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5 DINAMIZANDO A ATENÇÃO BÁSICA COM O JEITO DE EPS QUE

5.2 POTENCIALIDADE DA ATIVAÇÃO/MOBILIZAÇÃO DA REDE

Conforme já foi abordado anteriormente, a interação dos profissionais de saúde com pessoas da rede social local costuma acontecer informalmente nos serviços de atenção básica, e isso se dá mais fortemente ainda quando esses profissionais regem sua prática pelos princípios da EP. Usualmente, essa intervenção acontece com mais freqüência em torno de questões pontuais, envolvendo problemas específicos. A proposta que buscávamos estimular através da pesquisa avançava em relação ao que já acontecia, por assumir a idéia de que as

diversas formas de apoio constituíam uma rede social e propor que houvesse uma interação mais articulada e sistemática entre as ações dessa rede e a equipe de saúde.

Embora estivéssemos, no decorrer da pesquisa, envidando maiores esforços na realização das reuniões com as redes sociais, algumas situações requeriam uma intervenção mais pontual de mobilização da rede pessoal, reforçando o valor e a eficácia dessa forma de mobilização. Destacamos, então, duas modalidades de mobilização da rede social. Nas reuniões apresentava-se a possibilidade de uma mobilização mais conjunta, onde todos os atores estavam próximos. Nas ações em torno de uma pessoa, procedia-se a uma mobilização em que os atores eram contatados separadamente, face às dificuldades de reuni-los, e nós, os pesquisadores, agíamos como um elo de ligação entre eles. Essa segunda modalidade representava episódios de atuação em rede, típicos da prática de saúde na atenção básica e que eram experiências muitas vezes bem sucedidas, dentro dos limites que a própria situação impunha.

A situação de Sheila foi uma das que mais evidenciou essa potencialidade. A despeito da dimensão dos problemas que ela enfrenta, das objeções da família e das dificuldades inerentes ao seu contexto, e da nossa reduzida capacidade de resolutividade desses problemas, acredito que conseguimos mobilizar um pouco sua rede, exercendo alguma influência em sua vida. Ao acionarmos contatos e inserirmos novos sujeitos na sua rede pessoal, mexemos um pouco com a estagnação e a extrema carência da vida dela - carência material, afetiva, cultural. Isso ocorreu a partir da mobilização de algumas pessoas que já faziam parte de sua rede e da inclusão de outras, como o pastor, que lhe emprestou uma cadeira de rodas, dando- lhe um pouco mais de independência. O pastor, por sua vez, mobilizou outras pessoas da igreja, que passaram a visitá-la regularmente, dinamizando um pouco sua vida. A dentista também se envolveu e trouxe algumas mudanças para a saúde bucal dela, apesar de que essas mudanças não tiveram o seguimento desejado.

O episódio em que nos mobilizamos para a aquisição da cadeira de rodas dela foi bem representativo em termos de ativação da rede social. O Ministério da Saúde, que fornece as cadeiras de rodas, só aceita o pedido, se a prescrição for feita por um ortopedista ou um neurologista. O pastor foi mobilizado a fim de conseguir consulta nesse especialista. A médica providenciou o transporte junto à direção do Distrito Sanitário para levar Sheila ao neurologista, porém, tendo acompanhado em primeiro lugar outro paciente, explicou a dificuldade em transportar Sheila, e conseguiu que a médica fizesse a prescrição sem que a mesma estivesse presente. Eu me dispus a levar a prescrição ao setor da prefeitura responsável pela aquisição de órteses. A agente de saúde intermediou todo o processo.

Esse episódio que envolveu várias pessoas evidenciou o quanto a articulação de diversas iniciativas de apoio pode contribuir para solucionar problemas que nem os profissionais de saúde sozinhos, nem a família isoladamente conseguem resolver. Poderia ser uma intervenção em rede bem sucedida, mas a documentação não foi aceita no referido setor, porque, segundo a funcionária que me atendeu, no carimbo da médica não constava que ela era neurologista. Era preciso recomeçar todo o processo.

