369. Sintomaticamente, no século XVI a Rua da Judiaria Velha, em Elvas,

também era conhecida como Rua de João Sutil370. Supomos que muitos cristãos- novos e seus descendentes terão passado incólumes, por várias gerações. Em Marvão, tal como noutras terras, a sua identidade oculta poderá ter persistido por muito tempo, ainda que já matizada.

Como assinala José Belmonte Díaz, toda a rica produção cultural e espiritual do serfardismo no período medieval “por lo lógico que tuviera sus sorprendentes y majestuosos brotes en el Siglo de Oro, sobre todo en el campo de la mística”371. No século XVII, em que nasceu a nossa autora – e no qual foi

educada e chegou à idade adulta –, desaguavam os desenvolvimentos daquela centúria, pelo que, se era realmente descendente de cristãos-novos, algo terá recebido dos seus ascendentes, através da tradição oral e dos costumes. Falamos do que geralmente se designa por educação na fé, ou, mais propriamente, por transmissão da fé na família, que integrava elementos anteriores à conversão, resultando num sincretismo judaico-cristão mais ou menos expressivo, consoante os lugares e as famílias372. Desse modo, talvez se explique a predilecção de Soror

Isabel por alusões a figuras ou relatos do Antigo Testamento, que caberia ter em conta numa análise mais fina dos seus textos, o que aqui não faremos, por economia de espaço. Digamos, no entanto, que as citações e alusões dos livros do Antigo Testamento abundavam nos livros de mística e na parenética da época, influenciados pela liturgia, que integrava igualmente textos do Antigo, como do Novo Testamento. Também é de notar, porém, como mencionaremos, que uma maioria desses autores tinha ascendência judaica, influenciando os restantes autores.

Se os Moratos tinham realmente o seu apelido derivado de um título honorífico usado por rabis, Mar, que se pronunciava mor, em hebraico, mais força

369 Cf. ANTT, TSO, Inquisição de Évora, proc. 10853.

370 Cf. Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-novos de Elvas no Reinado de D. João IV: Heróis ou

Anti-Heróis?, dissertação de doutoramento, Lisboa, Universidade Aberta, 2003, p. 168, nota 77.

371 Cf. José Belmonte Díaz, Judeoconversos Hispanos. La Cultura, Bilbau, Ediciones Beta III Milenio, S. L.,

2010, p. 181.

372 Cf. Daniel de Pablo Maroto, Espiritualidad Española del Siglo XVI, vol. I – Los Reyes Católicos, Madrid,

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tem a nossa suposição de que, no caso da autora, a sua formação no seio familiar terá passsado pela instrução sobre a história de Israel, as suas figuras, símbolos, etc.373. Note-se também que, nas famílias cristãs-novas, as mulheres tinham um

papel importante como transmissoras da fé, educando as crianças na Lei de Moisés, ensinando-lhes orações rituais, bem como alertando para a necessidade de manterem a fé mosaica camuflada pela fé cristã374. Se os pais de Soror Isabel eram, de facto, descendentes de cristãos-novos, talvez possamos vislumbrar na própria autora este papel, já matizado, ao ter sido instruída nas letras por ordem paterna e ao ter assumido a criação de sete sobrinhos órfãos desde pequenos, quando, em casa, havia ainda vivas sua mãe, Domingas Rodrigues, e sua irmã mais velha, Catarina Sanches. A aptidão pedagógica de Soror Isabel viria a manifestar-se no convento, onde seria mestra da Ordem, e, enfim, na sua vida ascética e mística, onde se tornou uma mestra do espírito respeitada, como diremos.

Se eram, de facto, descendentes de cristãos-novos, como supomos, os pais da autora teriam a literacia como característica herdada dos seus ascendentes. Como recorda Maria José Pimenta Ferro Tavares, na generalidade, os cristãos- novos tinham a preocupação de aprender a ler e a escrever, sobretudo os homens, o que lhes facilitava a inserção social e o desenvolvimento de actividades financeiras, como o empréstimo a juro375. Os judeus ou cristãos-novos possuíam

os seus livros de contas e cofres com dinheiro, emprestando a juro, quer nas suas terras, quer nas terras vizinhas e ainda em feiras, tanto em Portugal, como em Castela, onde se deslocavam para exercer a sua próspera actividade financeira. Esta autora refere mesmo não ter dúvidas de que “é junto dos cristãos novos, mesmo habitantes em concelhos do interior, que nós vamos encontrar os fundamentos do capitalismo comercial moderno português”376. Sintomaticamente, esta actividade era praticada pelos pais da autora, na qual a filha, sendo alfabetizada, participaria, auxiliando-os na cobrança das dívidas. O seu dote, como vimos, foi constituído, não em dinheiro, mas pelo seu direito a cobrar

373 Cf. José Maria Abecassis, Genealogia Hebraica…, op. cit., p. 453.

374 Vd. Maria José Ferro Pimenta Tavares, “Os Judeus da Beira Interior: a Comuna de Trancoso e a Entrada

da Inquisição”, in Sefarad. Revista de Estudios Hebraicos y Sefardíes, Madrid, 2008, vol. 68, tomo 2, pp. 398, 404, 406 e 408.

