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Preconceito na pós-graduação stricto sensu: o caso de uma estudante surda em curso

No documento EDUCAÇÃO DO SURDO EM DEBATE UTFPR (páginas 51-67)

de doutorado

Tânia Maria Baibich

1 Introdução

Este estudo analisa manifestações do fenômeno do preconceito no ensino superior relativamente a um Curso de Doutorado no âmbito de uma Universidade Pública brasileira e segue na esteira de outros trabalhos sobre o preconceito na esco- la desenvolvidos nos últimos 12 anos e, especificamente no que tange à Pedagogia Universitária, a duas pesquisas trabalhadas em outros momentos, relativas, recipro- camente, a alunos ingressados por programa de aproveitamento de vagas ociosas na UFPR e a alunos indígenas ingressados por programa de vagas suplementares nas instituições públicas estaduais paranaenses (BAIBICH-FARIA1; ARCOVERDE, 2006; AMARAL; BAIBICH, 2013). O foco do presente trabalho é no preconceito contra uma então estudante que ensurdeceu adulta e que cursou o Doutorado stricto

sensu em instituição pública de ensino na qual, posteriormente, fez também estágio

pós-doutoral, ingressando, em seguida, por concurso público, em uma universidade também pública, como docente da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

A presente análise, cujas pretensão e possibilidade de extensão e profundi- dade são restritas pelos limites de espaço, se baseia em excertos autobiográficos da aluna/professora – sejam os produzidos no período de seu doutoramento, publicados em sua tese, sejam os obtidos em função deste estudo, mediante entrevista online. Devido ao fato de o ensurdecimento da mesma ter ocorrido já na fase adulta de sua vida, conforme dito anteriormente, de acordo com seu próprio relato, esta perdera o lugar conquistado como sujeito no mundo dos ouvintes2, profissionalmente relativo à condição de professora universitária, e, após muitas tentativas para recuperação do mesmo, junto às instituições de nível superior de ensino cujas mantenedoras eram de natureza privada, com infrutíferos resultados.

Apesar de possuir currículo bastante bom, buscara na formação da pós-gra- duação stricto sensu em universidade pública, ao nível de Doutorado, ferramentas 1 Entre 2004 e 2012, Tania Maria Baibich assinava Tânia Maria Baibich-Faria.

para invenção de sua nova identidade, bem como para o combate ao preconceito que conhecera e que vivencia anímica e visceralmente até hoje.

Pretendo, portanto, mediante o texto produzido pelo sujeito colaborador da pesquisa, cujo caso aqui estudo, seja quando na condição de aluna do Doutorado, seja atualmente, mediante entrevista, fazendo uso de suas próprias palavras, identificar e analisar “a sabedoria [... que] pode revelar-se nas histórias dos professores, que nos permitem partilhar o conhecimento e a emoção” (BEN-PERETZ, 1995, p. 201).

A intenção de produzir outro conhecimento para compreender os professores (estudantes) como pessoas e profissionais tem encontrado autores tais como Nóvoa (1995), Huberman (1995), Goodson (1995), Isaia (2004, 2006, 2007a, 2007b), Bol- zan (2002, 2004, 2005), Kramer e Souza (2003); Cunha (2005), apenas para citar alguns que vêm trabalhando a partir de um enfoque teórico-metodológico que pode oferecer um novo campo de possibilidades interpretativas para a pesquisa educacio- nal – as narrativas/entrevistas autobiográficas.

Como no dizer de Kramer, Jobim e Souza (2003, p. 21), busco utilizar o es- tudo de uma história de vida que “no interior de um horizonte histórico dado [...] é também memória coletiva da cotidianidade”. Faço-o, portanto, para que a Escola não aceite o lugar de plateia e lute, corajosa e permanentemente, na direção da isonomia de direitos, dado que acredito, como Betthelheim (1980, p. 17), psicanalista e sobre- vivente do Holocausto, ao referir-se a Freud, que “só lutando corajosamente contra o que parecem probabilidades sobrepujantes o homem pode ter sucesso em extrair um sentido de sua existência”.

