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O potencial didático deste tipo de recursos pedagógicos: cruzamento entre diferentes versões de

CAPÍTULO II: ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.3 O potencial didático deste tipo de recursos pedagógicos: cruzamento entre diferentes versões de

Centrámo-nos agora no potencial didático que assumem as lendas, mitos e tradição oral no processo de construção do conhecimento histórico, bem como nas perspetivas entre o real e o ficcional e o cruzamento entre diferentes versões que se estabelecem através da utilização destas ferramentas didáticas. Como nota introdutória, achamos relevante estabelecer uma ponte na forma como as lendas e mitos foram e são vistas nos últimos séculos. Até ao século XIX os mitos, as lendas e os contos foram sempre considerados para efeitos de produção do conhecimento histórico. Só a partir do século XIX é que a História, com estatuto de ciência social, com uma estrutura metodológica bem definida, passou a repudiar as narrativas (orais e/ou escritas) de natureza ficcional ou imaginada, uma vez que o seu caráter fantasioso não era tido como factual. Mais recentemente assistimos a um retorno da História para com as narrativas de caráter fantástico e imaginário, voltando estas a ser tidas para efeitos de produção do conhecimento histórico.

No que concerne a diferentes versões da mesma lenda, tal como refere (Solé, 2004) é importante realçar “o que há de comum entre elas, mas também as diferenças, os pormenores, os contextos em que é contada e por quem é contada. O cruzamento de diferentes versões permite tentar averiguar o fundo de verdade” que se pode encontrar numa determinada lenda/narrativa” (p.107). O nosso estudo pretendeu ir ao encontro de tudo o que é defendido por esta autora, dado interligar os diferentes tipos de narrativa, aludindo quer para o caráter escrito, quer para o caráter oral, onde por vezes o imaginário se cruza e as formas como as histórias são contadas sofrem alterações consoante a pessoa que as conta e/ou enuncia, ficando indefinido o caráter factual da narrativa e colocando-se em causa a veracidade da mesma. Torna-se fulcral, portanto, desenvolver a compreensão histórica nas crianças e promover o sentido de diferenciação entre a narrativa e a realidade histórica. Tal como refere Mattoso (2002, p.79), “ao apelar para a noção da realidade versus ficção, da objetividade versus aparência, convida-se o aluno à crítica.” E, como bem sabemos, a capacidade de refletir e criticar é uma das principais competências a desenvolver no

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ensino da História, uma vez que permite dotar os alunos de capacidades que lhes permitam distinguir o verdadeiro do falso. Segundo Andressa (2013, p.45) está provado que existem exemplos que demonstram que as crianças são capazes de pensar sobre as histórias não de forma submissa, mas procurando nas suas experiências evidências que as fazem aceitar ou não a validade dos factos. Há também elementos interessantes que indicam a diferença qualitativa na forma como buscam estas evidências e aplicam aos seus argumentos.

No que alude ao caráter variável da transmissão oral, Cooper (2012) afirma que as crianças são capazes de recontar e modificar histórias tradicionais integrando as suas próprias experiências, o que as auxilia “a dar sentido às suas vidas como parte de um contínuo da experiência humana” (p. 154). Num outro estudo, Cooper (2006, p. 181) sugere que ao trabalhar diferentes interpretações de uma mesma história, há evidências de que as crianças aprendem a diferenciar entre o factual e a ficção, ao procurar identificar as suas características comuns e ao discutir as razões para as diferenças. Neste contexto, procurámos destrinçar através de diálogos e do preenchimento de uma tabela comparativa (no caso do 1ºCEB) as dicotomias entre as duas versões exploradas relativamente à lenda dos batizados da meia-noite, tal como relativamente às duas versões diferentes que dizem respeito à personagem lendária do Caramuru.

