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1. O cinema e a história

1.4 Possibilidades de entrecruzamentos das escritas

De acordo com Hayden White (2001: 115); “a distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concebida como a representação do imaginável e a história como a representação do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o com o imaginário”. Nosso intuito não é comparar as linguagens histórica e cinematográfica, mas equipará-las no sentido etimológico, de colocá- las em igualdade.

Agora, essa discussão sobre real e imaginário comentada por White não atinge somente os textos escritos. Essa questão também é colocada na área cinematográfica. Existiria um cinema da realidade — o documentário —, e o cinema do imaginário — o ficcional. Mas ambos para serem expressos precisam da narrativa. A ficção também exige uma verdade a fim de conquistar as pessoas, não podendo soar falsa.

A “verdade” fascina mais quando é armada como uma ficção. Como diz Edgar Morin (1997: 18) “o real só emerge à tona da realidade quando é tecido de imaginário, que o solidifica, lhe dá consistência e espessura, dito de outro modo, o reifica.” Pois o imaginário

também faz parte do mundo real. Imaginário e real, tidos como oponentes e contraditórios fazem parte do mesmo mundo.

Selecionar, ordenar, juntar. Procedimentos comuns a qualquer escrita. Se na história, o processo está ligado a fontes; no cinema, está a imagens. Por si só pouco representam palavras ou imagens, elas adquirem sentido por meio da interpretação de quem os manipula e pela interpretação de quem os recebem. Tanto o discurso histórico quanto o cinematográfico são obras narrativas que lidam, distorcem, comprimem e suprimem o tempo. Pois como diz Paul Ricoeur (1994: 15) “o mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal”. O contar histórias possui convívio estreito com o tempo, pois este é tão fugidio que uma das formas encontradas pelo ser humano para apreendê-lo é por meio da narrativa.

O cineasta russo Andrei Tarkovski apresenta em uma frase uma imagem poética em relação a esse manuseio com o tempo. Para ele o trabalho do diretor é como esculpir o tempo.

Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado, pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela – do mesmo modo o cineasta, a partir de um ‘bloco de tempo’ constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo de que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica (1998: 72)

A palavra esculpir, de acordo com a acepção, pode ter o sentido de moldar ou de gravar. É possível dizer a existência desses dois movimentos no processo de contar histórias. A modelagem se dá por ser o tempo impresso uma criação humana distinta do tempo “real” no qual estamos envolvidos. O tempo humano, como denomina Ricoeur, impresso na narrativa é construído. Retiram-se os excessos, os fatos que podem levar a desvio do propósito da escrita, para evidenciar os que subsidiam a história a ser relatada. Trata-se de um processo seletivo, no qual tempos mortos, silêncios e lacunas são, por vezes, deixados de lado para não comprometer o resultado da narrativa. O que importa é dar a forma; e para isso é preciso retirar os blocos que impedem esse intento.

Já o processo de gravação é de fixar o tempo, com o intuito de deixar marcas perpétuas para futuras gerações terem acesso à narrativa e saberem como a história foi contada. Só que essa impressão não fica paralisada. Para ser assimilada, a narrativa conta tanto com a elaboração do realizador quanto do “receptor”. Ao lermos um livro ou assistirmos

a um filme estamos em contato com um passado. E momentos depois, quanto retornamos e vimos as mesmas construções — as mesmas palavras e as mesmas imagens —, a obra já nos parece outra, com dados e nuances antes não observados.

Nossa percepção mudou porque o presente já é outro, modificou-nos. O impacto inicial motivado por um trecho da leitura ou uma cena do filme não poderá ser revivido, e sim lembrado. Pode-se rememorar os sentimentos, mas eles não virão ao coração com a força inicial. Essa experiência é como a de Walter Benjamim (1995: 105) quando reflete: “(...) posso sonhar como no passado aprendi a andar. Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo”. As vivências vão acontecendo e apesar de não podemos restituí-las, como lamenta Benjamin, outras serão vividas pela primeira vez. O tempo dá à vida um fluxo contínuo, e nos leva junto consigo, mesmo que não percebamos. Ele não nos poupa, transforma-nos. Ora carrega-nos em seus braços; ora arrasta-nos.

Com o desenvolvimento da montagem cinematográfica, muito foi o entusiasmo sobre o deslocamento do tempo. Ao invés de seguir um tempo cronológico, “real’ ao mundo em que vivemos, tornou-se possível criar um novo tempo, com ritmo particular. Apesar da identificação com o pensamento de Morin, há uma concordância acompanhada por um “porém” sobre a sua consideração que a “compressão e dilatação do tempo são princípios e efeitos gerais do cinema” (1997: 12). A compressão e a dilatação do tempo são princípios da narrativa, seja a escrita literária, histórica ou fílmica. É possível, então ampliar a declaração de Tarkovski sobre o ofício de esculpir o tempo e destiná-la, não somente ao cinema, mas às demais obras narrativas.

Porém, o cinema, por invocar de imediato o sentido da visão, evidencia o deslocamento do tempo. Com a fotografia, acreditava-se na capacidade de apreensão do tempo que a máquina detinha. Junto com o tempo, era aprisionada a alma das pessoas. Essa crença reflete como o ato de viver está associado ao tempo. Já o cinema trouxe a novidade na composição das imagens e dar ao tempo o seu ritmo cotidiano. Porém não há como acompanhar o tempo da vida, até porque esta nada mais é do que uma fração de tempo.