Considerando que a entrevistada é ela mesma estudiosa do tema do precon- ceito, além de especialista no tema do ensino e aprendizagem de sujeitos surdos e da Libras, optei pelo viés metodológico de discutir a presente análise com a mesma, antes de sua publicação. Fiz isto como estratégia de trabalho, no intuito de enriquecer seu caráter documental para futuros pesquisadores, professores e interessados em geral. Tomei a ideia metodológica de empréstimo de Bragança (2009) quando, em sua tese, com professores no Brasil e em Portugal, posteriormente discute, com os próprios entrevistados, a análise que fez das entrevistas, aprofundando e/ou estenden- do a compreensão dos fenômenos.

Apenas para fins didáticos utilizarei, já no terreno da análise, algumas das categorias definidas a partir de 11 anos de pesquisas sobre o preconceito na escola (2001-2012), recentemente publicadas em formato de livro intitulado Vocabulário de

conceitos e palavras-chave (BAIBICH, 2012).

Tal decisão metodológica corrobora o entendimento, já manifestado por mim em inúmeras situações, de que há muitas questões sobre o preconceito que indepen- dem do tipo de grupo ao qual pertence a vítima, enquanto outras são específicas deste

ou daquele grupo. Assim, identificarei na história da estudante/professora questões afetas às distintas minorias vitimadas pelo preconceito, como, também, aquelas que são da especificidade do preconceito contra o sujeito surdo.

Tal como nos contos de fadas convencionais, a presente história poderia ser resumida assim: era uma vez, em um reino muito distante, logo aqui mesmo, há mui- tos/poucos anos atrás, uma professora universitária que ficara surda, perdera o em- prego e seu lugar no mundo e desejava, intensamente, reconquistar o que considerava seu por direito, surda ou não: sua identidade. Enfrentou monstros e tempestades de preconceito, mas fez-se a primeira pós-doutora surda do país e, via concurso público, tornou-se professora universitária novamente.

O que nos conta quem nos conta, entretanto, ainda que seja uma odisseia cujo retorno a Ítaca também acontece, não é um conto de fadas, é a história de uma sobrevivente. Passo, sem mais delongas, a palavra à protagonista que, no texto, falará em itálico, distinguindo-se assim do meu dizer, pois busco lê-la teorizando sobre o fado que nos canta.

Tendo até os trinta e cinco anos me considerado uma ouvinte e, a partir dali, desde há seis anos, me tornado surda3, vivo a duplicidade de culturas, bem

como a condição de estrangeiridade em ambas.

O sentimento de estrangeiridade é manifestado como vivência crucial pelas vítimas do preconceito em geral, dado que a “construção identitária [... depende um- bilicalmente de como] cada grupo ou indivíduo percebe a si próprio, a partir da per- cepção que tem de como o outro grupo ou indivíduo o percebe; não é, desta feita, um dado biológico, mas uma construção histórica, social e cultural” (BAIBICH-FARIA; SOARES, 2010, p. 29; grifo da autora).

No caso dos surdos com identidades híbridas, que nasceram ouvintes e se tornaram surdos, tal como no caso analisado, a peculiaridade configura-se como uma

zona de fronteira, [de] duplicidade de culturas, [definidora de uma] condi- ção de estrangeiridade em ambas. Isto é: para os surdos, ao mesmo tempo em que sou surda, merecendo o lugar de pertencimento, sou uma ex-ouvin- te, com domínio da dupla pertença; para os ouvintes, ao mesmo tempo em que sou surda, causo ‘estranhamento’ por ser uma ex-ouvinte e ter domínio total da Língua Portuguesa oral e escrita e de ambas as culturas: ouvinte e surda (grifo da entrevistada).

3 “O meu processo de ensurdecimento provavelmente, conforme diagnóstico a posteriori, iniciara já no período de minha primeira gestação, sendo que, contudo, só o percebi no decorrer da segunda gestação, devido às per- manentes queixas de desatenção em relação às falas orais, de acordo com algumas pessoas, e à presença de um zumbido. Inicialmente foi diagnosticada surdez moderada bilateral neurosensorial e, até o momento presente, tenho diagnosticada surdez severa bilateral neurosensorial atribuída à Otosclerose. A referência de classificação da perda auditiva quanto ao grau utilizada é a definida pelo Decreto 3.298 de 20/12/99 em seu art. 4: a) de 25 a 40 decibéis (db) –surdez leve; b) de 41 a 55db – surdez moderada; c) de 56 a 70 db – surdez acentuada; d) de 71 a 90 db – surdez severa; e) acima de 91 db – surdez profunda (BRASIL, 1999)”.