Ainda relativamente à transmissão oral, Egan (1994) sustenta que “[as] histórias estão claramente relacionadas com respostas afetivas. Um bom contador de histórias faz vibrar as emoções, tal como um bom violinista faz vibrar as cordas do violino. O ritmo do conflito binário, os acontecimentos a que ele conduz e a sua resolução encontram em nós uma ressonância afetiva.” (p.41). Quer isto dizer que o próprio caráter da transmissão oral demonstra uma pluralidade de significados relativamente ao enunciador e ao recetor e à forma como estes contam e absorvem as informações, daí termos esbatido em contexto prático o significado do provérbio: “Quem conta um conto, acrescenta um ponto” algo que permitiu aos nossos alunos perceberem as diferentes formas como cada sujeito conta ou interliga os diferentes pormenores de uma narrativa e como pode distorcer (ou não) a realidade dos factos.

Egan (1994, pp.100-101) considera as histórias – histórias de ficção vulgares, contos de fadas, aventuras, histórias fantásticas – como possuidoras de importantes funções educativas. Para este autor o poder que as boas histórias têm de suscitar o interesse das crianças e estimular a sua imaginação, bem como de alargar as suas experiências, simpatia e compreensão por realidades diferentes, tem sido ignorado, o que acaba por acarretar sérios custos educativos. A

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nosso ver, torna-se extremamente relevante que as crianças possam ouvir histórias em contexto quotidiano, de modo a estimular o seu interesse e capacidades cognitivas. A escola assume um papel preponderante para tal, pese embora o contexto familiar seja também um local essencial para tais atividades.

As investigações de Solé (2004, 2009, 2013, 2015, no prelo) e com outros investigadores (Solé, Reis & Machado, 2014; 2016) bem como a investigação de Machado (2014) demonstram que as crianças interligam e estabelecem relações de proximidade relativamente à exploração das versões distintas de uma determinada lenda. Isto acontece porque é feito um confronto não só do corpo textual de ambas as versões, mas também das suas condições e contexto de produção. O estudo em questão também permitiu perceber que cada uma das versões privilegiava alguns detalhes em detrimento de outros, tal como os nossos alunos demonstraram na produção textual de uma nova versão da lenda dos batizados da meia-noite (em grupo) ou até mesmo quando confrontaram as duas versões lendárias do Caramuru relativamente ao porquê do seu nome e ao porquê de ter sido poupado pelos tupinambás (tal como é visível nos capítulo V e VI). Ainda no que diz respeito ao confronto de diferentes versões da mesma lenda ou figura lendária, segundo Cooper (2006) o recontar diferentes versões da mesma história possibilita que as crianças tomem consciência que diferentes períodos da História podem apresentar descrições diferentes da realidade e da verdade dos povos antigos, bem como que existem relatos diferentes sobre os mesmos acontecimentos históricos.

No que concerne à perceção do tempo, algo fulcral para a construção do conhecimento histórico por parte da criança, Hoodless (1998) destaca a utilização de narrativas ficcionais para a compreensão do tempo histórico, afirmando:

“Stories which make use of time as a device are certainly an excellent stimulus and a good resource for extending children's understanding. their potencial needs to be fully exploited in the classroom, encouraging children to think carefully about what is happening in the story” (Hoodless, 1998, p. 110).

Uma vez que falamos em tempo, importa destrinçar que vivemos atualmente, num mundo onde o hábito de contar histórias às crianças se foi descurando. Em grande verdade isto não é mais do que o resultado da falta de tempo que os pais e/ou encarregados de educação têm para os seus filhos. As obrigações profissionais, bem como a (in) disponibilidade para estarem com os seus filhos leva a que assim seja, pelo que é essencial que os profissionais em educação escolham criteriosamente as narrativas a explorar e as preparem de modo a facultar excelentes momentos

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de aprendizagem aos seus alunos, promovendo viagens pelo mundo do imaginário. Denote-se que apesar de a maioria dos autores considerar que a imaginação é um domínio cognitivo fundamental para o desenvolvimento intelectual dos alunos, a generalidade dos educadores/professores parece querer ignorar esse facto uma vez que menosprezam constantemente as suas potencialidades no processo de ensino-aprendizagem. Entre os autores que acreditam no papel da imaginação nesse processo, encontra-se Egan (1994), para quem “a imaginação é um modo de aprendizagem poderoso e negligenciado” (p. 32) num contexto em que a imaginação nos aparece como “a ação ou poder de formar imagens mentais de realidades que não estão efetivamente presentes ou a ação ou poder de criar imagens mentais daquilo que nunca foi experienciado ou vivido anteriormente” (p.19).