Com Dona Rosa aconteceu algo semelhante. Constatei na entrevista que após nove anos de seqüela ela ainda não tinha uma cadeira de rodas. Apesar de ter marcha domiciliar, ou seja, conseguir andar sozinha dentro de casa, ela não tem marcha comunitária, pelo menos não naquelas ruas, de forma que para sair com ela de casa faz-se necessário o uso de cadeira de rodas. O pastor Roberto costuma emprestar cadeira de rodas às pessoas do bairro, mas pelo que pude perceber, dona Rosa foi a única pessoa dentre as envolvidas na pesquisa a quem ele não havia visitado, embora tivesse visitado seu Miguel, vizinho seu. Conversei com ele a esse respeito, e ele conseguiu uma cadeira de rodas para ela. Essa cadeira facilita um pouco o trabalho de transportá-la.

Admitindo a importância dessa forma de trabalho com as redes de apoio, não podemos deixar de ressaltar que essas ações poderiam se dar de forma mais organizada e mais efetiva, se nos reuníssemos para discuti-las e planejá-las. Klefbeck (2002) afirma que a rede só pode ser mobilizada a partir de uma reunião de seus integrantes. A realidade é que o funcionamento do serviço, as diferenças de horários em termos de disponibilidade dos diversos atores e a falta de rotina de reuniões entre os mesmos, dificultaram o atendimento dessa necessidade, e nós temos que lidar com a realidade concreta dos serviços. Sempre que eu discutia a situação das pessoas com deficiência com os profissionais das equipes, era nos momentos entre as consultas. Quando precisávamos falar com o pastor Roberto, íamos procurá-lo no grupo de idosos ou em sua casa. De modo que, nesses casos, não reuníamos as pessoas envolvidas para discutir a questão e programar as ações em torno dessa problemática, mas a despeito dessas dificuldades, a rede social era ativada.

No que se refere às reuniões realizadas, pudemos constatar a relevância das redes sociais como forma de interação social, ajudando a combater o isolamento ao qual aquelas pessoas estavam submetidas. O encontro ou reencontro que estava acontecendo entre pessoas que moram no mesmo bairro, mas que nunca se vêem, era uma evidência disso. Revelava, fortemente, a potencialidade que um espaço de convivência acessível àquelas pessoas propiciaria em termos de sociabilidade.

Essa dimensão da mobilização através da rede social era fortemente embasada nos princípios da Educação Popular. Entendendo que a ação educativa enquanto ato político deve guardar coerência entre os métodos e as técnicas utilizadas e o projeto político com o qual está comprometida, priorizamos, em todo o processo de trabalho com as redes sociais, individual ou coletivamente, estratégias respeitosas do saber, da cultura e das necessidades das pessoas daquela classe social. Entendíamos, outrossim, que estimular o protagonismo das pessoas com deficiência e suas redes de apoio nas reuniões exigia incentivar e facilitar a participação desses atores, do seu exercício de voz, de ter voz, de ingerir, de decidir, o que implicava o seu direito de indagar, de duvidar e de criticar (FREIRE, 2003b).

A postura de abertura ao diálogo, como encontro dos seres humanos mediatizados pelo mundo (FREIRE, 1978), que procuramos manter em todos os instantes da convivência, bem como nos momentos de reflexão acerca do que era vivenciado, revelou-se fundamental para que pudéssemos minimizar os efeitos da nossa educação classista e preconceituosa (VALLA, 1998). Desse modo, pudemos avançar no sentido de contribuir com o fortalecimento das iniciativas daquele grupo e no entendimento de questões que nos pareciam obscuras e incoerentes.

Tínhamos consciência dos limites da prática educativa que estava em curso nessa pesquisa, mas essa consciência dos limites também significava reconhecer que ela tinha uma eficácia no sentido de transformação social (FREIRE, 2003, b).

Em algumas pessoas pudemos registrar pequenos avanços e mudanças sutis proporcionados pela ação da rede social, resultantes de um somatório das ações preexistentes a nossa intervenção mais as ações que estimulamos ao longo da pesquisa.

