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POTENCIAL MONETÁRIO DE OUTORGA DE PODER

CAPÍTULO 3: ESTUDO DA MOEDA SOB A ÓTICA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

9. POTENCIAL MONETÁRIO DE OUTORGA DE PODER

Simmel, como se expôs acima, sustenta que a moeda, graças à sua abstração em relação aos propósitos humanos, confere ao seu detentor extensas possibilidades de escolha relacionadas à concretização dos mais distintos fins. Esse poder de escolha conferido pelo dinheiro, ainda na lição de Simmel, é desvinculado de constrições oriundas dos contextos éticos e sociais em que se encontram os agentes econômicos, tais como preceitos religiosos, normas morais e padrões tradicionais de comportamento. É nesse sentido que a moeda é descrita, na expressão cunhada pelo sociólogo alemão, como “o mais puro exemplo de ferramenta”, ou seja, um instrumento neutro e incolor ante os diferentes fins a que pode se dirigir o agir.

Simmel salienta, além disso, a circunstância de que o poder de escolha atribuído por cada unidade monetária tende a ampliar-se na proporção direta das dimensões do patrimônio de seu detentor. Em conseqüência, a liberdade que a moeda, abstratamente considerada, potencialmente confere aos seus detentores para a satisfação de distintos interesses e necessidades não se distribui eqüitativamente, na prática, entre os agentes econômicos, mas varia segundo a distribuição social de riqueza. O mecanismo do preço atua, nas sociedades contemporâneas, como uma barreira à satisfação de determinadas necessidades e interesses, a saber, aqueles de pessoas que não dispõem do poder aquisitivo exigido pelo funcionamento do mercado.

Tais considerações constituem o ponto de partida para o estudo de uma característica essencial da moeda nas sociedades contemporâneas, que, no presente texto, será denominada, na linha de Nigel Dodd, como potencial monetário de outorga de poder. A expressão “outorga de poder” foi cunhada por Dodd, com apoio nas lições de Simmel, para designar a “liberdade que [o dinheiro] proporciona para a expressão de necessidades e desejos”247. Trata-se de aspecto do dinheiro que, na terminologia de Dodd, integra a sua “inerente transparência como instrumento econômico”248, ou seja, a sua abstração em relação a quaisquer propósitos humanos específicos.

Relembre-se que Nigel Dodd dispôs-se a investigar as propriedades essenciais da moeda, ou seja, aquelas propriedades abstratas que, por oposição às características contingentes de modalidades monetárias concretas, são universalmente ostentadas pela moeda em qualquer contexto social e histórico e que, por conseguinte,

247

DODD, 1997. p. 241.

constituem os aspectos definidores da sua natureza249. As propriedades abstratas essenciais da moeda, segundo Dodd, consistem precisamente nas qualidades simbólicas que decorrem de sua inerente transparência. Sobre o assunto, afirma Dodd:

“o dinheiro, sempre e onde quer que seja usado, não se define por suas propriedades como objeto material, mas pelas qualidades simbólicas genericamente vinculadas ao ideal de outorga irrestrita de poder. (...) o ideal de outorga irrestrita de poder, de liberdade total de agir e incorporar à vontade, se encontra no cerne da conceituação do dinheiro em geral como um meio simbólico transparente”250.

O conceito de outorga de poder apresenta grande relevância para o entendimento da moeda, ao menos nas sociedades contemporâneas, pois, como salienta Dodd, a outorga de poder encontra-se na base do desejo pelo dinheiro e condiciona o modo como o dinheiro é percebido e utilizado pelos agentes econômicos251. Tal como a noção de liberdade de escolha utilizada por Simmel, todavia, o conceito de outorga de poder desafia um aperfeiçoamento que lhe permita esclarecer o papel do dinheiro como mecanismo para a conformação teleológica de condutas alheias.

A outorga monetária de poder, nos termos em que é delineada por Dodd, consiste, fundamentalmente, em capacidade aquisitiva, ou seja, envolve a liberdade (que, nas palavras de Simmel, é formal) para a aquisição de objetos do desejo e para a satisfação de necessidades. Ocorre que, muito embora o atendimento de interesses e necessidades com o emprego do dinheiro dependa das prestações de outros agentes econômicos252, o foco analítico da definição de outorga de poder elaborada por Dodd, assim como a noção

249 A explicação completa das características universais da moeda, segundo Dodd, compreende ainda

determinadas propriedades abstratas das chamadas redes monetárias (DODD, 1997. p. 236). Esse assunto será apreciado no item 10 desta dissertação.

250 DODD, 1997. p. 235. 251 DODD, 1997. p. 235.

252 Por exemplo, de pouco adiantaria contar com o dinheiro necessário para comprar um certo livro se não

existissem pessoas e organizações produtivas que se dedicassem a escrevê-lo, fabricá-lo em série, comercializá-lo e transportá-lo, bem como pessoas e organizações que se dispusessem a financiar todas essas atividades.

de liberdade de escolha, na doutrina de Simmel, dirige-se às relações entre sujeito e objeto. O enfoque de ambos os autores concentra-se, dessa maneira, na aquisição de objetos do desejo pelos agentes econômicos, e não na influência de um agente econômico sobre outro.

