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4 DESENVOLVIMENTO NA TEORIA DO SISTEMA-MUNDO

4.2 POSSIBILIDADES DE DESENVOLVIMENTO NAS PERIFERIAS E

SEMIPERIFERIAS DO SISTEMA-MUNDO

Evidencia-se, a partir das análises propostas, que a própria ideia de desenvolvimento se apresenta como campo de batalha ideológico, desde sua origem na sequência da Segunda Guerra Mundial, elaborada pelo centro como instrumento de atração das periferias e semiperiferias em processo de independência; passando pelas propostas do Movimento dos Não-Alinhados, que sugeria a possibilidade de se equiparar o centro; até as interpretações contemporâneas, que abordam o conceito em relação aos mais diversos âmbitos disciplinares e sociais.

Através de sua história, e nas diferentes propostas, com frequência perderam-se de vista os elementos estruturais que produzem os diversos níveis de desenvolvimento verificados no mundo, dado serem as circunstâncias e fóruns em que o debate é posto sistemicamente condicionados.

Nesse sentido, Amin (1997) alerta que mesmo países que adotam experiências socialistas, ao incorporar perspectivas de desenvolvimento originadas de elementos da

economia-mundo capitalista e tentar combiná-las com o objetivo de construção do socialismo, correm o risco de retornar a padrões típicos da estrutura que visam combater. A tentativa de “alcançar” o centro capitalista pode levar à adoção de práticas que favorecem a reintegração ao sistema dominante, em particular quando considerada a tendência e força expansionista da economia-mundo capitalista:

[...] os países chamados socialistas se propunham, com muita confusão, ao mesmo tempo “alcançar” e fazer outra coisa (“construir o socialismo”), e se haviam desconectado – no sentido que dei a este conceito, ou seja, haviam submetido suas relações exteriores à lógica de seu desenvolvimento interno. Os aspectos positivos de suas realizações (um estatismo paternalista sem dúvida, mas com um todo social, que garantia a segurança do emprego e um mínimo de serviços sociais, em contraste com o capitalismo selvagem das periferias capitalistas) provêm de sua origem (uma revolução popular anticapitalista) e da sua desconexão; enquanto seus becos sem saída traduzem por vez a ilusão do “alcance”, que implica a ampla adoção dos critérios do capitalismo. (AMIN, 1997, p. 72, tradução nossa)

Não obstante, determinadas experiências socialistas, que persistem em seu desafio à economia-mundo capitalista, demonstram a possibilidade de efetivamente desvincular-se dos elementos de dominação deste sistema. Isso é destacado quando sua continuidade se dá além da existência do bloco socialista liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, cuja política externa facilitava a inserção destes Estados.

Neste sentido, cabe explorar como se davam as relações entre os países do bloco socialista. Diferentemente da configuração da economia-mundo capitalista, pautada pela apropriação de mais-valia global através da divisão internacional do trabalho, o modelo socialista baseava-se na solidariedade revolucionária. Assim, mesmo quando incorrendo prejuízos, estabeleciam-se intercâmbios que priorizavam o bem-estar das populações e o sucesso dos regimes parceiros. Por isso a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, na década de 1990, gerou impactos em Estados revolucionários com menos recursos à disposição, tendo em vista a importante proporção de ajuda anteriormente recebida.

Assim, salientam-se os casos cubano, norte-coreano e chinês. Cada um, a seu modo e a partir de condições diversas, buscam construir um modelo alternativo, pautado por ideais socialistas. Tal proposta ganha ainda mais relevo quando se considera que tais experiências se iniciaram em periferias da economia-mundo capitalista, acrescentando ao desafio sistêmico representado por suas revoluções um verniz terceiro-mundista.