375 Cf. Maria José Ferro Pimenta Tavares, “Judeus e Cristãos Novos, no Distrito de Portalegre”, op. cit., p. 50. 376 Cf. Idem, ibidem, p. 48.

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directamente as dívidas e seus juros377. Certo é que o pai de Soror Isabel sabia ler

e escrever, como vários homens da sua parentela. De Manuel Morato, avô paterno da autora, conhecemos a assinatura, embora rudimentar, denunciando pouca agilidade, talvez por, à data, ser já idoso: “Ml. Mourato”378. Quanto aos seus

filhos, João Morato e Pedro Morato, pai e parente da autora, são numerosos os documentos em que surgem as suas elegantes assinaturas, “Joaõ Moratto”379 e “Pero Morato”380. Este último poderá ser o Pedro Morato que teve o cuidado de

mandar instruir o seu filho Manuel Morato, que era estudante quando morreu, a 6 de Novembro de 1701, na freguesia de São Tiago381. Também o marido de Maria Rodrigues Morata, irmã mais velha da autora, assinou elegantemente “Joam Viegas”382. O pai deste, António Gomes Viegas, também assinava elegantemente “Ant.º Gomes Viegas”383. Quanto ao marido de Catarina Sanches, a outra irmã,

assinou “Bar.meu Friz Morratto”, também com elegância384.

Acrescentamos mais uma nota acerca desta suposta ascendência judaica de Soror Isabel, aquela que, na verdade, mais interessa para o nosso estudo. A mística, entendida ou concebida como uma religiosidade com maiores margens de liberdade, mais íntima e mais secreta, sempre foi tida como uma espiritualidade perfeita se praticada por pessoas profundamente religiosas, e, entre estas, talvez possamos encontrar aqueles cristãos que herdavam dos seus pais e avós elementos de uma religião anterior, então interditada e, por isso, em muitos casos, tornada secreta. Falamos, pois, de espíritos mais predispostos para a vida ascética e mística, porque praticantes de uma religiosidade pessoal mais virada para o interior e nascida, ou influída por duas torrentes consanguíneas: a religião mosaica e a religião cristã. A mística judaica e a mística cristã serão, até certo ponto, inseparáveis e terão convergências, como recorda José Belmonte Díaz385.

377 Cf. ADP, Cartório Notarial de Marvão, 1.º Ofício, Livros de Notas, cx. 1, liv. 2, fs. 116-118. 378 Cf. ADP, Livro de Casamentos da Igreja de São Tiago de Marvão (1656-1764), f. 1v. 379 Cf. ADP, Livro de Casamentos da Igreja de São Tiago de Marvão (1656-1764), f. 128. 380 Cf. AHM, ASCMV, Acórdãos e Termos de Eleições da Mesas Administrativas, cx. 1, f. 123. 381 Cf. ADP, Livro de Óbitos da Igreja de São Tiago de Marvão (1682-1769), f. 60v.

382 Cf. ADP, Livro de Casamentos da Igreja de São Tiago de Marvão (1656-1764), f. 117v. 383 Cf. AHM, Livro das Vereações da Câmara de Marvão de 1686, f. 38.

384 Cf. Ibidem, f. 38.

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Não será por acaso que, entre os séculos XI e XVII, como atrás aludimos, houve uma “sorprendente calidad mayoritaria de conversos o descendientes de judíos o de origen converso entre los grandes escritores místicos, literarios y religiosos”386. O autor refere, entre outros, os bem conhecidos Frei Francisco de

Osuna (1492 ou 1497-c. 1540), São João de Ávila (1499-1569), Santa Teresa de Jesus (1515-1582), Frei Luís de Leão (1528-1591) e o Padre Miguel de Molinos (1628-1697). Também São João da Cruz (1542-1541) tinha ascendência judaica por parte materna387. Quanto a Santa Teresa – de quem, note-se, Soror Isabel do Menino Jesus descreve uma visão388 –, era, de facto, neta paterna de cristãos- novos bem conhecidos na cidade de Toledo; e a suas obras foram censuradas pelo Santo Ofício, designadamente o seu Libro de la Vida, que foi obrigada a queimar e que depois reescreveu, e uns Conceptos del Amor de Dios, depois de ter sido denunciada como causa de embuste e engano para os cristãos389. Entre as muitas análises da produção teresiana desde o século XIX, algumas têm tentando identificar os elementos judaicos familiares e sociais que a Santa terá usado na