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NOTAS PRELIMINARES SOBRE RELIGIÃO E CULTURA POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: O CASO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO

CAPÍTULO II – CULTURA POLÍTICA E DEMOCRACIA NO BRASIL

NOTAS PRELIMINARES SOBRE RELIGIÃO E CULTURA POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: O CASO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO

DE DEUS

Não obstante o reconhecimento de que as transformações recentes do capitalismo produziram abalos sistêmicos numa escala global, existe um componente específico, autóctone e complicador deste impacto na constituição da esfera pública democrática brasileira, que se traduz nas incrustações presentes de uma práxis política autoritária que dificultam o florescer de um caldo de cultura pautado pelo sentimento de pertença e compromisso a uma comunidade de destino. Por exemplo, um peculiar sintoma global desta desestabilizadora mudança dos tempos - a cultura do narcisismo82 - dissemina-

se, num cenário como o brasileiro, no interior de um volumoso conjunto social composto por indivíduos com uma noção débil do que é um cidadão, desprovidos substantivamente dos meios materiais (trabalho, dinheiro) de sobrevivência e de mecanismos maduros de empoderamento social (escolarização, noções de solidariedade social e cultura associativa). Boa parte

82 De acordo com Christopher Lasch, o “narcisismo significa uma perda da individualidade e não a auto-afirmação; refere-se a um eu ameaçado com a desintegração e por um sentido de vazio interior.Para evitar confusão, (...) a cultura do narcisismo seria melhor [caracterizada], ao menos para o momento, como a cultura do sobrevivencialismo. A vida cotidiana passou a pautar-se pelas estratégias de sobrevivência impostas aos que estão expostos à extrema adversidade. A apatia seletiva, o descompromisso emocional frente aos outros, a renúncia ao passado e ao futuro, a determinação de viver um dia de cada vez – tais técnicas de autogestão emocional, necessariamente levadas ao extremo em condições extremas, passaram a configurar, em formas mais moderadas, a vida das pessoas comuns em condições normais de uma sociedade burocrática, amplamente percebida como um vasto sistema de controle total”. Cf. LASCH, C. O mínimo eu. Sobrevivência psíquica em tempos difíceis. 5ªed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, pp.47-48.

55 destes indivíduos recorre, na busca por alívio às suas aflições, a uma nova instância de coesão social que reforma – ao invés de derruir – estruturas coesivas tradicionais83 (baseadas em hierarquias fixas, centralização de poder,

etc.) adequando-as para uma linguagem que não mais enfatiza a simples obediência, mas a legitimação das formas existentes de competição do mercado sob o prisma da confiança plena e irrestrita no primado da fé em Deus como mola propulsora para a prosperidade material. Esta nova instância - a Igreja Universal do Reino de Deus - sobretudo através de seu bispo primaz Edir Macedo, intenta sustentar a tradicional corrente que une o mundo secular com o mundo religioso, costurando certezas naturais, confianças sociais e crenças científicas, associando-as a apostas no sobrenatural84. Tal concatenação

discursiva adota uma cosmovisão que convence o indivíduo social e economicamente fragilizado de que existe um sentido claro, simples e coerente do mundo, que é capaz de proporcionar a sensação de auto-controle, segurança ontológica85 e, acima de tudo, a crença de que é possível “ser alguém na vida”, que é visto, prestigiado e referendado pelo seu entorno.

A excessiva força de sentido decorrente de seu eficaz proselitismo permite com que a IURD assuma uma série de características típicas de uma estrutura de poder autoritário. Isso se verifica, por exemplo, na composição administrativa dessa igreja, dotada de uma estrutura empresarial e de governos eclesiásticos centralizados, comandados por bispos, apóstolos e profetas. Além do mais,

83 Neste ponto aparece uma distinção importante entre neopentecostalismo e pentecostalismo. Este último, historicamente anterior ao primeiro, se aproxima mais dos traços de uma organização tradicional, visto que se constituiu à imagem da organização social da hacienda, isolando quase que por completo o seu rebanho de influências sociais exteriores ao seu domínio. Cf. D´EPINAY, C. L. A Mutação Social do Chile e a Explosão Pentecostal. In O refúgio das massas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

84 SWATOWISKI, C. W. Texto e contextos da fé: o discurso mediado de Edir Macedo. In Religião e Sociedade 27(1), 2007, p.127.

85 O seguinte trecho endossa este argumento: “Confrontadas a um meio aparentemente implacável e ingovernável, as pessoas voltaram-se para a autogestão. Com o auxílio de uma elaborada rede de profissões terapêuticas [num sentido genérico, a IURD encaixa-se nesta rede], as quais, elas próprias, abandonaram as abordagens que enfatizam as introvisões introspectivas em benefício da adaptação e da modificação do comportamento, os homens e as mulheres tentam atualmente reconstituir uma tecnologia do eu, a única alternativa aparente ao colapso pessoal”. Cf. LASCH, C., op. Cit., p.48.

