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4 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E AS POSSIBILIDADES DE SEU

4.2 A POSSE DO ESTADO DE FILHO

A posse do estado de filho nada mais é do que “a exteriorização da convivência familiar e da afetividade” (LÔBO, 2003, p. 138).

Nesse contexto, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008, p. 399) conceitua a chamada posse do estado de filho da seguinte forma:

Trata-se de espécie de filiação socioafetiva. Costuma-se conceituar a posse do estado de filho como a paternidade encarada como relação psicoafetiva existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobretudo afeto, dedicação, cuidado e abrigo assistencial.

Quando uma pessoa desfruta do status de filho em relação à outra pessoa, não dependendo que esta situação seja condizente com a realidade legal, o que é suficiente para estabelecer um parentesco e constituir a posse do estado de filho (LÔBO, 2008, p. 211).

José Carlos Teixeira Giorgis (2007) conceitua e ainda descreve como ocorre a filiação baseada unicamente no afeto:

Na paternidade sociológica releva-se a posse do estado de filho, concebida como a exteriorização da condição de descendente reconhecida pela sociedade; e que a doutrina romana entendia sedimentar-se no nome, no tratamento público e na fama, todos apontando que a pessoa pertence a um núcleo familiar; e que não representa menoscabo à biologização, mas travessia para novos paradigmas derivados da instituição das entidades familiares.

Prevalece nela à visibilidade das relações, mostrando vínculo psicológico e social entre o filho e o suposto pai, um momento permanente de comportamento afetuoso recíproco, com tal densidade que torna indiscutível a filiação e a paternidade.

Costuma-se até sublinhar que a posse do estado de filho observa o princípio da aparência, oriunda do exercício das faculdades inerentes à linhagem, sustentada pela convicção de publicidade.

O fato é bastante comum, bastando referir os filhos de criação, onde, mesmo ausente algum elo biológico ou jurídico, os pais abrigam, criam, sustentam e educam criança ou adolescente, destinando-lhes carinho e amor, mesmo sem buscar a adoção.

Dessa forma, cruzam-se duas verdades, de um lado a verdade biológica, onde o filho não porta a herança genética do pai ou da mãe. Noutro norte, existe a verdade socioafetiva, fundada na intimidade da família, nas relações sociais e o mais importante, na relação existente do adulto com a criança ou adolescente (COELHO, 2009, p. 160).

Verifica-se que esse estado de filho está ligado com a relação que o filho mantém com o pai, bem como aos sentimentos que este nutre pelo filho, o que pode ser observado quando existir preocupação com seu bem estar, sua educação,

saúde, etc. São atos inerentes ao dia-a-dia que configuram a relação de filiação baseada na afetividade (LÔBO, 2008, p. 212).

Observa-se que o estado de filiação compreende um conjunto de acontecimentos que baseiam a presunção da existência de relação com os pais, ou pai e mãe, e filho, capaz de suprir o registro de nascimento, ou seja, a prova de filiação se dá pela certidão de registro de nascimento ou pela situação de fato (LÔBO, 2008, p. 211).

Guilherme Calmon Nogueira da Gama, citando Heloiza Helena Barboza, afirma que:

A filiação afetiva, fundamentalmente, só era concebida no âmbito da adoção e, em alguns casos limitados, à posse do estado de filho. Trata-se do vínculo que decorre da relação socioafetiva constatada entre filho e pais - ou entre filho e apenas um deles – tendo como fundamento o afeto, o sentimento existente entre eles: “melhor pai ou mãe nem sempre é aquele que biologicamente ocupa tal lugar, mas a pessoa que exerce tal função, substituindo o vinculo biológico pelo afetivo” (BARBOZA, 1999 apud GAMA, 2008, p. 347).

Demonstra-se que a relação paternal não é apenas o vínculo biológico que une pai e filho, mas a afetividade que os envolve, essa relação de companheirismo e amizade vai além das características naturais ligadas à paternidade.

Paulo Luiz Netto Lôbo (2003, p. 138) afirma que no direito anterior a posse do estado de filiação só era admitida para comprovar e suprir o registro civil se os pais fossem casados e a filiação fosse legítima. Ocorre que, após a CFRB/88, outras entidades familiares passaram também a servir de fundamento para a posse do estado de filiação.

