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Prefácio ao Capítulo 3

Capítulo 2 – Análises e questões

4) Prefácio ao Capítulo 3

35 Se acreditarmos que a transformação dos perceptos do caçador yudjá, dada no momento em que

passa a ver os porcos como gente, indica uma troca de perspectivas (a transformação dos perceptos como índice da troca de perspectivas), ainda assim é forçoso admitir que a troca de perspectivas está vinculada a uma relação estabelecida com os porcos – e não, como no caso dos xamãs (o comutador por excelência de perspectivas), em função de uma técnica de auto-manipulação corporal que permitiria se deixar afetar por um outro ponto de vista. Esta diferença nos parece importante. Trataremos da questão da troca de perspectivas no capítulo seguinte.

36 Em seu primeiro artigo sobre o perspectivismo, Viveiros de Castro (1996) o propõe o como um

Antes de passarmos ao Capítulo 3, anunciado em diversos momentos deste aqui, dedicamos alguns parágrafos para tentar amarrar alguns fios soltos que por ventura deixamos no caminho, ao mesmo tempo em que preparamos a leitura do próximo capítulo. O primeiro ponto, assim, é afirmar que, apesar das críticas, esta dissertação não deixará de trabalhar com o conceito de ponto de vista. Apostando que o perspectivismo trata de encontros entre duas posições subjetivas, tomamos o conceito de ponto de vista para apontar, justamente, estas posições, que só se estabelecem no decorrer da relação. Mas veja que ao implicar os pontos de vista numa estrutura intersubjetiva, o conceito de perspectiva vem esvaziado de todo seu conteúdo (do mundo que arrasta consigo) – não desempenhando, assim, qualquer papel condicionante ou constituinte: o conceito de ponto de vista é tratado aqui como um recurso lógico. O que estamos propondo é uma outra analogia para se pensar o perspectivismo ameríndio: ao invés de tratá-lo a partir do paradoxo do

relativismo lévi-straussiano, vamos tratá-lo a partir de uma analogia já clássica, a

saber, a da genealogia.

A rede de relações de uma árvore genealógica é constituída pelos laços de consangüinidade e de afinidade. Atribuir a posição de Ego a qualquer indivíduo da árvore constitui-se como recurso lógico instituído pela própria rede de relações – recurso que consiste em distribuir os laços de parentesco a partir de um ponto de referência. Assim, os termos de parentesco (pai, mãe, filho, sobrinho...) que cabem à Ego, apesar de, digamos, se arrastarem com ele, não são constituídos por ele: os termos manifestam os laços de consangüinidade e afinidade que Ego mantêm com seus parentes. São estes laços, e não a mirada de Ego, que, por um lado,

determinam os termos de parentesco (pai, filho...) e que, por outro, constituem a rede de relações de uma árvore qualquer.

O leitor já pode perceber as razões do interesse por tal analogia. Em primeiro lugar, ter determinada pessoa como irmão não depende da mirada de Ego, mas de um laço consangüíneo específico – aquele que liga Ego ao outro filho de seus pais. Do mesmo modo, sugerimos que ver uma determinada pessoa como porco não é algo que depende da mirada de um ponto de vista, mas de algum laço específico que relaciona esta perspectiva àquela determinada pessoa (o porco)37.

Ademais, e extrapolando um pouco a analogia, sempre há a possibilidade de alguém inicialmente estranho se mostrar um ‘irmão’ para Ego, ao partilhar outros laços importantes que não sejam aqueles instituídos pela consangüinidade fraternal – e, ao contrário, um irmão de sangue, pode bem se mostrar um estranho e um inimigo: como Caim se mostrou à Abel. Esta dinâmica também pode ser vista no perspectivismo ameríndio: aquele que inicialmente se mostra como um porco

37 Não tratarei aqui deste laço específico. Mas uma das perguntas que fica, para abordarmos quando

a proposta e as investigações estiverem mais maduras, é a seguinte: se as apreensões não são constituídas pela mirada de um ponto de vista, o que fará as vezes das relações de afinidade e consangüinidade no perspectivismo ameríndio? Ou seja: se o fato de eu chamar alguém de ‘irmão’ aponta um laço de consangüinidade específico (laço constituinte da rede genealógica), o fato de eu chamar e ver alguém como ‘porco’ aponta que tipo de laço constituinte? O conceito perspectivista de ponto de vista, lido a partir do idioma corporal, nos parecia uma boa forma de entender o fato de que o desenrolar das relações intersubjetivas, ainda que não seja determinado por, depende, de todo modo, de uma diferença inicial entre as subjetividades, a saber, a diferença entre as espécies: o perspectivismo trata, em boa parte, do complexo de relações entre as espécies viventes (as relações dos homens com os porcos, dos porcos com as onças, e das onças com os homens). O que queremos dizer aqui é o seguinte: se, para nós, não se trata só de espécies (pois, como vimos, a dinâmica da relação entre Cunhambebe e Staden se desenvolveu da mesma forma que entre os porcos e as banhistas yudjá), definitivamente se trata também de espécies... Suspeito que a definição da espécie, nesse material etnográfico, passa pela envergadura dos corpos/almas das diferentes espécies. Entre os Araweté, por exemplo, a diferença entre a humanidade (Bïde) e a divindade (Maï) está no fato de que os Araweté possuem apenas um corpo araweté, enquanto os Maï possuem um corpo araweté e um corpo inimigo: “Os Maï tem uma aparência que mistura traços araweté e inimigos” (Viveiros de Castro 2002e: 269). Ou seja, talvez a questão da espécie não esteja apenas na particularidade do corpo, mas também na envergadura da espécie: a dimensão do corpo maï é duas vezes a do corpo araweté. Será por isso que os Maï são predadores dos Araweté? Talvez, talvez... Como dissemos, esta é apenas uma sugestão de pesquisa: não passa de hipótese. Retornaremos à questão da relação entre corpo e alma uma nota no fim dessa dissertação.

