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PARTE I: LOCALIZAÇÕES NECESSÁRIAS

I. Localizações necessárias

2. Da escola ao sistema educativo cubano

2.3. O prédio habitado pela escola

“Em Cuba tudo é modesto: A casa que abriga, a roupa que veste, A caneta que escreve, O hospital que acolhe e cura, O prato que alimenta, A escola que pesquisa e ensina, O livro que ilumina; Mas os filhos dos trabalhadores são doutores.” Adalberto Monteiro

A estética da Lidia Doce não é, por assim dizer, linda. O ‘mundo da rua’ e o ‘mundo da escola’ são demarcados não por um muro, mas por um alambrado de aproximadamente 1,80 metros de altura que garante total visibilidade. O portão, de duas folhas de ferro galvanizado e alambrado, quando fechado, suas duas folhas tortas se juntam com um arame. Na parte traseira da escola, onde devia estar um pequeno portão há uma abertura que, junto com vários buracos no alambrado, garantem a ocupação das quadras esportivas quando a escola ‘fecha’.

O prédio, construído em 1977 com tecnologia Girón, tem quatro andares. A estrutura é de concreto armado com carpintaria de zinco galvanizado e revestido. Quem chega é recebido pelo comando da escola: a sala da administração, à esquerda fica a secretaria e logo a sala da Guía base54 e a diretoria. A recepção

da escola é uma mesa, como as que existem nas salas de aula, e uma cadeira. Na mesa um fone fixo e um livro, onde trabalhadoras/es assinam quando entram e saem da escola. As paredes precisam de tinta, mas investimentos na escola são aprovados na Secretaria Municipal de Educação ou na Prefeitura.

54 Professor ou professora que coordena o trabalho da associação de estudantes.

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Há também uma escada até o quarto andar e a seguir um corredor com salas aos lados. Antes de iniciar as salas, indo na contramão da diretoria, fica o refeitório, onde alunas/os e todas/os as/os trabalhadoras/es pegam a merenda55 que substitui o almoço. Na continuação, a biblioteca da escola e a sala de professoras/es de Educação Física. Detrás da escada, de cada lado, banheiros, dois em cada andar. Um corredor leva até outra escada, que também dá acesso ao último andar da escola. Em ambos os lados do corredor tem salas. À direita, um laboratório de Física e outro de Biologia. A seguir uma sala de informática. À

55 Quando iniciou, em 2001, o ensino secundário em tempo integral, foram adaptados ambientes nas escolas para virarem refeitórios. Como almoço, oferece-se um pão com algum recheio que é diferente cada dia da semana e um copo de iogurte de soja. Atualmente, a refeição é mantida só para trabalhadoras/es em geral e alguns alunos que moram muito longe para ir até sua casa para almoçar.

Ilustração 7 - Visual dos fundos da Lidia Doce.

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esquerda, salas de aula. O corredor é escuro. O chão é de lajota que assemelha a granito. Todas as portas estão danificadas. Nenhuma tem a fechadura original funcionando. Em todas são usados cadeados.

No segundo andar, encima das salas administrativas, há salas de aulas. Seguindo o corredor, à direita, uma sacada grande. Logo salas nos dois lados. Algumas são salas de professoras/es: a sala da coordenadora de 9º grau56; a sala das/os professoras/es de 9º grau e a sala das/os professoras/es de Física. O terceiro andar se diferencia do segundo porque sua sacada é menor. Além das salas de aulas, localizam-se ali a sala da coordenação, a sala das/os professoras/es de 7º grau e a sala de professoras/es de Inglês.

56 Na verdade, o andar é ‘fixo’ para um coletivo de professores. Esse coletivo vai receber os estudantes em 7º grau e vão junto até 9º. Cada turma passa três anos no mesmo andar. Na segunda fase de minha pesquisa, de setembro de 2015 até janeiro de 2016, as turmas se localizavam como descrito acima.

Ilustração 8 - Visual frontal da escola Lidia Doce.

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O quarto andar tem menos salas e é o mais iluminado. Além das cinco salas de aulas, a sala da coordenadora do grau e das/os professoras/es completam o ambiente. Em total, vinte e uma salas de aulas acolhem ao alunado naquele prédio. A capacidade das salas não é homogênea. A menor recebe 30 estudantes. As maiores, 44. Todas com três fileiras de mesas (ver Ilustração 7), cada uma com duas cadeiras. As mesas têm uma estrutura metálica que suporta outra de madeira aglomerada produzida a partir de bagaço de cana-de-açúcar e revestida de melamina. As cadeiras, por sua vez, têm também uma estrutura de metal que suporta uma estrutura plástica. Na frente, um quadro verde. Do lado do quadro, uma televisão de tubo com tela de 29 polegadas, usada para as aulas que são televisionadas. No fundo, murais informativos. Algumas salas têm enfeites e ventiladores comprados pelos pais e mães.

