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Predicados bitransitivos: a proposta de Levin (2006; 2008)

1.1 Contextualização do problema

2.1.2 O complemento dativo em verbos bitransitivos

2.1.2.2 Predicados bitransitivos: a proposta de Levin (2006; 2008)

Segundo Levin (2006), há três maneiras de uma língua expressar o argumento alvo de um verbo bitransitivo: (i) por meio de uma marca morfológica no DP; (ii) por meio de uma preposição; e (iii) por meio de uma construção de objeto duplo (DOC). A autora, no entanto, defende que o Caso dativo está representado apenas de duas maneiras: ou o DP apresenta uma marca morfológica de Caso, ou ele corresponde ao primeiro objeto de uma construção de objeto duplo. Portanto, no inglês, o complemento dativo estaria presente na construção DOC, enquanto a sentença com a preposição ‘to’ (‘para’) seria um complemento oblíquo, com o Caso alativo29.

29 O termo alativo é um dos tipos de casos locativos, e denota o movimento para fora, que caracteriza a

semântica da transferência; nesse sistema, constam ainda: o adessivo, que denota a posição ‘fora’, em oposição a inessivo, que denota posição ‘dentro’; e o ablativo, que denota a posição ‘de fora de’.

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Nas construções de objeto duplo do inglês, o argumento alvo não apresenta marca de Caso, além de apresentar propriedades de objeto direto. Esses fatores levam alguns pesquisadores a analisar o primeiro objeto de DOC do inglês como um complemento acusativo.

Uma das propriedades de objeto direto que o argumento alvo de DOC apresenta é a passivização, conforme citado por Levin (2006). Nas construções DOC do inglês, é o argumento alvo que pode ser sujeito da voz passiva, e não o tema (cf. 9, repetido abaixo como 23) (LEVIN, 2006; CUERVO, 2015).

(23) a. Sandy sent Terry the package. b. Terry was sent the package. c. ??The package was sent Terry.

Entretanto, na análise de Levin (2006), conforme mencionado, o argumento ‘alvo’ de DOC é considerado um dativo e não um acusativo. A autora apresenta alguns argumentos para comprovar que, apesar das semelhanças com o objeto direto, o primeiro argumento de DOC equivale a um DP dativo.

Um ponto relevante é a observação de que o DP alvo na DOC e o DP com marca morfológica de dativo estão em distribuição complementar: ou a língua apresenta marca de dativo no DP, ou apresenta uma construção de objeto duplo. Essa foi a conclusão de Siewierska (1998 apud LEVIN, 2006) após estudo realizado com aproximadamente 260 línguas, que deu origem à “Generalização de Siewierska”: nenhuma língua que possui marca de Caso dativo “verdadeira” (que seja diferente da marca de locativo, por exemplo) apresenta DOC ou algum tipo de construção em que os argumentos tema e alvo têm a mesma codificação.30

Além disso, Levin (2006) demonstra que diversas restrições encontradas em sentenças com DP dativo também estão presentes nas construções de objeto duplo. Por exemplo, as propriedades das sentenças com o verbo russo poslat (‘enviar’) seriam semelhantes às construções com o verbo send em DOC. A construção dativa com poslat

30 Merece referência a análise de Kayne (1984), que postula um contraste paramétrico baseado nessa distinção,

abarcando línguas como o italiano e o francês, que manifestam o caso dativo e não possuem DOC, por um lado, e línguas como o inglês, o sueco, o dinamarquês, que possuem DOC e não manifestam o caso dativo, por outro (cf. também SALLES 1997).

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nunca toma um tema inanimado e um alvo espacial, assim como em DOC no inglês (cf. 24 e 25):

(24) *Ja poslal knigu Moskve.

I.NOM send book.ACC Moscow.DAT ‘I sent the book to Moscow.’

‘Eu enviei o livro à Moscou’. (25) *We sent the border the package. ‘Nós mandamos o pacote à fronteira”

(LEVIN, 2006: 10)

Também não há construção dativa em russo, nem construção DOC em inglês, em que o verbo ‘enviar’ apresente tema animado (26 e 27):

(26) *Ja poslal uˇcenikov direktoru.

I.NOM send students.ACC director.DAT ‘I sent the children to the director.’