Ao confirmar a importância desse tipo de filiação, Washington de Barros monteiro (2009, p. 396) exemplifica:

Por exemplo, aquela do marido ou companheiro da mãe, que não registra como seu o filho desta mulher, mas vive com ela e acompanha a formação e o desenvolvimento da criança, criando-se vínculo afetivo entre ele e o menor, fazendo, aquele homem, em várias situações, às vezes do pai, até porque o pai biológico é omisso nos cuidados de que a criança precisa. Se esse homem separa-se daquela mulher, teria ele o direito de continuar ver a criança, mesmo que a mãe não queira, já que se desentendeu com o ex-marido ou ex-companheiro?

É na expressão “outra origem” que se encontra o apoio legal para diversas situações em que não existe relação biológica ou consangüínea entre o filho e o pai, mas em face do tratamento dado por um homem a uma criança e

da afetividade entre eles existentes, podem ser reconhecidos direitos e deveres oriundos da verdadeira relação de paternidade.

Aliás, com a paternidade ou maternidade socioafetiva, ou seja, aquela pessoa que cria uma criança como se filha fosse, para o direito passa a ser seu pai ou mãe, cessando de vez o fundamento biológico (COELHO, 2009, p. 12).

Inclusive, em alguns casos, a criança é registrada diretamente pelo marido ou companheiro da mãe, sem que ocorra o devido processo legal, uma vez que, se não é o pai biológico e o queira como filho, deveria adotar tal criança, o que não ocorre, sendo então realizada a chamada adoção à brasileira. Assim, a criança é registrada ao nascer em nome dos pais afetivos, como se estes fossem biológicos. Essa prática é muito comum no Brasil, razão pela qual recebeu o nome de adoção à brasileira pela jurisprudência. E, embora agir dessa maneira constitua crime contra o estado de filiação (CP 242), não têm ocorrido condenações pela motivação afetiva que envolve essa conduta (DIAS, 2007, p. 436).

Fábio Ulhoa Coelho (2009, p. 160), por seu turno, declara que:

Se o marido ou companheiro da mãe sabe não ser o genitor do filho dela, mas o trata como se fosse o pai, do vínculo de afeto surge o da filiação. Igualmente, se a esposa acolhe o filho que o cônjuge teve em relacionamento extraconjugal e o cria e educa como dela, vira mãe do rebento. Muitas vezes, nessas situações e noutras típicas de filiação sócio- afetiva, não há discrepância entre o contido no registro de nascimento do filho e a situação de fato. O marido ou o companheiro da mãe declara-se o pai no registro de nascimento.

E condizendo este registro com a realidade fática, não cabe desconstituição posterior. Nesse contexto, afirma Maria Berenice Dias (2007, p. 436):

Em muitos casos, rompido o vínculo afetivo dos genitores e findo o convívio com o filho, em face da obrigatoriedade de arcar com os alimentos, o pai busca a desconstituição do registro por meio de ação anulatória ou negatória de paternidade. A jurisprudência, reconhecendo a voluntariedade do ato levado a efeito de modo espontâneo, por meio da expressão “adoção a brasileira”, passou a não admitir a anulação do registro de nascimento, considerando-o irreversível.

Então, se não houve erro, dolo ou coação, não há que se falar em anulação do registro de nascimento, pois se realizou um reconhecimento espontâneo de filho, embora soubesse não ser seu, assumiu o pai afetivo tal filiação.

Para a caracterização da posse do estado de filho são apontados três elementos identificadores da paternidade/maternidade daí decorrente: (a) nomen – quando a criança ou o adolescente usa o sobrenome dos pais; (b) fama – ser reconhecida pela comunidade onde mora e pela família como filha do pai afetivo; (c) tractus – ser tratada e cuidada como filha, assim como trata daqueles que cuidam como se fossem seus pais (GAMA, 2008, p. 400).

A aparência do estado de filiação demonstra-se pela convivência familiar, e também pelo efetivo cumprimento das obrigações a ele inerentes, como guarda educação, sustento, relacionamento afetivo, o que se identifica pelos elementos já citados acima. O tractus, que é o comportamento dos parentes aparentes, ou seja, é tratado como se filho fosse, o nomen, quando porta o nome da família dos pais, e a fama, quando é reconhecido por fazer parte de tal família. Importante lembrar, contudo, que essas características não necessitam estar presentes conjuntamente, vez que, não há exigência legal nesse sentido e o estado de filiação deve ser favorecido em caso de dúvida (LÔBO, 2008, p. 212).

