• Nenhum resultado encontrado

Pré-história do estranhamento

vários conceitos Capítulo um

1.1 uma genealogia

1.1.1 Pré-história do estranhamento

Conforme temos argumentado, os estranhamentos da modernidade não podem ser considerados conceitos originais, pois o fenômeno a partir do qual são formulados está relacionado à própria cognição humana, já

6 A revisão bibliográfica apontou alguns outros estudos feitos nesse sentido, mas a maioria possui tradução apenas em alemão e russo, não acessíveis aos pesquisadores. A maior parte deles está indicada em Tihanov (2005).

reconhecido até em contextos de espiritualidade e nas mais diversas ativi- dades humanas. Nesta subseção, buscamos as raízes desse conceito na lin- guagem e na literatura, a fim de relacioná-lo à estética mais amplamente e compreender as tradições que foram incorporadas pelos modernos. Ado- tamos o termo de pré-história de Ginzburg (1998) para designar os autores, noções e conceitos que podem ter influenciado – ainda que indiretamen- te – a formulação estética do conceito de Shklovsky, reconhecendo que, embora possuam pontos em comum, os demais conceitos possuem suas especificidades, e suas próprias influências e genealogias.

Entre os exemplos apresentados por Viktor Shkovsky ao discutir so- bre o estranhamento, os mais canônicos são da prosa de Tolstói, como o conto Kholstomer cujo narrador é um cavalo que não consegue compreen- der a noção de posse dos humanos. Outros termos e exemplos literários análogos lidam com o fenômeno de algo ordinário, lugar-comum, ou fami- liar que é mostrado de maneira que se torna não-familiar, independente- mente de seu conteúdo ou movimento literário. Todavia, apesar de esta- belecerem relações com a noção de estranhamento, há notável diferença de enfoque entre os modos que o fenômeno foi teorizado por cada autor: Vários críticos modernos formularam um número de termos e frases inte- ressantes para se referir a esse método de ironia usado por Tolstói e outros escritores, antes e agora. Logo, temos tais tentativas de generalização como “a notação precisa de fenômenos sem qualquer referência ao seu significado” (Jean-Paul Sartre), “alegoria negativa” (Dmitry Chizhevsky), “percepção au- sente de apercepção” (Leon Stilman), “perspectiva por incongruência” (Ken- neth Burke), e “tornar estranho” (Ezra Pound). (STACY, 1977 pp. 2-16, t.n.)

A popularização do conceito de Shklovsky pode ter ajudado a remediar o problema de reunir diversos termos e frases para descrever esse dispositi- vo literário, difundido através dos mais diversos termos e expressões. Ao longo dessa subseção, buscamos, além de catalogar alguns desses termos, traçar essas diferenças e semelhanças entre eles a fim de traçar uma genea- logia até o ostranenie de Viktor Shklovsky.

De uma perspectiva literária, essa noção pode ser traçada até a Poéti- ca de Aristóteles (stacy, 1977), o primeiro tratado sobre teoria literária do Ocidente, em que são atribuídos à literatura seus próprios princípios. Aris- tóteles, na seção 1458a, quando discorre sobre a virtude da dicção, é par- ticularmente preciso quando defende que o estilo mais claro é aquele que “utiliza palavras não-familiares [xenikos] (...) raras, uma metáfora, um alon- gamento e qualquer coisa além do uso comum” (aristóteles, 1927, t.n.). Portanto, não é uma coincidência que Shklovsky defina que a função da lin- guagem poética seja aumentar a duração da percepção: nos seus dois princi- pais textos, ele cita a Poética e o imperativo da linguagem parecer estranha, com um aspecto estrangeiro.

Entre as tentativas de traçar a história desse dispositivo, a de Ginz- burg (1998) é uma das mais acessíveis. Ele explora essa técnica na literatu- ra em seu ensaio Estranhamento: pré-história de um procedimento literário. A primeira referência são os escritos de Marco Aurélio em II d.C., a quem interessava uma auto-educação estoica, tornando esse tipo de procedi- mento uma mudança no olhar, na percepção. Para Marco Aurélio, esse era um hábito de natureza profundamente moral a ser cultivado, uma vez que “cancelar a representação era um passo necessário para alcançar uma percepção exata das coisas, e portanto atingir a virtude” (ginzburg, 1998 p.19). Não por acaso, o ensaio começa com Marco Aurélio, uma vez que ele é fundamental para a formação e pensamento de Tolstói, o exemplo clássico do estranhamento em Shklovsky.

