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Potencialização de experiências estéticas corporificadas

Mapa 1 Mapa das residências dos espectadores

3. EXPERIÊNCIAS ESTÉTICAS CORPORIFICADAS EM DANÇA

3.1 Potencialização de experiências estéticas corporificadas

A potencialização das experiências estéticas se configura como um tipo de conexão corporificada nos encontros entre os espectadores e a dança. A relação corporificada acontece sem a mediação artística, mas, no caso dos festivais, essa conexão aparentemente é potencializada por conta de existir um programa de mediação artística com estruturas e procedimentos metodológicos que propõem processos mediadores junto aos fruidores. Mas, também é uma possibilidade que depende de aberturas do espectador para o tecimento dessas relações sensíveis, para o novo. Podem ser fomentadas nas ações de mediação artística quando estas também abarcam questões relacionadas às várias percepções que podem ampliar as capacidades dos sujeitos para a geração de novas realidades.

A possibilidade do estabelecimento de conexões e potencialização das experiências estéticas resulta dos inúmeros encontros a que os sujeitos se deparam na vivência humana. Não existe um 'botão de comando' que desligue ou desconecte o espectador de todas as complexidades que os rodeiam. Desta maneira, no momento das ações de mediação artística

ou dos espetáculos os espectadores são os mesmos sujeitos – considerados sempre em transformação - que atuam na esfera pública. Nesse sentido, o conjunto de acontecimentos potencializa ou não experiências, bem como a produção de conhecimentos e autoconhecimentos explorados podem ou não promover processos transformadores nos sujeitos.

Os estados corporais dos espectadores são continuamente contaminados ou influenciados, bem como, os seus contrários, que por consequência podem contaminar os ambientes em que se inserem. Por exemplo, os sujeitos podem mudar de estados corporais, e não estou afirmando se é positivo ou negativo, diante da sua relação ao como se dão as condições de deslocamento até o local das ações ou espetáculos. Podem desenvolver sensações de medo e insegurança usufruindo dos transportes coletivos quando se dirigem aos encontros. Podem desenvolver oscilações de humor referente a motivos naturais com relação à previsão do tempo – às vezes os sujeitos não gostam da chuva, ou do calor. Às vezes pode ser que a estética das obras não os agrade, mas, se houver aberturas, pode ser que estas experienciações os conquiste com o tempo. Enfim, inúmeras situações podem modificar os estados corporais dos espectadores e estas e diversas outras circunstâncias os influenciam a todo o tempo.

Identificar que os sujeitos estão propensos a mudanças é um diferencial nas propostas e ações de mediação artística, visto que, quaisquer tipos de abordagens temáticas que problematizem o cotidiano servem como gatilhos que podem promover um tipo de conexão corporificada. Nesse sentido, os níveis de tomada de consciência do sujeito diante das sensações, emoções, percepções, sentimentos e possíveis transformações conduzem a novas reflexões. Indicam que somos passíveis de experiências estéticas e reverberações em quaisquer momentos da vida cotidiana com ou sem as artes.

O esforço individual em prol de outras possibilidades ou a descoberta de diferentes modos de agir com relação a estes incidentes cotidianos também conduzem nossas atitudes diante das experiências com as artes. Pois, de modo geral, replicamos esses modos de agir nos vários setores e dimensões da vivência humana. Quero dizer que o sujeito que dá a conhecer aos outros, ou não, por exemplo, qualquer tendência homofóbica na convivência em sociedade, provavelmente, também o fará diante das artes. Nessa lógica, essas capacidades de refletir e agir sobre todas estas e outras inúmeras minucias que regem nossas vidas é que podem potencializar tanto os encontros quanto as experiências dos sujeitos.

Pode se dizer que esse tipo de 'amadurecimento' vai moldando/modificando nossa relação conosco e com o mundo e permitindo o exercício de uma escuta sensível e/ou de percepções de processos de reverberações. Essa doação de si para si mesmo, essa relação verdadeira que

promove aberturas para o novo, para o diferente, para o inusitado e que reflete sobre esses processos. Assim, a atitude dos espectadores diante de todos estes fatos é tão importante quanto a ação de mediação artística ser bem programada.