O conceito de outorga de poder pela moeda pode ser enriquecido, contudo, caso o fenômeno da utilização do dinheiro seja apreciado também a partir de um ponto de vista diverso, que leve em consideração as relações entre agentes econômicos. Nesse novo enfoque, que se dirige, na verdade, a uma dimensão distinta do mesmo fenômeno, a moeda constitui um instrumento para a influência estratégica de condutas alheias.

Denomina-se estratégico, neste trabalho, o tipo de agir social que se orienta ao sucesso, assim entendido o surgimento, no mundo, de um estado de coisas desejado e causalmente provocado pelo sujeito. No agir estratégico, a coordenação de ações depende da influência dos indivíduos uns sobre os outros e sobre a situação do agir, de tal maneira que a racionalidade da conduta possa ser aferida por regras de escolha racional e pela eficácia em influenciar as decisões de um agente racional253. O mecanismo da coordenação estratégica de condutas é a demonstração e a utilização de potenciais de poder, que permitem ao agente fazer prosseguir as interações sociais no sentido desejado254.

A moeda atua, nesse sentido, como instrumento do agir estratégico. Ela promove a coordenação de condutas, em contextos específicos, por dispor de montantes quantificáveis de poder econômico que podem ser mobilizados pelo seu detentor. A moeda outorga o poder de motivar os outros agentes econômicos, mediante a promessa de

253 HABERMAS, 2002, vol. I. p. 285.

254 O agir estratégico distingue-se, assim, do agir em que os participantes em interações lingüísticas buscam o

convencimento racional a respeito da verdade ou da correção de pretensões de validade criticáveis, chamado de agir comunicativo. Sobre o assunto, cf. HABERMAS, 2002, vol. I. p. 273-337.

utilidades econômicas, a agirem da maneira desejada por seu detentor. Exemplo particularmente nítido dessa característica da outorga monetária de poder é encontrado na viabilidade de se influenciar a conduta de um agente econômico por meio da enunciação de ofertas em dinheiro e na correspondente possibilidade que se abre, para o destinatário das propostas, de adotar uma posição de aceitação ou de recusa ante cada oferta.

Como conseqüência da capacidade que ostenta a moeda de conformar estrategicamente as condutas alheias, os comportamentos dos agentes econômicos em mercado podem destacar-se dos padrões discursivos de interação social e passar a orientar- se exclusivamente em termos da racionalidade referente a fins255. A estrutura integrada de preferências subjacente ao uso da moeda, moldada pelo critério da maximização dos lucros, conduz, assim, à integração dos agentes em mercado de forma desvinculada dos correspondentes contextos éticos e sociais.

É possível afiançar, em resumo, que o potencial monetário de outorga de poder apresenta duas dimensões. Em uma delas, a moeda tem caráter instrumental: consiste em meio para a aquisição de objetos do desejo, ou seja, para a satisfação de necessidades e interesses. Na outra dimensão, a moeda tem caráter estratégico: constitui meio para a conformação teleológica de condutas alheias. Deve-se atentar para o fato de que tais dimensões não traduzem aspectos disjuntivos da utilização da moeda pelos agentes econômicos, e sim características monetárias que precisam necessariamente ser conjugadas para a correta apreensão do fenômeno.

A dimensão estratégica do potencial monetário de outorga de poder apresenta suma importância para o entendimento da política monetária. Esclareceu-se, acima, que a política monetária realiza-se, de forma preponderante, por intermédio de

255

A ação racional referente a fins concentra-se na adequação entre meios e fins e na escolha entre alternativas em vista de valores pré-definidos. Sobre o assunto, WEBER, 2000. p. 15-16.

medidas de cunho fiduciário, a exemplo da manipulação das condições do redesconto e das operações em mercado aberto256. Distintamente do que ocorre quando o Estado utiliza medidas de caráter coercitivo para intervir na ordem econômica, a eficácia das intervenções fiduciárias da autoridade monetária depende de sua capacidade financeira de induzir os agentes de mercado a agirem da maneira esperada. A autoridade monetária, nesse contexto, procura influenciar as condutas dos agentes econômicos segundo a lógica do mercado, ou seja, mediante a manipulação de fluxos monetários em conformidade com as leis ditadas pela ciência econômica.

Uma vez que a capacidade de conformação estratégica das condutas dos agentes econômicos constitui elemento essencial para a eficácia dos instrumentos fiduciários de intervenção na economia, a percepção adequada do fenômeno da outorga de poder pela moeda assume posição central para o estudo da política monetária. É possível sintetizar esse entendimento na seguinte asserção: o potencial monetário de outorga de poder pode ser mobilizado pelas autoridades monetárias no interesse da persecução dos objetivos da política econômica.