56 “a maior parte das igrejas pentecostais [entre elas a IURD] tem dirigentes que são chefes, proprietários, caciques e caudilhos de um movimento religioso criado por eles mesmos e transmitido de pai para filho de acordo com o modelo patrimonial e/ou nepotismo de reprodução”

86.

No campo político propriamente dito, a IURD tem mostrado profunda preocupação em se ocupar com a conscientização e o direcionamento do voto de seus membros. Para tanto, montou um esquema altamente complexo para o lançamento de candidatos a cargos eletivos. Pesquisa realizada por Ari Pedro Oro mostra que, desde 1997, a igreja vinha adotando, em âmbito nacional, “(...) o modelo corporativo da “candidatura oficial”, cujo número de candidatos para os distintos cargos eletivos depende do capital eleitoral de que dispõe” 87. De

acordo com a pesquisa, a igreja fazia campanhas para que os jovens de 16 anos que freqüentavam a igreja obtivessem o título de eleitor e realizava, antes das eleições, um recenseamento de seus fiéis para uma leitura precisa de seu escopo eleitoral. Estes dados eram apresentados aos bispos regionais que, por sua vez, transmitiam ao bispo Rodrigues88, que outrora ocupara a função de testa-de-ferro da igreja em assuntos políticos. Juntos, os bispos regionais e o bispo Rodrigues deliberavam quantos candidatos lançariam em cada município, baseados nos quocientes eleitoras dos partidos e no número de eleitores recenseados pelas igrejas locais. Note-se que a escolha dos candidatos era prerrogativa única e exclusiva dos dirigentes regionais e nacionais da Igreja, segundo seus próprios interesses. Não havia nenhuma consulta democrática aos membros fiéis sobre o assunto. Por trás de todo esse

86 BASTIAN, Jean-Pierre (1994: p.126) apud MARIANO, R., MARIANO, R. O futuro não será protestante. Trabalho apresentado na mesa redonda MR06 “Dilemas do protestantismo latino- americano”. VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998, p.10.

87 ORO, Ari Pedro. A Política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religioso e político brasileiros. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, n. 53, outubro/2003, p 55. 88 Bispo Rodrigues foi afastado pela IURD de suas funções em 2004, no auge das denúncias de envolvimento no caso Waldomiro Diniz. Atualmente, o ex-bispo e deputado federal dirige, de uma sala modesta da TV Record, no Rio de Janeiro, a Rádio Nova AM, do grupo de comunicações ligado à igreja que ajudou a fundar – e que lhe deu e lhe tirou o título de “bispo”. Cf. “Afastado da Política, ex-bispo Rodrigues retoma atividades na rádio da Universal”. Reportagem do jornal Folha de São Paulo, 3 de fevereiro de 2009.

57 controle estavam – e continuam estando - os interesses corporativos desta igreja que visam, em âmbito eleitoral, o alcance de uma representação política que viabilize

“(...) concessões de rádios, canais de televisão, além da aprovação de projetos, promulgação ou modificação de leis que permitam, dentre outros, que áreas públicas possam ser doadas para a construção de templos e que uma infra-estrutura eletrônica de grande porte seja utilizada em alto volume (uma constante em seus eventos), ainda que haja uma legislação reguladora de poluição sonora” 89.

Diante destes elementos, confirmadores do autoritarismo de um importante segmento religioso que brota de dentro da sociedade civil, faz sentido pensar que

“(...) um (...) problema que é necessário enfrentar reside no fato de que o autoritarismo não está restrito ao Estado, mas é o modo de ser de parte substancial da sociedade civil. Diferentemente do que se pensava, uma sociedade civil forte não é por si só antídoto ao autoritarismo, porque se ela é uma sociedade civil autoritária, nela vão se generalizar interesses pouco preocupados com a esfera pública, pouco permeados pela idéia de uma cultura cívica e, enquanto tais, interesses que estimularão os comportamentos predatórios e os interesses particularistas, corporativistas de todos os tipos (LAHUERTA, 1999)”90.

89 SIQUEIRA, Deis. Religiosidade contemporânea brasileira: estilo de vida e reflexividade. In Sociedade e Cultura, v. 9, n.1, jan/jun. 2006, p.15.

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CAPÍTULO III – RELIGIÃO, POLÍTICA E ESFERA

PÚBLICA: O CASO DA IGREJA UNIVERSAL DO REINO

DE DEUS.

OS PENTECOSTAIS E A TRANSFORMAÇÃO NO CAMPO RELIGIOSO