Também, à diferença das vítimas que pertencem ao grupo estigmatizado des- de sempre, o surdo que perde a audição na fase adulta vivencia um injusto e cruel pro- cesso de sequestro identitário, que pode ou não ser temporária ou permanentemente assimilado por si, exemplificado, logo abaixo, pela aluna/professora na seguinte fala: [...] após iniciar o processo de ensurdecimento, o que era óbvio rapidamen- te deixou de sê-lo, de modo que o espelho pelo qual me via e que percebia ser plenamente aceitável pelo outro, da professora [universitária] que sem- pre fui, fora estilhaçado. Perdi a imagem de professora diante do outro, e inicialmente também diante de mim, para receber, como um carimbo ou uma colagem, outra imagem que não reconhecia: a da deficiente auditiva (grifo da autora).

O sequestro de direitos, tal como “acordar uma barata”, parodiando Kafka em

A metamorfose, se faz possível mediante a

vigência cruel de um padrão social rígido de ‘normalidade’ versus ‘anor- malidade’, de modo que, ao tornar-me surda, tudo o que era, o que fazia e o

que tinha conquistado deixou de ser meu por direito aos olhos do outro, [...] Em decorrência dos preconceitos, enfrentei imensa dificuldade para exer- cer minha profissão de professora universitária, independente do currículo e experiência que tinha na função, de modo que precisei contar com a bolsa

de doutorado e de pós-doc [cabe sublinhar que há uma inevitável baixa de

padrão econômico decorrente do fato e, para quem sustenta família, surgem várias dificuldades para mais além das já citadas] para conseguir continuar a estudar, vindo a reconquistar a minha posição de professora de ensino superior, via concurso publico, para a disciplina da Libras [...], somente no ano de 2012 (grifos da entrevistada).

2 Opção pelo Doutorado: resistência e resiliência

Como provavelmente deve ocorrer na maciça maioria dos casos, também nes- te o “diagnóstico médico [...] o rótulo de deficiência auditiva [...] somado às inúme-

ras situações de preconceito” foi assimilado de princípio como verdade.

Como no dizer da entrevistada:

Esta forma como muitos de nós surdos descobrimos a surdez, por meio de exames audiológicos e imersos nos discursos clínico-terapêuticos, cons- titui um dos fatores que contribuem para a aceitação do rótulo estigma- tizante de ser deficiente. A pressão do poder das ciências médicas, como regimes de verdade (FOUCAULT, 2006) que vão ao encontro do tipo de representação social dominante, que também identifica a surdez como uma condição de inferioridade e de incapacidade, faz com que a maneira como somos percebidos e narrados nos leve também a nos percebermos e nos narrarmos como deficientes.

A não conformidade com o rótulo de deficiência de aprendizagem, banalmen- te vinculado ao da surdez, agregando a sua insurgência às medidas de uma tecnologia

normatizadora, cuja função é a de recuperar o corpo danificado, promovendo assim, para o sujeito deficiente, uma suposta equiparação de oportunidades, fez com que

a professora mergulhasse no mundo dos surdos, teórica e concretamente, de forma como ela mesma diz, e a desejar, mediante a edificação de uma identidade surda, en- frentar com conhecimento conceitual e orgânico os preconceitos imputados ao povo surdo, do qual já passava a sentir-se parte. O orgulho da pertença, sustentado pelo conhecimento, tornou-se, portanto, peça-chave para a luta que viria a travar, agora em outro nível, e cujo investimento do ponto de vista pessoal sequer poderia ser ava- liado naquele então (grifo da autora).

Como referi acima, aliada à resistência ao caminho esperado, também a resi- liência parece ter emprestado condições inequívocas de luta. Situações anteriores de dificuldades na vida, que não cabem aqui explicitar, e seus enfrentamentos, devem ter conferido à professora, a um só tempo, tanto uma postura corajosa e permanente de luta contra o imposto socialmente quanto a condição de resiliência emocional.

O termo resiliência, emprestado da Física, refere-se às características que possuem alguns materiais de retornar ao seu estado natural após sofrer algum dano. Em ciências humanas, esta característica é observada e pode ser definida como a capacidade dos sujeitos de afrontar adversidades, superá-las e ainda sair das mesmas fortalecidos, criando novas alternativas vitais.

