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Sei lá, a vida tem sempre razão

Vinícius de Moraes e Toquinho

Tem dias que eu fico Pensando na vida

E sinceramente não vejo saída Como é, por exemplo

Que dá prá entender A gente mal nasce Começa a morrer Depois da chegada Vem sempre a partida Porque não há nada Sem separação

Sei lá, sei lá

A vida é uma grande ilusão Sei lá, sei lá

Só sei que ela está com a razão (…)

Para olhar fenomenologicamente para a canção de Vinícius e Toquinho, além de sintonizarmos com o dizer “a gente mal nasce começa a morrer” – que revela, poeticamente, a noção de existente, aquele que sabe de sua finitude – também é importante chamar atenção do leitor para o título, frase que é parte também do segundo refrão: Sei lá, a vida tem sempre razão. E afirmo, no início deste segundo entreato, a

partir desta canção: a razão da fenomenologia da infância está na vida – ou ainda, na continuidade dela.

A Flor da vida é a imagem que criei para contar algo ao leitor e interlocutor sobre a criança pequena, semente que desabrocha em flor; é também uma forma de expresssar algo sobre mim – a autora da tese. Percebo que muitos anos de estudo em fenomenologia marcam meu texto, de modo que estou inevitavelmente implicada, e não haveria outro modo de escrever uma tese senão pelo caminho que, em linguagem acadêmica, nomeia-se “relato de experiência”.

A Flor da vida é síntese de meu trabalho com crianças, iniciado como arte-educadora em 1981. É também, de alguma forma, depoimento de alguém nascido em São Paulo no ano de 1961, três anos antes da revolução militar no Brasil; aluna de uma das primeiras “escolas experimentais” da cidade de São Paulo, o “Quá-Quá”. Adolescente, em 1977, morei nos Estados Unidos por um ano, como estudante de intercâmbio, quando meu interesse voltou-se para as Ciências Humanas; e o texto aqui escrito é feito por uma mãe de primeira viagem na segunda década de 80, e esposa, por dez anos, de um artista plástico e arte-educador que manteve por muitos anos um “Atelier Livre” onde ensinava artes plásticas. Professora, quando adulta jovem, de pré-escolas que propunham uma pedagogia embasada nas noções filosóficas e educacionais de Paulo Freire; ex-atriz do Grupo Ventoforte, psicóloga formada em 1997 e mestre em Artes; por fim -- ou de volta ao começo – quem aqui escreve é doutoranda em Psicologia da Educação na PUC-SP.

Sou, portanto, parte de uma geração que quando criança “cantava os Beatles e os Rolling Stones”; geração de filhos de uma classe média bem-sucedida, que viveu o chamado “milagre econômico” brasileiro e o surgimento da indústria cultural para crianças, com a televisão educativa e um enorme boom da literatura infanto-juvenil; adulta jovem quando o vírus do HIV começou a exigir novos cuidados e reflexão acerca da liberdade sexual conquistada pela geração anterior; mulher jovem que encontrava-se grávida quando o candidato à presidência do Brasil Tancredo Neves morreu. Voltei a estudar aos trinta anos de idade, na graduação em Psicologia da PUC-SP, a partir de meu interesse, como auto-didata, pela obra do psicanalista inglês D. W. Winnicott. Hoje sou psicoterapeuta,

ensino teatro para crianças em uma escola municipal de iniciação artística e psicologia fenomenológica em um centro universitário, em São Paulo.

Todas estas referências são “figuras” e “fundos”, eixos dos meus questionamentos desta pesquisa de doutorado, que desemboca em um enorme interesse por outra ciência humana, irmã da psicologia fenomenológica: a antropologia. Também é “figura-e-fundo” para os próximos desdobramentos do meu texto, pois no “Segundo ato” vou comentar minha prática como professora de teatro para crianças pequenas, e farei ver, por meio de meu trabalho cotidiano, minha pesquisa diante da palavra falante.

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Gostaria que o leitor pensasse, junto comigo, a partir da vida mesma: flores nascem na secura do sertão; flores muitas vezes sobrevivem a intempéries que ninguém diria; flores saturadas de água podem morrer ainda botões. Disse Clarice Lispector (2004): “Muito elogio é como colocar água demais na flor. Ela apodrece. (…) Morre.”