Por conseguinte, verifica-se em todos os casos a busca pela internalização dos elementos que constituem o monopólio do centro sobre o sistema capitalista, as finanças e as tecnologias. A partir do momento em que tais instrumentos deixam de atuar em favor da transferência global

de mais-valia, a reação da economia-mundo capitalista se torna inevitável, sendo demonstrada pela história a violência dos processos necessários à instauração das relações características ao sistema. Os mais variados métodos são utilizados na tentativa de restabelecer o padrão de dominação contestado, mas destacam-se os embargos, os golpes de Estado e as invasões. Cumpre mencionar, inclusive, que tais medidas não são adotadas apenas contra países que levantam um desafio direto ao sistema, através da adoção de ideologias contestatórias, mas a quaisquer em que políticas sejam adotadas em oposição aos processos de apropriação global de mais-valia.

Conforme Visentini et al. (2013), a experiência cubana, iniciada em 1959 com a vitória das forças lideradas por Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara, Camilo Cienfuegos e outros, enfrenta desde sua gênese forte reação por parte da economia-mundo capitalista, não menos devido à sua proximidade geográfica em relação ao hegemon estado-unidense. Assim, o país sofre um embargo econômico que lhe obstaculiza o crescimento econômico, além de constantes tentativas de assassinato contra suas lideranças, golpes de Estado e invasões.

Apesar disso, e das limitações impostas pelos recursos naturais disponíveis em seu território, o projeto cubano alcançou altos níveis de educação e saúde, com desenvolvimento mesmo de vacinas contra cânceres, em um feito ainda não superado pelas potências ocidentais. Além disso, outros indicadores demonstram seu sucesso em elevar as condições de vida da população, como por exemplo os de segurança, habitação, alimentação e acesso às mais diversas formas de manifestações culturais. Também, o Cuba demonstra clareza de seus objetivos no âmbito internacional:

Na lógica revolucionária cubana as ações desencadeadas tinham como objetivo alcançar e defender uma independência real e, fundamentalmente, uma mudança social. Para tanto, a projeção externa também deveria seguir esse processo de transformação. Isso significava, em primeiro lugar, desafiar e superar a dependência e subserviência em relação aos EUA, que já se prolongava há mais de cinquenta anos. Os cubanos tinham clareza de que com isso teriam que enfrentar o isolamento e a hostilidade promovida pelos norte-americanos. No entanto, esta situação poderia ser contrabalançada a partir das relações com a URSS. A Revolução significou não apenas uma mudança em Cuba, mas também uma mudança na forma como o país passou a perceber seu lugar no mundo. O Estado cubano, de importância tradicionalmente menor nos assuntos globais, agora poderia (e deveria) se projetar e interferir na dinâmica internacional, com vistas ao fortalecimento de sua própria Revolução. Nesse sentido, a política exterior para Cuba sempre esteve muito além do simples estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas. A conduta externa refletiu nos debates e formulação das políticas domésticas. Por outro lado, também refletiu na relação de Cuba com as duas superpotências, realidade que os cubanos tiveram que lidar até 1991. Por fim, serviu como base para uma nova identidade, que acompanhou a construção do Estado socialista e sua redefinição como um país do Terceiro Mundo. (VISENTINI et al., 2013, p. 259)

No mesmo sentido, Visentini et al. (2013) apontam que a Coreia do Norte nasce a partir da intervenção da hegemonia estado-unidense em seu processo revolucionário. A guerra que dividiu o país não só redundou em bloqueios econômicos, mas também em um longo período de não-reconhecimento do seu Estado, que só passa a integrar a Organização das Nações Unidas em 1991.

Mesmo assim, o país conquistou o domínio de tecnologias de alta complexidade, como a nuclear (tanto para uso civil quanto estratégico), e a superação dos desafios naturais que, aliados ao embargo econômico, impunham à região carestia de bens básicos. Além disso, a garantia de emprego e o provimento de serviços sociais à população garante nível e dignidade de vida. Eleva-se, dessa forma, a importância global do país, já que:

