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Todavia, nem sempre a noção de agência na possessão foi encarada desta maneira. Na verdade, o fenômeno da possessão foi visto de maneira distinta entre os estudiosos do tema no decorrer dos anos. A sua compreensão sofreu, durante décadas, interpretações diversas, que partiam daquelas que concebiam o fenômeno

como estado de sonambulismo com desdobramentos de personalidade, encarado como psicopatologia típica de indivíduos “insuficientemente desenvolvidos do ponto de vista intelectual” (RODRIGUES, 2005, p. 75-76 e 97); passando por outras que o viam como “estado do pensamento mágico e pré-lógico” (RAMOS apud HAYES, 2005, p.83) e, depois, como representação de mitos (BASTIDE, 2001, p.191). Esta última concepção já concebia o transe de possessão como realidade vivida e inconsciente.

Entretanto, atualmente, os estudos sobre possessão ganharam uma nova conotação, principalmente sob influência de trabalhos internacionais como os de Lambeck (1981), Boddy (1988), Stoller (1997) e Masquelier (2001). Eles passaram a se debruçar sobre temáticas que envolviam uma nova forma de conceber as entidades. Estes estudos tinham como foco as possibilidades abertas aos indivíduos, conferidas pela possessão, de redirecionar relacionamentos, se posicionar frente à ordem dominante e construir identidades articulando formas de agência (RABELO, 2008, p.87). Assim, os trabalhos realizados no Brasil, alguns sob influência dessas concepções, passaram a considerar como real os efeitos de uma relação concebida como tal pelos indivíduos envolvidos. Afinal, estes mantinham contato constante com as entidades, as concebiam como realidade em suas vidas, e, tudo o que dessa relação derivasse, para eles fazia parte da concretude da existência. Nada mais sensato, por parte de sociólogos e antropólogos da religião, do que conceber as conseqüências dessa relação como repercutindo em relações sociais variadas.

Os estudos no Brasil, que se debruçaram sobre o fenômeno segundo esta perspectiva, estabeleceram como foco central a problematização do conceito de agência e os possíveis ganhos que as mulheres tinham a partir da relação com este outro agente em suas vidas. A problematização do conceito de agência é crucial para entendermos o fenômeno e para desenvolvermos este trabalho.

Uma das práticas recorrentes das religiões de possessão consiste na tomada do corpo de um médium por uma entidade espiritual ou espírito. Nesta situação, no Candomblé, na Umbanda e nas sessões de mesa branca, as pessoas que incorporam afirmam perder totalmente a consciência para dar lugar a um outro, que por sua vez possui vontades, “personalidade” e condição distinta da do seu médium28. Durante a

possessão, a entidade age e mantém relações que são concebidas pelos seus pares como partindo de um ser distinto da médium. Assim, alguns estudiosos problematizaram as duas noções de agência que podem ser percebidas nesta situação: a da entidade enquanto outro distinto e a da médium que perde a sua consciência para dar lugar a este outro. Dessa maneira, podemos entender que esta relação com entidades nos permite conceder agência a seres sobrenaturais, pois assim o fazem os próprios sujeitos que com eles interagem (BIRMAN 2005, HAYES 2005, RABELO 2008, CAPONE 2009). Isto pode ser percebido nos casos citados pelos autores acima, nos quais as entidades das mulheres médiuns possuem vontades distintas dos desejos das mesmas, são vingativas e lançam desventuras sobre sua vida, possuem ciúmes para com suas relações conjugais, além de conseguirem estabelecer uma rede de relações distintas das que a médium possui.

Além de pensar a agência segundo este enfoque, é possível também concebê-la segundo as maneiras pelas quais as mulheres adquirem novas possibilidades de ação via relação com a entidade e como, também, sua agência pode ser colocada em questão quando tomadas por este outro. Neste segundo caso, isto ocorre porque para dar lugar à agência das entidades, a mulher precisa se colocar em uma posição de total passividade via perda da consciência. Neste sentido, Rabelo afirma que não necessariamente precisaríamos conceber esta passividade como perda de agência (2008, p.96). Apoiando-se no argumento da Mahmood (2006), ela concebe agência como capacidade para agir segundo habilidades adquiridas em relações que envolvem, também, passividade.

Uma terceira via para pensarmos a noção de agência, e uma das que mais nos interessa neste trabalho, são as possibilidades de agência conferida às mulheres via relação com a entidade. Segundo os estudos sobre possessão, a relação com a entidade possibilita que a mulher adquira novas possibilidades para ação dentro do seio das suas relações próximas. Isto é possível porque a entidade tanto serve como mediadora da mulher nas relações com o seu marido, ressignificando relações de gênero na esfera conjugal (LAMBECK 1981, HAYES 2005, BIRMAN 2005, CAPONE 2009) como a própria entidade, através de suas ações, possibilita que a mulher crie novas maneiras de lidar com o mundo mais amplo.

Como visto, os estudos sobre possessão conferem grande ênfase à agência da mulher possibilitada por meio da relação com entidades. No entanto, neste trabalho pretendi conferir ênfase maior à agência da entidade e a como esta agência abre novas possibilidades de ação Assim, como vimos, são diversas as situações em que pessoas interagem com Sultão vendo-o como um ser distinto da médium, tanto em “personalidade” como em relação a atitudes. Isto pode ficar claro no modo como Sultão mantém uma relação com sua médium, passando-lhe recados e broncas na hora das reuniões, e na maneira como as pessoas interagem com ele fazendo-lhe pedidos e solicitando soluções para dilemas que acreditam que só ele pode resolver. Há também um outro ponto importante para notarmos esta distinção entre médium e entidade. Esta formou ao redor de si uma rede de amizade e ajuda que não necessariamente passa por Zezé. Há pessoas que Sultão conhece bem e que a médium conhece apenas de ouvir falar. As pessoas muitas vezes procuram a casa de Zezé para falar apenas com Sultão. Este fato pode ser percebido quando Genil se aborrece quando as pessoas vão para as consultas e reuniões e nem sequer esperam Sultão ir embora para falar com Zezé. Na verdade o fato é que algumas nutrem uma relação de amizade mais forte com o caboclo do que com a médium.

Segundo estes exemplos sobre a agência da entidade, em contraposição a da de Zezé, podemos perceber como novas possibilidades de ação são geradas e estas não se restringem só a médium. Por meio do contato com a entidade, um grupo maior de pessoas adquire estas possibilidades. As diversas formas deste contato fazem com que mulheres reorientem suas vidas, como visto, e promovam rearranjos de relações diferenciadas, por meio de novas posturas frente ao mundo. Elas se tornaram mais cooperativas umas com as outras, criando novas maneiras de lidar com situações de privação29.

Por meio do modo como a entidade se relaciona com as mulheres em questão, via consultas e rituais, esta se coloca em um lugar de destaque, assumindo uma posição de pai. Não um pai-de-santo, líder de um grupo porque iniciou seu filho nos preceitos da religião e por já pertencer ao grupo há mais tempo e por isso deter os segredos da

tradição. Sultão é considerado pai porque realmente exerce o papel de um, dando conselhos para os problemas mais corriqueiros, “broncas”, dizendo como se deve ou não agir, passando a mão em suas cabeças e consolando-as de suas inquietações. E, acima de tudo, realiza tudo isso sendo dotado de um poder que nenhum ser vivente possui, o do sobrenatural. Por meio de suas atitudes, Sultão conquistou mulheres que se consideram suas filhas, e as uniu por meio de ideais católicos sincreticamente elaborados. Esta espécie de família religiosa se atualiza por meio de práticas recorrentes a grupos de parentesco, como a cooperação e as brigas.