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1. Desenvolvimento histórico dos direitos da mulher

1.6 Precedentes do desenvolvimento dos direitos humanos

Convém relembrar, antes da descrição das convenções internacionais e regionais sobre a mulher, os precedentes históricos e filosóficos dos direitos humanos que constituem o cerne do direito internacional.

Norberto Bobbio22 e Hannah Arendt23 ressaltam, reiteradamente, a concepção dos di- reitos humanos como “um construído”, ou seja, um processo em constante evolução e não um dado pronto e acabado. Trata-se de um campo no qual a luta tem por finalidade a construção e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Por meio da Declaração Universal de 1948, confirmada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, um novo paradigma foi estabelecido pelo direito: a dignidade da pessoa. A necessidade de amenizar o positivismo legalista e de introduzir valores éticos universais, capazes de humanizar e revolucionar o mun- do jurídico, foi inaugurada na ordem internacional com a Declaração Universal de Direitos Humanos24 de 1948.

Após a Segunda Guerra Mundial e o conhecimento das atrocidades cometidas durante o nazismo e fascismo — período em que dezoito milhões de pessoas25 foram enviadas para campos de concentração, resultando na morte de onze milhões —, o poder do Estado sobre o

22 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 32. 23 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: [s. l.], 1979.

cidadão passou a ser fortemente questionado. Sob o argumento da superioridade da raça ariana e acobertado pelo estrito positivismo, o genocídio marcou a história da Humanidade e exigiu uma profunda alteração nos paradigmas adotados pelo direito.

Norberto Bobbio26 resume com precisão o caminho percorrido pelos direitos humanos:

[...] os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora a Declara- ção de Direitos), para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos po- sitivos universais.

Assim, surgiu uma nova concepção de direitos que não mais se restringe à proteção apenas no âmbito nacional, pois é legítimo e imprescindível o interesse internacional na tutela de direitos humanos.

As conseqüências dessa internacionalização dos direitos humanos são muitas, poden- do-se citar dentre elas a revisão da soberania absoluta dos Estados uma vez admitidas inter- venções no plano nacional, bem como a idéia de que os direitos humanos devem ser protegi- dos internacionalmente, pois todas as pessoas são reconhecidas como sujeitos de direitos. Flávia Piovesan27 aponta essa revisão da soberania do Estado como processo de relativização, tendo em vista a admissão no plano nacional de intervenções internacionais quando favoráveis aos direitos fundamentais. Segundo a autora, ocorreu uma transição da concepção “hobbesia- na” de soberania para a “kantiana”, ou seja, a idéia de soberania centrada no Estado desenvol- veu-se para uma soberania relacionada ao conceito de cidadania universal.

A Declaração Universal de 1948 acolheu a idéia kantiana de dignidade da pessoa hu- mana como valor primeiro a ser observado pelos ordenamentos jurídicos. Mas, afinal, o que é dignidade humana?

25 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais

europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 8.

26 BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 30. 27 PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 12.

A dignidade remete a uma carga axiológica identificada à primeira vista. Numa rápida análise, o sentido de dignidade está na relação entre os homens e na relação do homem com ele mesmo. A primeira traz à tona a necessidade de reconhecimento pelo homem da dignidade de seu semelhante: respeitabilidade. A segunda, o reconhecimento da dignidade própria como inerente à condição humana.

A dignidade, como característica intrínseca ao ser humano, surgiu no pensamento cristão, no Antigo Testamento, ao se conceber a criação do homem à imagem e semelhança de Deus. O sentido da expressão “pessoa humana”, pelos cristãos construída, passaria pela histó- ria trazendo até os dias atuais a firme concepção de que o homem se diferencia dos demais seres simplesmente por sua condição humana. Tomás de Aquino compreende o homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus, dotado de autodeterminação e livre vontade, apontando aí a dignidade humana. A capacidade de liberdade em suas escolhas éticas também é pela primeira vez mencionada como característica humana.

Essa idéia atingiu o ápice na filosofia de Immanuel Kant quando este concluiu que o ser humano é o fim de todas as coisas e não pode ser utilizado como meio. A concepção kanti- ana de dignidade parte da autonomia ética da pessoa, que, por meio da razão, fará suas própri- as escolhas. Kant concebe o valor humano como “acima de todo preço, e, portanto, não per- mite equivalente”28. Esse autor diferencia o ser humano das coisas, compreendidas como os demais seres, passíveis de substituição por outros equivalentes, sem prejuízo. A concepção de dignidade da pessoa humana contraposta à idéia de coisas substituíveis é a origem do pensa- mento aceito pelo “mundo jurídico” para a proteção dos direitos fundamentais.

Portanto, mesmo sob uma aparente “roupagem do positivismo jurídico”29, os tratados internacionais incorporam a dignidade humana como valor a ser respeitado incondicional- mente. É uma resposta à crise do positivismo severo, que vinha vigorando e admitindo barbá- ries contra a humanidade como “legitimadas” pelo direito.

28 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. 4.

ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 33.

29 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos: o princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição brasileira

Observa-se no direito constitucional contemporâneo ocidental a elaboração de Cartas abertas a princípios e valores, com destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, esse sistema de direito internacional, que delimita o poder e protege os direitos funda- mentais do homem, começa a traçar linhas para um ordenamento jurídico internacional, cujo núcleo é o ser humano e suas condições mínimas de vida.

A partir da Declaração Universal de 1948 teve início o desenvolvimento do direito in- ternacional e dos direitos humanos. No plano axiológico, concedeu-se unidade a esse campo do direito, prevendo a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência como caracterís- ticas dos direitos humanos.

A universalidade significa o amplo reconhecimento de todos os seres humanos como sujeitos de direitos pela simples condição humana, por sua qualidade de ser moral. A indivisi- bilidade demonstra a impossibilidade de separação dos direitos civis e políticos dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais; é a relação de interdependência entre todos os direitos, na qual a violação de um deles afetará todos os demais. Sob essa ótica iniciou-se o desenvolvimento dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.