A esse respeito complementa Paulo Lôbo (2008, p. 212):

Qualquer meio de prova pode ser utilizado, desde que admitido em direito, para o convencimento do juiz, não tendo a lei estabelecido restrições ou primazias. São validas as provas documentais, testemunhais, periciais entre outras. Todavia essas provas são complementares de dois requisitos alternativos que a lei prevê: a existência de começo de prova por escrito, proveniente dos pais, ou presunções veementes da filiação resultante de fatos já certos. Entendemos que, para alcançar a finalidade da lei, em conformidade com a Constituição, que estabelece a prioridade absoluta da convivência familiar afetiva (art. 227) para a criança e o adolescente, basta um dos requisitos na falta de outro. Considera-se no começo de prova por escrito, proveniente dos pais qualquer documentos que revelem a filiação, como cartas, autorizações para atos em benefícios dos filhos, declaração de filiação para fins de imposto de renda ou previdência social, anotações dando conta do nascimento do filho.

Assim, na prática serão analisados os três elementos identificadores da posse do estado de filho, o nomen, a fama e o tractus, não sendo necessário a presença de todos juntos. Contudo pode-se classificar o tractus como o requisito mais importante, eis que é considerado o elemento formador da filiação socioafetiva. A proteção da posse do estado de filho envolve os casos conhecidos como “filhos de criação”, onde apesar de não haver vínculo biológico, acaba ocorrendo à paternidade socioafetiva. A posse do estado de filho consolida somente os vínculos socioafetivos, o que impede dessa forma a investigação de paternidade

fundada em prova genética, visto que, tal filiação não se funda no dado biológico (GAMA, 2008, p. 400).

Em suma, Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008, p. 411) faz um apanhado geral a respeito da posse do estado de filho:

É espécie de filiação socioafetiva (ex: “filho de criação”), sendo a paternidade encarada como relação psicoafetiva existente na convivência duradoura e presente no ambiente social, capaz de assegurar ao filho não só um nome de família, mas sobretudo afeto, dedicação, cuidado e abrigo assistencial. Não houve expressa disposição normativa que cuide da posse do estado de filho, mas a noção da parentalidade e de filiação socioafetiva se fundamenta em princípios constitucionais, notadamente o da afetividade, a permitir o reconhecimento da posse do estado de filho implicitamente (arts. 1.593,1605 e 1606, CC). Como situação de fato, fundada na teoria da aparência, faz-se necessária formalização da relação jurídica através do registro civil, conferindo-se certeza quanto às relações de parentesco. Há três elementos da posse do estado de filho: (a) nomen – a criança ou o adolescente usa o sobrenome dos pais; (b) fama – a reputação como filho em relação a comunidade onde se encontra inserida; (c) tractus – tratamento ou comportamento como parentes, eis que a criança é tratada e cuidada ostensivamente como filha, bem como trata daqueles que cuidam dela como seus pais. A “adoção à brasileira”, associada à convivência familiar duradoura e baseada na socioafetividade, se transforma na posse do estado de filho e, assim, será irrelevante a falsidade da declaração original quanto à paternidade, à maternidade e à filiação. A ação do estado de filiação não se sujeita a prazo decadencial ou extintivo, podendo ser ajuizada a qualquer tempo e não se confundindo com a investigatória de paternidade/maternidade.

Na análise no atual Código Civil, em seu art. 1593, percebe-se que a expressão “outra origem” foi utilizada de uma maneira extremamente nova, visto que abarca outros gêneros de parentesco, além do consangüíneo e do civil ou por adoção. Essa regra compreende a filiação socioafetiva, onde o vínculo está baseado no afeto, e não no laço sangüíneo e ou pela adoção (MONTEIRO, 2009, p. 390).

A seguir será analisado como os tribunais do sul do país vêm entendendo e reconhecendo essa filiação baseada unicamente nos laços de afeto.

4.3 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E A INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS DO SUL