[...] na passagem para o século XXI, a Coreia passa a ocupar um espaço privilegiado no campo das decisões envolvendo a grande diplomacia. As quatro potências com as quais os dois Estados Coreanos têm que interagir mais diretamente passam por mudanças que afetam os destinos da península, conferindo um caráter estratégico, desta vez global, à região. A China continua se fortalecendo, e agora está associada à Rússia, tentando evitar uma ascendência desmedida dos EUA sobre a região. Este país, por sua vez, tenta reafirmar sua supremacia sobre seus velhos aliados, Tóquio e Seul. Mas ambos são condicionados por necessidades econômicas que os direcionam para o polo de desenvolvimento da Ásia oriental, pois somente com certo grau de autonomia seu desenvolvimento pode prosseguir. (VISENTINI et al., 2013, p. 146)

Por sua vez, a República Popular da China não apenas logrou resistir aos avanços da economia-mundo capitalista, como também estabelecer ordenamentos alternativos em maior escala:

O impacto da inserção mundial da China é intenso, não apenas pela acelerada taxa de crescimento, mas pelo peso econômico e populacional do país, bem como por sua dimensão continental. O problema, entretanto, não diz respeito apenas ao peso da China, mas principalmente às características do projeto chinês. Trata-se de uma potência nuclear, com imensa capacidade militar, além do fato de tratar-se de um modelo de desenvolvimento de pretensões autônomas. A República Popular da China, graças à sua capacidade militar de dissuasão, armamento nuclear, indústria armamentista própria, tecnologia aeroespacial e de mísseis, bem como por ser Membro Permanente do Conselho de Segurança da ONU (com poder de veto) é o único país em desenvolvimento que se encontra no núcleo do poder mundial. (VISENTINI et al., 2013, p. 116)

Assim, notam Visentini et al. (2013) que a experiência socialista na China iniciou-se em um contexto de resistência ao imperialismo japonês e enfrentamento ao projeto nacionalista do Kuomintang. A proposta do Partido Comunista Chinês ganhou projeção com seus sucessos ao longo da Segunda Guerra Mundial e, findo o conflito e reiniciado o confronto com o

Kuomintang, a partir da Grande Marcha. Nesta, as tropas socialistas em retirada continuaram a difundir sua ideologia, e sua persistência eventualmente tornou-se parte do imaginário popular. Identifica-se, através de Visentini et al. (2013), que com a vitória dos socialistas na guerra civil chinesa e consolidação da República Popular da China, a economia-mundo capitalista relega o país ao mesmo isolamento de outros Estados revolucionários e, assim, até a década de 1970, são impostas ao país sanções que incluem bloqueio econômico e, mesmo com o restabelecimento das relações comerciais, diversas tentativas de contenção são realizadas, por exemplo através de estímulos a golpes de Estado. A partir daí são estabelecidas reformas com o objetivo de dinamizar a economia, haja vista que a construção do socialismo demanda condições materiais suficientes para o provimento de boas condições de vida a todos e para a defesa do projeto.

Dessa forma, ao controlar seu mercado financeiro e investimento estrangeiro, demandando o compartilhamento de tecnologias quando do estabelecimento de empreendimentos em seu território, a China pôde desenvolver e dominar tecnologias de ponta (como a internet 5G) e contrapor em seu entorno estratégico a hegemonia estado-unidense. Ao mesmo tempo, logrou perseguir os objetivos anunciados enquanto projeto socialista, combatendo a pobreza, melhorando as condições de vida da população, diminuindo a desigualdade entre campo e cidade e adotando práticas benéficas ao meio-ambiente.

Os exemplos citados levam a refletir sobre as possibilidades disponíveis às periferias e semiperiferias de transformação econômica, política e social. Demonstram ser necessário pensar, em uma perspectiva do Sul global, alternativas que permitam a superação dos problemas impostos pela ordem sistêmica mundial, cuja estrutura impõe limites ao desenvolvimento autônomo dos países fora do centro pela necessidade de apropriação de mais-valia que sustenta o domínio destes sobre a economia-mundo capitalista através da divisão internacional do trabalho. Dessa forma, argumenta-se que o caminho para o desenvolvimento passa pelo desafio aos monopólios financeiros e tecnológicos que orientam os fluxos globais de capital, almejando maior igualdade entre os países e melhores condições de vida a toda humanidade.

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