pode bem se revelar um humano, assim como um humano pode vir, eventualmente, a se mostrar como um porco38. Enfim, nos parece que ter alguém

como irmão ou como estranho, ou ver alguém como porco ou como humano, não é algo que depende da mirada de um ponto de vista, mas das relações, dadas ou estabelecidas, entre as subjetividades.

Em segundo lugar, a analogia irá nos ajudar a entender a dinâmica relacional dos pares de perceptos do perspectivismo. Retomaremos este ponto no próximo capítulo. Por ora, basta dizer, para justificar a analogia, que tanto os pares

de termos do parentesco quanto os pares de perceptos do perspectivismo indicam

um tipo de relação específico: assim, podemos compreender as relações intersubjetivas a partir do par de perceptos que elas apresentam.

Para terminar, gostaria de dizer que esta analogia genealógica, apesar de nos parecer interessante, também apresenta suas ressalvas. Elas se referem ao conceito de multinaturalismo: dado uma árvore genealógica qualquer, o pai de uma pessoa pode ser visto, ao mesmo tempo, como o marido de outra, filho de um terceiro e

irmão de um quarto. Pai/ marido/ filho/ irmão formam um conjunto de

apreensões dado num encontro real e simultâneo entre uma multiplicidade de subjetividades, o que, como procuramos mostrar neste capítulo, não parece acontecer no perspectivismo ameríndio.

38 Sobre o caso de um porco passar a mostrar-se como humano, lembremos novamente do mito

yudjá sobre Cabeça-de-Marim-Pescador: o caçador sai à floresta em busca de porcos, mas acaba vendo-os como humanos, passando a viver com eles. Já sobre o caso de um humano passar a mostrar-se como porco, destacamos um relato de Vilaça sobre os Wari’: em certa ocasião, Orowan, xamã wari’ que tem seu espírito morando com a gente-Onça, preparava-se “para atacar as pessoas que o circundavam, dentre elas eu e seu neto classificatório. Ele coçava os olhos e rugia. Seu neto que percebeu o que acontecia, conversou com ele, lembrando-lhe que eram parentes os que estavam ali (incluindo-me, por gentileza, nesse grupo)” (Vilaça 2000: 63). Para Orowan, o que era wari’ (humano) passa a se mostrar como karawa (não-humano, presa) – nesse sentido, as pessoas que o circundavam foram tomadas como se fossem porcos.

*

Dentre as considerações alinhavadas sobre o conceito de multinaturalismo restou tratar de um ponto de suma importância, sobre o qual, no entanto, faremos rapidíssimas observações (enquanto amadurecemos as reflexões e esperamos outra oportunidade para desenvolvê-lo). Ao propor que os pares de perceptos não são índices de pontos de vista em relação, mas, ao contrário, da relação entre dois ‘pontos de vista’ (ou seja, entre duas posições dadas pelo estabelecimento de uma relação), estamos mudando um pouco as implicações e, por conseguinte, o foco de estudo do perspectivismo, pois, aqui, não tratar-se-ia tanto de abordar o vínculo entre o percepto e seu ponto de vista, mas de procurar entender o modo como se estabelecem os vínculos entre os perceptos, ou melhor, entre os pontos de vista. Dito de outro modo, ao focalizar os pares de perceptos não o fazemos para apontar o caráter relacional e múltiplo de uma ontologia que, diferentemente da nossa, conceberia o mundo a partir da diversidade de pontos de vista que o povoam e o constituem; o fazemos para sugerir a presença de um regime específico e estrutural de relações: menos, portanto, o caráter relacional da ontologia ameríndia e mais o caráter estrutural das relações ameríndias.

Capítulo 3 – Hipóteses de trabalho

“O terceiro volume [...] dá um passo decisivo. Trata-se dos mitos que, em vez de colocarem termos em oposição, opõem os modos diferentes segundo os quais esses termos vêm a opor-se entre si: eles podem ser conjugados; podem também ser separados. Como, perguntam-se os mitos, se opera a passagem de um estado a outro?” Claude Lévi-Strauss (De perto e de longe, 1988)

A abordagem do material etnográfico que propomos também tem como elemento chave o conceito de relação. Iniciamos o último capítulo destacando alguns pontos do argumento de Viveiros de Castro e Lima referentes ao conceito de relação (Na seção “Entre pontos de vista”). Em seguida vamos tratar da possibilidade de pensar o conceito de relação entre relações.

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