‘Eu enviei as crianças ao diretor’.

(27) *The teacher sent the principal the children. ‘O professor enviou as crianças ao diretor’.

(LEVIN, 2006: 10)

Nas sentenças acima, é necessária a presença da preposição alativa k do russo, e to do inglês, que conferem uma leitura de movimento à oração. Essa interpretação não é possível com a construção DOC do inglês, ou com a sentença dativa do russo, que apresentam apenas leitura de transferência de posse (LEVIN, 2008).

Outro ponto citado pela autora para defender a proposta de que o primeiro argumento de DOC corresponde ao Caso dativo é o fato de que nem todas as propriedades de objeto direto podem ser encontradas no argumento alvo. Algumas características do objeto direto são exclusivas do argumento tema. Por exemplo, apenas esse argumento pode ser nominalizado, assim como um OD de um verbo transitivo (cf. 28):

65 (28) a. The giving of gifts to the homeless. A doação de presentes aos sem-teto. b. *The giving of the homeless (of) gifts.

*A doação dos sem-teto de presentes.

Outra propriedade diz respeito à formação de compostos (29) e predicação secundária (30). Nesses casos, o argumento alvo nunca atua como objeto direto, somente o tema:

(29) a. book-reading (to children) livro-leitura (às crianças). b. *child-reading (of books) criança-leitura (do livro) (30) a. I gave Maryj the meati rawi.

Eu dei à Maria a carne crua. b. ∗I gave Maryj the meati hungryj.

Eu dei à Maria a carne com fome.

(LEVIN, 2006:4)

Por fim, a incorporação é uma propriedade exclusiva do argumento tema. O argumento aplicado (alvo) nunca pode ser incorporado no verbo (LEVIN, 2006; CUERVO, 2015). Levin (2006) mostra um exemplo da língua Mohawk, que apresenta uma construção equivalente à sentença DOC em inglês (31a), mas não apresenta uma construção preposicionada (31b):

(31) a. O’ner´ohkwa’ y-a-hiy-at∧ny´eht-∧-’ ne Shaw´atis. Box TRANS-FACT-1sS/MsO-send-BEN-PUNC NE John ‘I sent John a box.’/ ‘Eu mandei uma caixa para John’

b. ∗O’ner´ohkwa’ y-a-k-at∧yeht-e’ Shawat´ıs-hne. Box TRANS-FACT-1sS/NsO-send-PUNC Shawatis-LOC

‘I sent a box to John.’ / ‘Eu mandei uma caixa para John’

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Nessa língua, não é possível a incorporação com o alvo (32b), apenas com o tema (32a):

(32) a. Se’wáhr-a-nut ne ‘erhar. 2sS/MsO-meat-0-feed NE dog ‘Feed the (male) dog some meat!’

‘Alimente o cachorro com carne / Dê carne ao cachorro’

b. ∗O-’w´ahr-u se-n´ahskw-a-nut. NsO-meat-nsf 2sS-pet-0-feed ‘Feed the pet some meat!’

‘Alimente o filhote com carne’/ Dê carne ao filhote’

(LEVIN, 2006:5)

Em (32a), o argumento tema glosado como ‘meat’ (‘carne’) está incorporado no verbo glosado como ‘feed’ (‘alimentar’) – Se’wáhr-a-nut –, o que é possível na língua. Já em (32b), a sentença é agramatical, pois o argumento incorporado ao verbo ‘feed’ (‘alimentar’) é ‘pet’ (‘filhote’), que tem papel semântico de alvo.

Com relação às propriedades que o argumento alvo compartilha com a função de objeto direto, Levin (2006) afirma que essas semelhanças são devidas à animacidade desse complemento. A autora cita o exemplo das construções de objeto duplo da língua Sesotho. Nessa construção, quando os argumentos internos são marcados como [+animado], ambos podem ser sujeitos de uma sentença passiva. Quando há um tema animado e um benefactivo inanimado, é o tema quem será o sujeito, devido ao traço de animacidade.

Levin conclui, portanto, que o primeiro objeto de DOC em inglês, ainda que não apresente marcas morfológicas, equivale a um argumento dativo nessa língua, em oposição ao argumento tema na função de objeto direto.