Ilustração 9 - Organização das salas de aula

Fonte: Desenho realizado pelo autor

Como apontado por Dayrell (2001), a arquitetura desvenda uma concepção de educação, expressada tanto na definição das funções a priori, e a ocupação de cada local, quanto sua interferência na circulação das pessoas. A disposição de corredores, salas em geral e escadas, estariam desenhadas para garantir o fluxo rápido das pessoas e o disciplinamento. Já a organização das salas de aulas, forma predominante em todas as escolas cubanas, revela um relacionamento hierárquico entre quem sabe e quem não sabe. Esta organização direciona a atenção dos alunos ao/à professor/a ou ao quadro, e desconsidera as relações entre alunas/os.

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É particularmente instigante como os sistemas de ensino, os mais visíveis, aliás, são herdeiros do pressuposto de Durkheim (1965), sob o qual se compreende a educação como uma relação entre uma geração despreparada, as/os alunas/os, que têm de olhar o tempo todo para frente, para quem representa uma outra geração, as/os professoras/es, quem detém o saber. A relação privilegiada, uma relação de poder hierárquico, é entre professor/a e alunas/os. Relações entre alunas/os só são possíveis quando autorizadas pelas/os professoras/es. É o pressuposto que subsidia uma organização da sala onde as/os alunas/os estão de costas para as/os outras/os alunas/os, ou ao lado. Nunca numa relação face a face.

Mas o prédio é habitado por uma escola. Uma instituição que diz a respeito das macroestruturas que a determinam, das leis, resoluções, concepções que a configuram. Mas diz a respeito, sobretudo, ao dinamismo que impõem os sujeitos concretos que atuam nela e que constroem esse espaço sociocultural que chamamos de escola (DAYRELL, 2001). Como eu já disse, o prédio lembra outras escolas da cidade, de outras cidades, de qualquer canto de Cuba57. Mas, as relações que nesta escola são produzidas, no sentido em que Strathern (1999) discute relações como sendo complexas, multivalentes, e não simplesmente como ligadas a atividades positivas, são relações que a fazem uma escola única nas suas particularidades.

2.4. A escola como organograma

A cada tentativa de descrever a escola Lidia Doce, ou de descrever alguma das particularidades da escola, me defronto com outras complexidades. É comum representar as instituições na forma de organogramas, mesmo que necessário seja explicar o dinamismo que não cabe neles. No entanto, para melhor traduzir a escola e o sistema educativo que a determina e que através dela se expressa, desenharei um organograma para ajudar na compreensão do que é uma escola de ensino secundário em Cuba e como é que ela funciona.

A instituição escolar cubana, aliás, o nomeado Sistema Nacional de Educação, é configurado numa hierarquia vertical descendente. A sua universalidade vai junto com seu caráter não

57 No Anexo B apresento fotos de três escolas de ensino secundário de outras províncias cubanas.

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diferenciado a partir das particularidades de cada região do país. O planejamento do trabalho é normalizado pela Resolución

200/2014 - Reglamento para el trabajo metodológico del Ministerio de Educación (MINED, 2014b). No artigo Nº 4 desta resolução se

estabelece:

En el sistema de trabajo en cada nivel de dirección se planifican los espacios y momentos para el desarrollo de las actividades metodológicas previstas, tanto para la preparación interna de la estructura de dirección de que se trate como del nivel de dirección subordinado (MINED, 2014b, p.2). Eis que a configuração do Sistema Nacional de Educação vai desenhando relações de poder verticais onde quem está num nível hierárquico superior detém, ao que parece, os saberes/conhecimentos necessários para aperfeiçoar aos que estão num nível hierárquico inferior. Assim, o artigo Nº 1 da

Resolución 200/2014 estipula:

El trabajo metodológico es el sistema de actividades que de forma permanente y sistemática se diseña y ejecuta por los cuadros de dirección, funcionarios y los docentes en los diferentes niveles y tipos de Educación para elevar la preparación político-ideológica, pedagógico-metodológica y científica-técnica de los funcionarios en diferentes niveles, los docentes graduados y en formación, mediante las direcciones docente metodológica y científico metodológica, a fin de ponerlos en condiciones de dirigir eficientemente el proceso educativo. (MINED, 2014b, p.1, grifos meus).

Desta forma, os fluxos do organograma estariam sempre descendo, sempre legitimando as hierarquias verticais. Estão sempre validando, quiçá numa variante da noção durkheimiana de educação, que as/os que ocupam níveis hierárquicos superiores realizam ações sobre as/os que ficam em níveis abaixo, as/os que não se encontram suficientemente preparados para sua atuação.

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Gráfico 14 - Organograma Geral da escola Lidia Doce

Fonte: Desenhado pelo autor a partir das entrevistas realizadas durante o trabalho de campo58

Mas a escola, além do estabelecido, além de representações, vira espaço de atuação, de conflitos, de criatividades e também de resistências, como pretendo mostrar mais para frente. Há uma dinâmica que vai realizando-se aos poucos, no cotidiano, nas relações, que se contextualiza em cada turma, em cada situação, em cada prática pedagógica. E as pessoas que atuam lá conseguem vive-la de forma particular. Fazem com que a escola de ensino secundário Lidia Doce se constituía num espaço onde se produz uma forma particular de viver o sistema educativo cubano, uma forma particular se criar uma trajetória.

58 A escola não tinha um organograma. Este foi construído por mim para os fins deste trabalho.

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