Assim, dirigiu-se ao concurso para o ingresso no Doutorado, concurso alta- mente competitivo, com prévia preparação e confiança em si e na instituição:

Eu fui confiante de que a UFPR, pelo que conhecia das produções vincu- ladas à mesma, não me eliminaria por preconceito. Claro que sabia que a concorrência típica nestes processos era imensa, mas estava convicta de que estava preparada para entrar no doutorado. Minha preparação ante- rior tinha sido imensa, e como já tinha me desfeito da imagem de deficiente que haviam me presenteado, fui confiante de que tinha plenas condições de passar.

É preciso sublinhar neste momento duas questões fundamentais, uma de ordem pessoal e outra de confiabilidade institucional: a primeira refere-se à autoes- tima recuperada pelo sujeito, a despeito da conspiração social em sentido inverso; provavelmente, como disse acima, devido ao fato de o sujeito contar com condições emocionais de resiliência próprias e também pelo fato de ser detentora de domí- nio da cultura de quem não é surdo. Assim, se pensarmos em sujeitos surdos desde sempre e malformados nos níveis anteriores do ensino, como demonstram estudos contemporâneos, os da própria entrevistada inclusive, não seria comum (para não dizer possível) o grau de confiança por ela demonstrado para e quando concursou. A segunda questão é da ordem da confiabilidade socialmente conferida às universi- dades públicas. Assim, a confiança em relação à seriedade da seleção, como sendo

fundada em critérios de meritocracia, destituída de preconceitos de toda natureza, foi fator estimulador da possibilidade de concorrer na condição de isonomia de direitos.

3 O curso de doutorado: uma inclusão excludente?

Várias seriam as situações passíveis de análise com referência ao tipo de in- clusão que efetivamente oferece a universidade, como parte que é da sociedade. No entanto, por questões de espaço, tratarei de quatro: uma que conta o primeiro mergu- lho na realidade, outra que desenha o entendimento subjacente que a instituição tem do sujeito surdo, distintamente do que usa em seu discurso, ainda que de forma não consciente ou intencional, uma terceira que corrobora a teoria do estigma da falta ou diminuição de inteligência atribuída aos deficientes, e uma quarta que analisa o papel do intérprete para a efetivação do curso do estudante surdo.

4 Primeira aula: o que é cultura?

À primeira aula de uma disciplina do curso, no primeiro semestre de 2009, ainda sem intérprete em Libras, compareci. Quando a professora chegou, es- tranhei a forma como ela começou a aula como se desconhecesse a presença de uma aluna surda, visto que eu já havia sido – na primeira reunião com todos os alunos do Programa – apresentada para a mesma por minha orien- tadora que, além disso, havia enviado aos professores da linha de pesquisa à qual meu projeto estava vinculado um elogiável e-mail [relativo] à minha pessoa, solicitando apoio para o processo da minha inclusão.

No entanto, esta professora entrou e começou a aula falando sem parar, movimentando-se, escrevendo no quadro enquanto falava de costas para os alunos, sem sequer se preocupar em reorganizar o espaço da sala de aula, em forma circular, para que pudesse melhorar a minha participação. Concluí, obviamente, que ela só poderia ter esquecido o fato de que havia em sala de aula uma aluna surda e, para não constrangê-la, achei melhor esperar o momento da apresentação dos alunos para me apresentar novamente. Contudo, esta professora falou até o intervalo e ao retornar sentou-se e per- guntou algo. Apesar de estar sentada exatamente na primeira fileira, na sua frente, não consegui entender, visto que a mesma apresenta uma forma articu- latória de se expressar pouco clara, com pouca movimentação labial, além de não fazer contato visual direto com seus lábios em movimento, dado que falava olhando para baixo e que a sala possui uma acústica terrível, que tornava com- pletamente disfuncional minha prótese auditiva, em momento no qual eu já me encontrava exaurida na tentativa de entender o que era falado. Percebia que ela falava alguma coisa, mas de fato não fazia ideia sobre o que poderia ser. De repente, observei visualmente um burburinho entre os colegas, uma movimenta-

ção como se procurassem alguém. Ao analisar a cena, concluí que a professora, que olhava uma folha que identifiquei como a que havia passado anteriormente como a lista de presença, e que, portanto, só poderia estar chamando alguém, e que esta pessoa deveria ser eu. Perguntei-lhe:

– ‘Você falou algum nome? – Chamou alguém?’