Sabe-se também que experiências corporificadas não acontecem somente por meio de hábito e memorização de informações que permitem análises formalistas sobre as obras, num entendimento tradicional dos termos. Pois, um fenômeno complexo requer a construção sucessivas de reinterpretações e produções de sentidos que se superam constantemente. Sendo assim, é preciso vivenciar situações em que os encontros com as obras possam produzir sentidos e análises críticas sobre o processo relacional do sujeito com os sujeitos/objetos.

Nesse sentido, precisamos exercitar ser espectador da dança e de si com frequência para adquirir habilidades, pois de outra maneira, estaríamos tratando de fenômenos complexos como se fossem simples. Há indicativos de que os programas de mediação cultural dos festivais, apontam, da perspectiva desta investigação, para três tipos de saberes. São determinados pelo conhecimento prévio que se tem sobre a linguagem da dança; os conteúdos que se quer compartilhar sobre os espetáculos, os artistas, os equipamentos culturais, os festivais e conhecimentos sobre os grupos mediados; e a maneira de praticar a mediação artística. Essas perspectivas, em ação conjunta, permitem de certa maneira planejar intencionalmente ações de mediação como práticas pedagógicas para a promoção da potencialização das experiências estéticas dos sujeitos espectadores.

No entanto, sabemos o quanto é difícil conseguir que os espectadores se arrisquem e se abram para o compartilhamento das experiências de um aprender estético, porque usualmente, eles se acham incapazes de o fazer. Como se fossem os únicos ou os últimos numa suposta escala hierárquica de saberes. Geralmente se retraem num primeiro convite para fruir danças por conta, dentre outros, do estigma de que a Arte, no nosso caso a Dança, é algo que só ‘pessoas cultas ou estudadas’ podem acessar. Essa percepção distorcida, de uma inabilidade para estar em relação, faz com que muitos sujeitos não aceitem os desafios propostos por ações de mediação que incorporem a fase pós-espetáculo, por exemplo. E como muitos de nós sabemos, diante de situações assim, como mediadores/educadores a primeira atitude a tomar é a de criar condições para que os sujeitos possam vir a reconhecer e valorizar o que sabem propondo a superação deste sentimento.

E por esse motivo é relevante que perspectivas como estas sejam enfraquecidas pela mediação artística, reduzindo ‘o medo de errar’ que pode inviabilizar o estabelecimento de aproximações e relações sensíveis nos encontros proporcionados com a dança. Nesse sentido, o trabalho desenvolvido entre sujeitos, obras e ambiente/contexto, o fortalecimento do

sentimento de pertença e as novas possibilidades de encontros podem ser um tipo de solução. Mas, deve vir acompanhado de uma forma de organização da ação que considera as diversidades e possibilidades de cada grupo ou sujeito, bem como, do tipo de programa de mediação artística que se quer desenvolver. Da antecipação de dificuldades e familiaridades com a linguagem, das condições de realização das ações, do tipo de intervenção durante as ações de mediação, do tipo de gestão destas ações, da relação dos espectadores com as propostas e da certeza de que nem sempre conseguiremos promover as aproximações entre todos os sujeitos/objetos.

Entretanto é importante ressaltar que do mesmo modo a potencialização das experiências estéticas acontece por conta de nossa capacidade de distinguir entre o real e o fictício que por sua vez abre espaços para o processo criativo que abriga a imaginação. Ou seja, quando compomos cenários elaborados a partir das obras ou quando dançamos junto com os dançarinos num tipo de percepção cinestésica e/ou imagética. Sendo assim, de outro modo, estamos explorando possibilidades e como tais também nem sempre depende de nós promover entrelaçamentos sensíveis e imaginativos nos outros sujeitos.