Uma outra incursão histórica, muito menos acessível, – citada ape- nas em Stacy (1977 pp.38-39) e em uma nota de Robinson (2008 pp. 264- 65) – é a de Dmitry Chizhevsky em um artigo de 1953, em que chama o estranhamento de “alegoria negativa”. Para Chizhevsky (apud robinson, 2008), tanto na alegoria quanto nesse dispositivo, a coisa real é substituí- da; a diferença crucial é que enquanto o propósito da alegoria é revelar o sentido real das coisas, nesse dispositivo, as coisas são mostradas em sua simples existência física, ausente de qualquer sentido. Em uma incursão histórica, Chizhevsky traça a existência da alegoria negativa desde Xe- nófanes de Colofão, do século VI a.C., e encontra exemplos em diversos pensadores gregos dos primeiros séculos d.C.. Ele afirma que foi usado

ocasionalmente por pensadores cristãos e cresceu novamente no Renas- cimento e na Reforma.

A figura de Montaigne é citada por Ginzburg (1998) como o prin- cipal exemplo da forma mais adequada assumida pelo dispositivo, em que “realidade é apresentada pelos olhos de um estrangeiro ou de uma criatura não-humana” (chizhevsky, 1953 apud robinson, 2008, t.n.). O texto de Montaigne exemplifica perfeitamente o que chamava de inge- nuidade original (naiveté originelle): índios brasileiros são levados à Fran- ça e não entendem por que adultos armados obedecem a um menino – o exército suíço ao rei da França – e como a desigualdade social é aceita pelos mais pobres.

No Iluminismo, o dispositivo floresceu e se espalhou por diversos pensadores moralistas franceses – sobretudo Voltaire e La Bruyère. Ginz- burg (1998) exemplifica que ambos o utilizaram de maneira muito similar a Montaigne, constituindo a tradição à qual Tolstói vai dar continuida- de. Chizhevsky (1953 apud robinson, 2008) aponta que Erich Auerbach, discutindo a técnica em Voltaire, também tem um termo próprio, o Scheinwerfertechnik, ou a técnica do holofote (stacy, 1977). Apesar da lon- ga linhagem explicitada por Ginzburg, Smoliarova (2006) sublinha que a participação de Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau nessa genealo- gia foi amplamente ignorada, embora ambos lidassem com o problema do signo defendendo que sua arbitrariedade “deve ser desdobrada, des- fiada, performada para retornar à sua ‘condição de imagem’” (smoliaro- va, 2006 p.28, t.n.). Uma vez que a influência de Rousseau sobre Tols- tói já tenha sido explorada em outros estudos7, ela explicita as relações de

Shklovsky com os escritos de Diderot.

Embora não tenha havido contato direto entre os principais escri- tos de Diderot e Shklovsky, é possível falar de uma semelhança tipoló- gica de ideias, conceitos e metáforas e circunstâncias históricas que os condicionam (ibid.) fazendo-os compartilhar a árvore genealógica do

7 Ela indica o estudo de Yuri Lotman cuja tradução em línguas europeias deu-se apenas em italiano em 1984: ‘‘Rousseau e la cultura russa del XVIII secolo,’’ in Da Rousseau a

estranhamento. O paralelismo de suas teorias pode estar relacionado à condição histórica de reação contra o tradicional e na mudança da concei- tuação de mimese – até então entendida pela tradição aristotélica de pen- sar em imagens (Cf. ibid.). Tanto em seus estudos fisiológicos quanto lin- guísticos, Diderot “busca provar que a emoção pode recuperar seu poder sobre o mundo apenas através do retorno ao estado arcaico da linguagem, através da recusa dos poderes reduzidos e economizados da ‘mercantili- zação’” (ibid., p.28, t.n.). Essa recusa, por sua vez, é possível através do dis- tanciamento estético que constitui o papel da linguagem e da arte em re- cuperar a vividez da sensação; uma distância “que pressupõe a alienação do objeto percebido e um alongamento no próprio processo de percep- ção” (ibid., p., t.n.). Ao contrário, o distanciamento físico é capaz de en- fraquecer as sensações e anular o lado ético da vida.

Apesar das diversas noções de estranhamento desde Aristóteles, a atribuição da linguagem como uma ferramenta para infligir esse efeito só começou a ser sistematicamente pensada com a linguística, no século XIX. Holquist e Kliger (2005) identificam um pensamento sistemático do estranhamento literário a partir da filosofia de Kant, que reposicionou a linguagem na epistemologia, reconhecendo-o como “um constituinte necessário da mente em sua atividade de pensamento; o pressuposto que governa o novo trabalho na linguagem depois de Kant é que o pensamen- to e a linguagem estão ligados através de uma simultaneidade constante” (p.616, t.n.). A ruptura que o pensamento kantiano causou foi respondida por três trajetórias dominantes: a de Heinrich von Kleist, que visa a apro- fundar o estranhamento; a do idealismo alemão, que inclui Johann Got- tlieb Fichte, Friedrich Schelling e Friedrich Hegel; e a linguística estrutu- ralista de Wilhelm Von Humboldt. (Cf. holquist; kliger, 2005)