De forma extremamente irônica, ela respondeu repetindo meu nome e sobre- nome, pausadamente. Então lhe respondi:

– ‘Sou eu.’

Percebi um disfarçado riso coletivo, inclusive da professora, como se todos achassem graça naquela que deveria ser a eleita como a alienada do ano, que dorme em sala de aula. Então informei para todos:

– ‘Desculpe, mas como poderia imaginar que estava sendo chamada, visto que sou surda?’

Todos ficaram extremamente constrangidos. Senti o peso de um silêncio re- pentino.

A professora, no lugar de desculpar-se, fez outra pergunta, a qual também não foi compreendida. Por tal, solicitei a ela que a repetisse. Somente na segunda vez, entendi que ela queria saber o que era cultura.

Naquele momento, extremamente abalada pela situação constrangedora à qual fiquei exposta, obviamente nervosa, numa reação humanamente auto- mática, não me contive e falei sem modular o tom de voz, o que significa que devo ter falado extremamente alto para o padrão ouvinte, não só o que entendia por cultura, mas sobre cultura surda, formas de comunicação, o preconceito que existe em identificar o surdo como alguém com déficit de atenção. Também comparei o meu entendimento no meu Mestrado em Medi- cina, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), numa área que a priori não era a minha, mas que, porque na época eu era igual, isto é, uma ouvinte, na segunda semana já tinha domínio total dos conceitos e jargões médicos, enquanto que ali, no Doutorado em Educação, estava em evidente situação de exclusão e ainda ridicularizada por isso.

Todos ficaram visivelmente constrangidos. A professora restringiu-se a pedir desculpas somente por não ter se lembrado de mim. No entanto, depois conti- nuou a aula sem nenhuma atenção para com a minha diferença.

Um dos alunos na mesma hora solicitou a modificação espacial das classes, para a forma circular. Outra, mesmo dizendo que não precisava, se levantou, colocou a sua mesa ao lado da minha e começou a transcrever toda a aula. Achei elogiável a disposição, depois do ocorrido, dos colegas, e especialmen- te da colega que começou a escrever os conteúdos para mim, numa tentativa de me ‘incluir’. No entanto, especialmente esta atitude era completamente absurda: alguém escrevendo sem parar, pelo menos, umas quinze páginas.

Inicialmente, é necessário sublinhar de forma reiterada que a condição de resistência e de resiliência da estudante à época, bem como a relação de cumplici- dade estabelecida com sua orientadora, foram sustentáculo em muitos momentos da permanência e do sucesso do processo de elaboração da Tese e de formação para a orientação. Muitos dos professores, como apontado já em outros trabalhos, produzem severos danos, ainda que não possam simplesmente ser taxados de vilões. O sistema não prepara os professores para o diferente e, provavelmente como defesa, tenta ou normalizá-los ou excluí-los.

Os professores, que não podem ser taxados de vilões, visto que a responsabi- lidade pela formação não é individual, produzem e reproduzem, no cotidiano da sala de aula, avarias anímicas irreparáveis, isto é, produzem vítimas.

Poder-se-ia afirmar, sem cometer excessos, que cursar o Doutorado foi uma sucessão de sobrevivências nas quais, como fênix, a vítima renascia das cinzas que, inconscientemente ou não, intencionalmente ou não, tentavam lhe transformar.

A aula de “iniciação” descrita, dada sua contundência, me leva a parodiar Kundera quando este analisa o espírito de complexidade do romance, que é uma for- ma de contar uma ou várias vidas, afirmando que este “diz ao leitor: ‘As coisas são mais complicadas do que você pensa’” (KUNDERA, 2009, p. 24).

Após o ocorrido nesta primeira aula, a doutoranda, com apoio da orientadora, decidiu pela continuidade do curso, unicamente mediante o uso do direito legal de contar com um intérprete.

5 Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais: seria cômico não fos- se trágico ou “seria trágico... não fosse cômico” (KUPERMAN; SLAVUTZKY, 2005)

Outra situação exemplar que mostra o quanto o preconceito está crista- lizado e enraizado no imaginário social, dentro e fora das instituições de ensino, chegando a criar situações que seriam tragicômicas, se não fossem reais e envolvendo seres humanos, foi a ocorrida no segundo semestre de

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