Um dos pequenos avanços que pudemos registrar foi a evolução de seu Miguel. Se na primeira reunião tivéssemos levado em conta a relação custo/benefício, talvez considerássemos que não valeria a pena tanto esforço em carregar seu Miguel para as reuniões, pois ele não participava efetivamente. Ficava meio alheio, não respondia de forma coerente ao que era perguntado, não contribuía com a discussão, e depois não lembrava de coisa alguma. No entanto, sua participação foi evoluindo ao longo das reuniões que se seguiram, mostrando que valia a pena o esforço.

Em uma das reuniões esteve presente dona Gina, a esposa de seu Ronaldo, que se mostrou muito admirada em ver seu Miguel, pois o conhecia de muitos anos antes e de outro lugar. Ela afirmava que ele era um homem muito trabalhador e muito querido pelas pessoas, confirmando nossa suposição de que ele sempre fora uma pessoa que tinha facilidade em desenvolver relações afetivas. Surpreendentemente, seu Miguel também lembrou dela,

mostrou-se feliz em vê-la, dizendo que a conhecia do tempo em que moravam numa usina. Ficamos empolgados com essa lembrança, embora logo em seguida ele dissesse que não lembrava o que tinha sido discutido na reunião anterior, revelando uma perda de memória recente.

Com o seguimento das atividades da pesquisa, percebi que seu Miguel estava mais lúcido, acompanhando melhor as discussões nas reuniões. Também havia evoluído no tratamento fisioterapêutico. Até as constantes dores de cabeça que ele costumava ter, haviam cessado.

Refleti que alguns fatores contribuíram para essa evolução, principalmente o fato de que ele tem uma rede de apoio muito extensa e ativa. A esposa e os filhos cuidam bem dele e de forma afetuosa. A estudante que o acompanhava também se empenhava muito em seu tratamento, tanto do ponto de vista técnico, inclusive comprando bolas para facilitar alguns exercícios, quanto do ponto de vista afetivo, pela forma atenciosa com que ela o trata e orienta a família.

Outra pessoa em quem pudemos registrar sutis, porém animadores avanços ao longo da pesquisa foi Silvino. Logo após a apresentação do grupo de dança da FUNAD, uma mudança ficou perceptível nele. Diferentemente da atitude apática predominante naquele período, mostrou-se interessado no grupo, e quando fizemos a proposta de que ele poderia ser atendido no AA, ao invés de em casa, ele disse que era muito difícil se deslocar, mas já não demonstrou tanta convicção na sua negativa. Outro fato que nos chamou a atenção foi o interesse em melhorar a aparência que ele demonstrou por influência do dançarino. O rapaz, que tem uma paraplegia como ele, joga basquete e participa do grupo de dança em cadeira de rodas, tendo os músculos do tronco e dos braços bem fortalecidos. Ele supôs que o dançarino tomava “bomba” e disse a Jorge que quando recebesse dinheiro ia tomar bomba também. Embora a interpretação estivesse equivocada - pois o dançarino provavelmente treina muito, joga basquete, dança e por isso tem aquela musculatura – isso revelava um desejo de mudança, e diferia da sua apatia costumeira, representando para nós um passo importante no sentido de sua reabilitação.

Para uma pessoa com paraplegia decorrente de lesão total da medula, como era o caso de Silvino, a alternativa de tratamento mais viável é se adaptar a sua condição de cadeirante e trabalhar os membros superiores, melhorando a funcionalidade e tornando-se o mais independente possível. Essa decisão de Silvino poderia contribuir com sua adaptação a essa condição, não no sentido de sentir-se deficiente como ele vinha fazendo, mas na direção do

desenvolvimento de seu potencial. Ademais, a possibilidade de melhorar a aparência poderia representar um passo importante na melhoria da auto-estima dele.

Entretanto, a falta de recursos de tratamento e os episódios de adoecimento que se seguiram, não favoreceram que o tratamento avançasse nesse sentido. A complexidade dos problemas nos absorvia a ponto de impedir que coisas simples tivessem seguimento. Nesse caso em particular, fizemos uma solicitação ao Distrito Sanitário para que fosse adquirido um material a ser usado no tratamento, inclusive halteres para fortalecimento de membros superiores. Até o momento final da pesquisa esse material não foi adquirido, mas poderíamos ter improvisado alguns halteres, chegamos a discutir essa possibilidade, mas não a concretizamos.