Salienta-se que nesta abordagem apresentada o entendimento de fruição parte da premissa que ela naturalmente decorre/acontece do/no entrelaçamento entre o real e o fictício. Pois,

No momento em que a atenção deixa de se focalizar no elemento, percepcionado enquanto tal, e começa a desviar-se, o elemento aparece como um tipo de significante ao qual se podem referir as mais diversas associações como sendo os seus significados, como imagens, ideias, memórias, emoções, pensamentos etc. É muito discutível se tais associações surgem de acordo com regras particulares e, portanto, de forma previsível. Assume-se antes que derivam do sujeito que percepciona, mais ou menos por acaso, mesmo que possam ser explicadas a posteriori. Parecem não estar às ordens de quem percepciona. Emergem simplesmente no acto. (FISCHER-LICHTE, 2005, p. 78)

E desse modo, existem desafios para o espectador que tenta articular a dimensão de conscientização em tempo real diante das obras juntamente com a exploração destas possibilidades imaginativas sem castrar a própria experiência, visto que;

No momento em que passa de uma para a outra, surge a ruptura, ocorre uma descontinuidade. Produz-se um estado de instabilidade, que coloca o sujeito que percepciona entre duas ordens, que o transfere para um estado intermédio, um estado de liminaridade41 . Cada mudança, cada instabilidade faz com que

1 4 Para o conceito de intermédio e de liminaridade vejam-se Arnold van Gennep, The Rites of Passage, Chicago, Chicago Univ. Press, 1960 (1.ª ed. 1909) e Victor Turner, The Ritual Process: Structure and AntiStructure, Chicago, Aldine, 1969.

a dinâmica do processo de percepção tome um outro rumo. Quanto mais frequente é a mudança, mais vezes o sujeito que percepciona começa a vaguear entre os dois mundos, entre as duas ordens de percepção. Cada vez mais toma consciência da sua inabilidade para causar, dirigir e controlar as mudanças. Pode tentar deliberadamente ajustar a sua percepção à mudança – para a ordem da presença ou para a ordem da representação. Em breve, contudo, terá consciência de que a mudança ocorre mesmo que o não queira, que acontece, que lhe acontece, que passa para um estado entre as duas ordens sem querer ou sem ser capaz de o evitar. Num momento como esse, o espectador experiencia a sua própria percepção como emergente, fora da sua vontade e do seu controlo, mas também, como realizada conscientemente (FISCHER-LICHTE, 2005, p. 78)

E, diante desta perspectiva uma possível alternativa é tentar encontrar um tipo de equilíbrio, com base em decisões exclusivamente individuais, que possibilitem outros modos de relações estéticas durante a fruição. Obviamente essa decisão requer primeiramente desejo e depois determinação e por vezes coragem para tentarmos nos desvencilhar dos padrões comportamentais que nos mantém em zonas de confortos, neste caso ‘estéticos’. Pois, tentar começar a sentir/ser de um jeito diferente, bem como refletir de modo diferente ou tentar mudar quaisquer tipos de hábitos requer dedicação e disponibilidade. Nesse sentido, a aposta nessa empreitada é determinada pela nossa habilidade de focar e persistir em algo sabendo ainda que as realidades são uma invenção da nossa imaginação, mas, que alteram nossas consciências.

Enfim, para esta investigação, as artes permitem-nos aceder a lugares desconhecidos e permitem mudanças que ultrapassam a relação consigo próprio para atuar no social, no coletivo. A arte não salva ninguém, mas com certeza as inúmeras possibilidades de encontros e reverberações, que muitas obras infinitamente contêm, podem transmutar as experiências dos sujeitos. Portanto, investigar se as ações de mediação artísticas dos festivais

potencializaram as experiências estéticas dos espectadores da dança, foi delineado e é

apresentado neste capítulo por dois micros processos que se interpenetram. Investigamos, por um lado, o quanto os programas de mediação levaram os públicos em consideração no momento de estruturação das ações. Observamos aspectos como qualidades e capacitações referentes ao mediador artístico, pormenores referentes a planejamentos e realizações das ações e questões relativas as estratégias de aproximação e hospitalidade percebíveis no contexto junto aos fruidores. Por outro lado, junto aos espectadores tentamos perceber o quanto os encontros aparentemente foram potencializados através das observações em campo, somadas as respostas dos questionários e entrevistas, conforme já indicamos em outros momentos desta dissertação.

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