De acordo com Fontes (2013), quando o professor não pode possibilitar uma viagem ao passado aos seus alunos, o uso de narrativas mitológicas exige que o aluno faça uma reflexão assentando em diferentes pontos de vista e em diferentes teorias, quer do ponto de vista literário quer do ponto de vista histórico. Estes dois pontos de vista exigem um rigoroso trabalho de investigação e cruzamento entre diferentes fontes. Levstik e Pappas (1982), citados por Fontes (2013), referem que o professor assume um papel fundamental na criação de condições favoráveis para que o aluno diferencie a dimensão mais emotiva da dimensão analítica das fontes, quando realizam tarefas de leitura e interpretação de fontes. As atividades planeadas que envolveram a exploração de fontes relativas à lenda dos batizados da meia-noite, à lenda do Caramuru e às estrofes 39 e 40 da epopeia nacional “Os Lusíadas” comprovam este cariz de interpretação do ponto de vista literário e histórico, congregando atividades como a visita de estudo ou a exploração de todas as narrativas utilizadas durante a PES. Por isso mesmo, procurámos articular momentos de contacto direto com fontes históricas, tal como está descrito nas atividades retratadas no capítulo IV, onde por exemplo, realizámos uma visita de estudo aos locais emblemáticos das versões A e B da Lenda dos batizados da meia-noite, ou então ao contacto com a estátua de Caramuru e Paraguaçu procurando facultar experiências de aprendizagem sobre o Património aos alunos. Se atentarmos na atualidade, os resultados de alguns estudos centrados no meio local têm vindo a mostrar a importância da educação patrimonial nas experiências de aprendizagem dos alunos e a necessidade de uma maior reflexão sobre a sua introdução no currículo (Barca, 2003).

O presente projeto, também deseja que os alunos desenvolvam várias competências históricas e linguísticas quando exploram narrativas de ficção histórica, ao nível da interpretação

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e da escrita, competências essas que os alunos revelam estarem ainda pouco desenvolvidas. A construção de narrativas foi algo a que resolvemos atribuir grande relevo, e que de certa forma também ajuda a dar resposta e a avaliar parte das questões de investigação. Sobre a construção de narrativas refere Fertuzinhos (2004) através de Timothy J. Lensmire que “as crianças também podem beneficiar se escreverem as suas próprias narrativas históricas. Ao escreverem estão a construir as suas próprias interpretações e a compreender melhor o contexto histórico dos acontecimentos” (p. 69). A partir das produções escritas dos alunos, o professor pode analisar essas ferramentas, conseguindo perceber se os seus discentes ficaram esclarecidos e se estabelecem a ponte entre o ficcional e o real ou até mesmo se estão a entender as fontes que possuem (Fertuzinhos, 2004). Como sabemos, as crianças são seres extremamente imaginativos e adoram especular, principalmente os mais pequenos, o que conduz a que confundam o real com a imaginação, levando a que sejam criadas/construídas narrativas pouco lógicas ou até mesmo incoerentes do ponto de vista histórico. Como tal, é necessário que o professor acompanhe de perto todo o trabalho realizado pelos seus alunos. Para além de todos estes aspetos aqui referidos, denotámos que a construção de narrativas permite que os alunos sejam autónomos na recolha de informação das fontes históricas, desenvolvendo não só a capacidade imaginativa, como também o enriquecimento do vocabulário.

2.4 As lendas históricas e heroicas: a lenda dos batizados da Meia-noite e a lenda do