Nas primeiras reuniões, ficava evidente uma tendência dele em se colocar na condição de coitadinho, de receptor do apoio. No decorrer da pesquisa, a despeito dos vários episódios de adoecimento que interferiram na sua participação, uma mudança no seu comportamento foi ficando perceptível. Ele sempre se sobressaía nas discussões e sua participação foi se tornando mais efetiva à medida que as reuniões aconteciam. Tinha posições bem críticas a respeito dos fatos. Além da mudança no relacionamento para conosco, que se tornou mais receptivo e cordial, também registramos mais interesse e desejo de ajudar outras pessoas que passavam por dificuldades, colocando-se como ator do processo. Ele parece ter sido, juntamente com Alfredo, uma das pessoas que mais incorporou a idéia do grupo, ou melhor, da rede social.

As reuniões lhe proporcionaram a oportunidade de falar de um assunto que ele evitava abordar: sua deficiência. No início da pesquisa, quando lhe perguntei se ele contava com alguém para conversar, desabafar, ele me respondeu: “Nunca puxei não. Só conversei com o médico lá do hospital e ele contou as condições, a partir do momento ali eu não toquei mais no assunto”. Isso significa que ao longo dos cinco anos em que convive com sua deficiência, ele nunca expôs suas angústias, seus anseios, suas dúvidas, seu ressentimento. Durante as reuniões, na medida em que as outras pessoas com deficiência contavam sua história, suas dificuldades, suas possibilidades de recuperação, Silvino também falou.

Em uma terça-feira, dia 20 de dezembro, eu desci á rua que leva à casa de Silvino, a fim de lhe comunicar meu afastamento das atividades do projeto e desejar um feliz Natal. Ele estava no quintal, sob a sombra do pé de fruta-pão, sentado em sua cadeira de rodas, acompanhado de várias pessoas da família e vizinhos e outras pessoas que eu não conhecia. Me recebeu todo sorridente, o que não era usual, pois ele sempre se mostra reservado no início da conversa, e só depois de algum tempo e uma certa insistência, ele se abre para o

diálogo. Fiquei muito satisfeita com essa receptividade. Conversamos um pouco, expliquei do meu afastamento, desejei boas festas a todos e em particular a Silvino, e fui embora pensando o quanto ele estava mudado.

No entanto, a potencialidade do protagonismo das pessoas com deficiência, enquanto atores sociais, se revelou mais fortemente nesse trabalho a partir da participação de Alfredo. Ele foi um importante ator no sentido de impulsionar mudanças naquela rede social. Quando o entrevistei e convidei a participar das reuniões, enfatizei a contribuição que ele poderia dar, considerando-se que as orientações discutidas com alguém que vivencia o mesmo problema certamente são muito mais significativas do que aquelas fornecidas ou até mesmo impostas pelos profissionais de saúde. Essa possibilidade se confirmou no decorrer das reuniões.

Nessa atuação pautada na Educação Popular, a participação das pessoas era vista como uma contribuição real, e sua experiência e conhecimento eram valorizados, não sendo apenas como uma interrupção necessária para demonstrar nosso compromisso com a democracia, após a qual se retorna aos assuntos que realmente importam (VALLA, 1998), mas como um rico aprendizado. A abertura existente naquela proposta possibilitou que Alfredo compartilhasse seu saber. Ele participou ativamente das reuniões, compartilhando seus conhecimentos, suas descobertas e suas dores do início do processo de reabilitação. Buscava incentivar as pessoas e revelava para todos um potencial de liderança que logo foi identificado por Lauro como um possível condutor do núcleo da Associação no Grotão.

Se, inicialmente, a oportunidade de acesso ao tratamento de reabilitação no Hospital Sara Kubitschek foi motivo de ressentimento por parte de Silvino, após algumas reuniões, a forma tranqüila com que Alfredo compartilhou suas dores e aprendizados foi um importante facilitador para que Silvino pudesse expor questões relativas à sua deficiência, de que nunca havia falado anteriormente.

5.3 A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA E O TRABALHO DE EPS COM AS