Os teóricos do romantismo alemão e inglês e do idealismo alemão es- tão muito próximos do estranhamento, estreitamente ligados à crítica dialética de Hegel do conceito de alienação em Rousseau e à ironia ro- mântica de Friedrich Schlegel (robinson, 2008), de modo que Shklovsky pode ser considerado um formalista hegeliano “interessado especifica- mente no impacto psicológico da forma na (re)construção fenomeno- lógica e/ou intelectual do mundo material” (p.ix, t.n.). Embora aspectos

muito distintos da filosofia hegeliana permeiem a alienação marxista e o estranhamento de Shklovsky, eles compartilham conceitos e noções fun- damentais: assim como o trabalho é fundamental para a conceituação da alienação, a integração da consciência com o mundo através da relação dialética ilumina consideravelmente o pensamento de Shklovsky. Essas relações serão discutidas em 1.3.

A ideia básica consiste no habitual tornar-se psicologicamente anesté- sico e atribui à estética a função de causar um choque para quebrar a con- tinuidade desse estado mental do leitor. De fato, em um ensaio de 1966, A renovação de um conceito, Shklovsky se refere explicitamente ao conceito de Befremdung do romântico alemão Novalis, que definiu a poética românti- ca como “a arte do estranhamento prazeroso, de fazer um objeto estra- nho, mas ainda assim familiar e atrativo” (apud robinson, 2008 p.79, t.n.). van de Ven (2010) endossa Robinson (2008) apontando que, contempo- râneos do fim do século XIX, os poetas românticos ingleses Samuel Tay- lor Coleridge e Percy Shelley identificavam esse fenômeno na literatura. O primeiro defende que a própria metrificação dá nova vida à linguagem, aumentando a vivacidade e a susceptibilidade dos sentimentos e da aten- ção, conferindo à literatura um efeito cognitivo. Já o segundo, defendia que a linguagem poética retira a lente da familiaridade que impede o en- canto da existência.

A resposta de Wilhelm von Humboldt à filosofia kantiana evoluiu a questão de como o sujeito pode ser caracterizado por uma divisão e ser capaz de “negociar o mundo precisamente pela síntese de conceitos e intuições” (holquist; kliger, 2005 p.621), tornando a linguagem uma constituinte do próprio pensamento, unidos em simultaneidade. Ele “defendeu a lin- guagem não apenas como representação da experiência para a mente, mas a atividade que antes de tudo possibilita o acesso da mente para a expe- riência” (holquist; kliger, 2005 p.623, t.n.). Essa mudança teve impli- cações profundas nos estudos das complexas dinâmicas da alienação na linguagem e as diversas propostas de negociá-la em diferentes versões de literaridade através de Viktor Shklovsky, Roman Jakobson, Sergej Kar- cevskij e Mikhail Bakhtin (Cf. holquist; kliger, 2005).

Por fim, é importante citar ainda a aproximação do estranhamen- to com a teoria de Henri Bergson, um tanto reconhecida (Cf. curtis, 1976; smoliarova, 2006). Para Smoliarova (2006) ele seria o mediador entre Diderot e Shklovsky, uma vez que não apenas a maioria das opo- sições de Bergson são afins às do Formalismo, como também suas pro- posições sobre o cômico ligam a ideia abstrata de automatismo à ima- gem do autômato (homme-automate) de Diderot. Curtis (1976) faz uma investigação minuciosa das aproximações entre o Formalismo russo e as proposições bergsonianas, defendendo a influência de um “para- digma bergsoniano” em vez de uma referência direta ao autor, uma vez que Shklovsky provavelmente apenas conheceu essas ideias a par- tir dos demais Formalistas.

Essa longa genealogia nem sempre possui relações causais entre si. Todavia, isso não deve inviabilizar nosso esforço de encontrar similitudes e diferenças entre eles, uma vez que ao colocá-los em um mesmo panora- ma, suas especificidades emergem. Desde o início do capítulo, mantive- mos um movimento gradual de especificação do fenômeno cognitivo em geral para a sua utilização no campo da estética através de conceitos em específico – e essa tendência se mantém durante as páginas que seguem. Depois de entendermos o contexto moderno que assistiu à consolidação do estranhamento como modelo estético, aprofundaremos em como a alienação e o inquietante se desdobram para a estética na subseção 1.1.2. Em seguida, discutiremos o estranhamento estético de Shklovsky, con- ceito central da nossa pesquisa, a fim de explicitar as leituras e interpreta- ções que adotaremos. Por fim, discutiremos os conceitos entre si, em suas similaridades e diferenças, na seção 1.3.