Esta tese de doutoramento não pretende ensinar “como fazer a jardinagem”! Assim como a canção – sei lá, a vida tem sempre razão – a razão da fenomenologia da infância não estará em prerrogativas para fazer florescer bem um jardim: como seres-no-mundo, as crianças já estão aí, vivendo suas vidas; vidas já dadas, já contextualizadas, mergulhadas em suas culturas e situações. A prerrogativa maior está na abertura para o outro, na possibilidade de co-existência, nas noções de acolhimento e pertença.

Pensar em jardins harmoniosos requer pensar uma coletividade de flores; ampliar a leitura fenonenológica da criança é pensar, antropologicamente, como estão as crianças em tal e qual sociedade hoje? Como vivem, como morrem – quando morrem? Como são olhadas pelos adultos? E ainda, deveriam ser “harmoniosos” os jardins das crianças que vivem nesta ou naquela situação dificultosa?

Este doutoramento propõe reflexão não sobre uma teoria, mas sobre a vida mesma, vida das crianças, compartilhadas com os adultos. Está na cotidianeidade da vida a chave para

a compreensão fenomenológica – e não em perspectivas técnicas ou teóricas. E está na capacidade adulta para falar e comunicar algo às crianças a hipótese de uma “nova linguagem”.

No entanto, há sim um pressuposto inicial para a flor vingar: laço. Raiz, terra fértil para colorir jardins a partir da vida humana; laço do adulto com a criança, que a faz “ser de linguagem”, como diz Françoise Dolto. Laço do adulto com a criança que lhe permite exercer seu direito à verdade, por meio da conversa, pelo acolhimento em palavras e pelo silêncio significativo.

E a flora é magnífica; tantos e tantos jeitos de ser flor!

O propósito deste doutoramento não está na colheita de flores perfeitas: o propósito maior é retomar a pergunta por mim formulada há mais de dez anos -- Existe uma educação ‘fenomenológica’ a ser dada às crianças?

Brinco um pouco com a canção da epígrafe: sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão…

Por ser a fenomenologia um método, um modo de praticar as ciências humanas e uma maneira de ser e estar no mundo, seria a educação fenomenológica aquela que meramente “realiza descrições”, a partir de um afastamento de pré-juízos e julgamentos de valor? Seria essa, então, uma “pedagogia do distanciamento” – ou, ainda, retomada da velha fórmula “Deixa estar para ver como é que fica”?

Volto a brincar: não haveria como ser meramente “descritivo” perante uma criança -- o que é fenomenológico é o modo de relacionar-se com ela! A partir daí talvez se possa, sim, criar uma “educação” ou “pedagogia” com bases fenomenológicas – posso agora reformular a pergunta inicial da seguinte maneira: Existe um olhar fenomenológico para as maneiras de ser e estar das crianças no mundo? E no que esse olhar modifica nossa convivência com elas, nossa coexistência?

E, diante desta reformulação, podemos começar a positivar o fenômeno da infância e responder: Sim, existe um modo de olhar fenomenologicamente para as crianças, bem como para as pedagogias dos adultos – e, para exercer este olhar, é preciso desenvolver uma linguagem descritiva que se aproxime da criança pequena, cuja vivência é, essencialmente, de polimorfismo e de não-representacionalidade, como nos ensinou Merleau-Ponty; e pesquisar e criar um discurso que, ao mesmo tempo, faça ver a criança mesma: de quem estamos falando? Onde vive, como vive? Quem a cuida, e como cuida? E assim por diante. Dessa maneira abrimos uma perspectiva antropológica da infância e da criança e nos aproximamos de uma nova visada.

Michel Foucault, em sua obra As palavras e as coisas, alerta para um grave risco do pensamento fenomenológico: uma espécie de sono antropológico que as Ciências Humanas dormiriam… Procurarei conversar e responder criticamente a isso, em ação discursiva, no segundo ato da tese A Flor da Vida. Minha busca será concretizar uma pesquisa de linguagem em psicologia fenomenológica, e elaboração de um discurso, de modo a sintonizar com a propositiva merleau-pontiana:

Em certo sentido, como diz Husserl, a filosofia consiste em reconstituir uma potência de significar, um nascimento do sentido ou um sentido selvagem, uma expressão de experiência pela experiência que ilumina (…) o caminho da linguagem. E num sentido, como diz Valéry, a linguagem é tudo, pois não é a voz de ninguém, é a própria voz das coisas, ondas e florestas. E o que temos que compreender é que, de um a outro modo de encarar a linguagem, não há inversão dialética, não precisamos reuní-los numa síntese: ambos são dois aspectos da reversibilidade que é verdade última. (2003:150)