Pois o tempo é fugidio para todos que vivem. E praticar uma escrita é um exercício constante de alinhavar os fios temporais. É criar uma temporalidade, torná-la humana e assim senti-la em mãos. Construir uma narrativa é criar um tempo próprio, distinto do que passa no relógio, distinto do que marca nosso corpo. O passado, que a princípio não existe mais, e o futuro, ainda inexistente, só podem ser atrelados ao presente. É a vivência atual que ordena, seleciona, dá peso ao passado — por meio da memória —e à espera — através do futuro.

Para Gilles Deleuze (2005: 122), o presente não existe, é somente um “passado infinitamente contraído”. É comum oferecer ao presente uma instantaneidade. Para Santo Agostinho (1980: 245), “o tempo presente não ocupa espaço nenhum”, de tão ínfimo. Porém, ao mesmo tempo, o teórico dá uma dimensão tão grande a esse mesmo presente que o faz ser responsável pelas impressões que temos sobre o passado e o futuro. “É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes e presente das futuras” (AGOSTINHO, 1980: 248). É essa simultaneidade de tempos, difícil de apreender. Pensando dessa forma, a princípio tem-se a impressão de que o presente é eterno. Porém essa atualidade das coisas presentes, passadas e futuras está em contínua mutação.

Deleuze elabora denominações interessantes para se referir ao tempo. Ao momento do agora, ele utiliza o termo pontas de presente. O termo ponta apresenta diversas acepções, tais como extremidade e algo de pouca quantidade. É como se ele passasse tão velozmente que não há outro meio de apreendê-lo a não ser pela pouca extremidade que se pode pegar. Já para se referir às coisas acontecidas, usa o termo “lençol do passado”. Como se fosse o passado algo de dimensão tão grande que nos cobrisse. Como se dele não pudéssemos escapar, pois ele encoberta nossas vidas.

O ato de narrar não está vinculado somente aos tempos dos eventos, à cronologia ou a uma temporalidade que perpassa o mundo. Há ainda o tempo no qual o escritor/cineasta está imerso. Cada um possui o seu próprio tempo. E mesmo este é múltiplo, pois em quantas temporalidades habitamos, quantas são nossas influências, quantas saudades temos do que vivemos e quantas nostalgias temos do que não vivemos.

Se todo esse movimento existe em uma única pessoa, quando se fala do outro, também detentor de tempos múltiplos vira uma corrente interminável. Por isso, é possível elaborar diversas leituras de um mesmo fato, e elas não precisarão ser especificamente excludentes entre si, podendo estabelecer um laço de complementaridade. Por isso uma adaptação de um livro para o cinema não possui a mesma valoração do que a obra original. Pois é o tempo de um entrando em contato com o dos outros e o do mundo. E ainda há um tempo interior aos fatos, aos eventos que não há como definir como presente, passado ou futuro. E talvez esse seja o obstáculo mais desesperador e inspirador do processo de escrita.

A corrente temporal que a tudo remove também assim faz com a verdade. Segundo Deleuze (2005: 159), “o tempo sempre pôs em crise a noção de verdade. Não que a verdade varie conforme as épocas. Não é o mero conteúdo empírico, é a forma, ou melhor, a força pura do tempo que põe a verdade em crise”.

A narrativa não relata os eventos em si; sua elaboração está voltada às imagens desses eventos na memória de quem relata e das fontes usadas pelo relator. Para Santo Agostinho, o processo de contar histórias não é um ato mecânico, pois o processo narrativo não está somente vinculado ao intelecto, o aspecto emocional é o que nos leva ao acaso, à surpresa, à entrega e à paixão. É dessa forma livre que as fontes nos contam os eventos, e as mentes estabelecem as ligações existentes, sendo possível assim tecer a trama.

O propósito deste capítulo foi o de apresentar alguns pontos nos quais baseio minhas reflexões. Particularmente, gosto da palavra possibilidade e faço bastante uso dela, porque ela traz à mente a imagem de aberturas, de flexibilidades.

Observo em comum entre a história e o cinema uma construção de estradas repletas de bifurcações e uma busca constante de encontrar e (re)elaborar sua escrita. Esse processo não ocorre somente com essas duas expressões; é decorrente do aprendizado e este se instala em qualquer área do conhecimento humano.

Creio que os pensamentos, mesmo vindo de campos distintos, terminam se avizinhando ou ficando sob o mesmo teto em algumas circunstâncias. Dentre tantas imbricações possíveis, escolho a do cinema com a história — ou da história com o cinema — pelo critério de afinidade. Não há qualquer intenção de propor uma valoração superior.

Não há no trabalho do historiador mais verdade. Apenas há os limites metodológicos colocados pela academia. Não há no trabalho do cineasta mais liberdade. A esta o limite é dado por meio da visão de mundo do próprio diretor, e até por limitações institucionais. Enfim, não há regras. O historiador possui a capacidade de transcender a “capacidade criativa” de um cineasta ao transformar barreiras em elementos a serem considerados e analisados. Acredito que o domínio da narrativa está mais ligado ao repertório intelectual e emocional do autor do que ao campo no qual atua. Afinal como diz Santo Agostinho (1980: 246), “os que narram fatos passados, sem dúvida não os poderiam veridicamente contar, se não os fizessem com a alma”.

Ao ver o filme eu ajudo-o a nascer, a viver, visto que é em mim que viverá e porque é feito para isso: para ser visto, isto é, para não existir senão perante o olhar.

Christian Metz

2. O cinema documentário