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O processo de trabalho na criação de Menino de sua Avó e, no que importa neste ponto, na preparação para o papel de Fernando Pessoa, começou pela análise dramatúrgica realizada nas primeiras leituras da peça. O processo artístico, que aprendi na companhia de teatro A Barraca – e com Maria do Céu Guerra –, começa na leitura e no que se guarda como as primeiras impressões de um texto, de um diálogo, de uma imagem dramatúrgica, e que são, muitas vezes, as que vêm a ser opções definitivas, isto é, as que ganham cena no palco.

56 A experiência anterior de D. Maria A Louca foi fulcral para a solidificação da relação que fui estabelecendo de forma crescente, progressiva e naturalmente, com Maria do Céu Guerra, num entendimento artístico e humano. A cumplicidade entre ambos abrange simultaneamente o estudo da obra enquanto texto e a respetiva realização cénica. É uma relação de complementaridade e não de oposição, no que respeita às escolhas dos elementos de criação. Este entendimento viabiliza o processo criativo e produz um resultado gratificante no objeto cénico a que nos propomos. Todas as hipóteses de solução performativa são postas à discussão no nosso trabalho de cocriação. As dúvidas são clarificadas quando as várias hipóteses são testadas, à semelhança do processo científico, neste caso num contexto de criação artística.

É difícil analisar o trabalho de ator, separado do trabalho de todos os elementos que compõem a arte dramática, e em especial é difícil separar a criação do ator da intervenção do encenador. Em Menino de sua Avó, que é aceite como a criação de uma equipa, essa separação é ainda mais difícil, mas vou tentar focar-me apenas no meu trabalho de ator e na construção da minha personagem.

Como referi anteriormente, num processo artístico de teatro, em que o texto é a base de todo o decurso, é aí que começa a construção do ator. Os ensaios duraram cerca de três meses; desses noventa dias, trinta foram de leitura, de reflexão, de exploração das possibilidades que a palavra oferece para o teatro acontecer. Para selecionar essas possibilidades, o filtro foi o diálogo entre a equipa e a discussão dos temas fulcrais da peça: vida e morte, loucura em Fernando Pessoa. Dando os primeiros passos da encenação de onde emergiu esta personagem de Fernando Pessoa, entre as 84 possibilidades de todas as pessoas23 que dele conhecemos.

Adolfo Casais Monteiro (1908 -1972) suspeitou e bem (mas apenas de viés) a relação óbvia – segundo a geral crítica – entre os heterónimos – mitos e os respetivos poemas para assim desdramatizar e se possível cortar pela raiz o espelhismo de que a questão obsessiva da heteronímia tem constituído. Há um só Poeta, autor de poemas de aparência diversa que como tais devem ser tomados e compreendidos, e acabou-se. (Lourenço, 2000, p. 31).

A preparação da personagem Fernando Pessoa em Menino de sua Avó partiu de uma pesquisa bibliográfica, antes da própria pesquisa prática, necessária ao trabalho de interpretação.

57 Começámos pela obra publicada de Fernando Pessoa para a preparação da minha abordagem performativa, da qual destaquei a obra assinada pelo ortónimo, o Livro do Desassossego de Bernardo Soares, Poesias de Álvaro de Campos, Poemas Escolhidos de Alberto Caeiro, Odes de Ricardo Reis, Poesia de Alexander Search; Carta da Corcunda Para o Serralheiro e A explicação sobre os heterónimos. «Entrar em Pessoa é um perigo: eventualmente não mais de lá se sai.» (Gil, 2010, p. 9).

Não construí esta personagem cenicamente por meio da habilidade na interpretação, ou seja, através dos meus recursos como ator previamente conquistados, dentro da minha zona de conforto, mas criei-a através da reunião dados bibliográficos (obra de Fernando Pessoa) e biográficos (obras de pessoanos), o que sustentou a investigação da personagem no palco e apoiou essa criação. A partir do universo de Fernando Pessoa, revejo o meu léxico de ator e experimento o que de meu posso sugerir.

As experiências que acumulamos, como me foi transmitido por Guillermo Heras, são o nosso leque de trabalho de interpretação, ou, até, relembrando as palavras de Carlos Avilez, base de trabalho para uma possível transferência; no entanto não temos todas as experiências, o homem não pode ter todas as experiências; o lhe resta, a sua grande arma artística, é a imaginação. Em momentos diferentes da vida, as opções (e os dados adquirido) de cada projeto seriam, necessariamente, também diferentes: «O Homem não é Deus. Mas eu acho que um ator é um deus, de certa forma... Porque é uma pessoa que de repente consegue encarnar outras situações, transformar-se…».24

Na preparação do papel, surgiu uma questão ligada a todo o universo pessoano e que é quotidiana na vida de um ator: o «drama-em-gente», assim designado por Pessoa. No entanto, nesta peça não se conta a vida dos heterónimos; aqui, pretende-se passar, em ficção cénica, pela vida do escritor Fernando Pessoa. E é óbvio que os heterónimos são parte dela. Ao usar um heterónimo menos conhecido, como o astrólogo Rafael Baldaia, o dramaturgo dá destaque ao conhecimento que Fernando Pessoa demonstra relativamente aos astros e à astrologia e todo o esoterismo presente em muita da sua produção literária e da sua especulação filosófica e espiritual. A peça apresenta o

58 homem Fernando Pessoa e não a obra, qua apenas surge convocada dentro da economia da ação e dos seus intervenientes. Há uma tentativa de traçar uma linha, de seguir uma história de vida do poeta e sua avó, em termos biográficos, não tanto apenas em moldes psicológicos. Há uma pesquisa da e na vida de Fernando Pessoa, embora haja inúmeras referências a e citações de vários heterónimos.

Como é universalmente sabido, o próprio poeta crismou a sua aventura de

heteronímia, distinguindo-a, a justo título, da mais comum pseudonímia. Com

efeito, a heteronímia não se distingue da pseudonímia como o mais do menos. Há entre elas uma diferença de estatuto, por conseguinte, infraestrutura de significação. O autor não esconde um mesmo texto sob nomes diferentes: ele é

vários autores apenas e na medida em que é vários textos, isto é, textos que

exigem vários autores. Tem sido o exame desta famosa heteronímia e da sua significação enquanto momento espectacular da história da consciência moderna o que sobretudo tem interessado a mais estruturada exegese de Fernando Pessoa. (Lourenço, 2000, p. 25).

Eduardo Lourenço debruça-se sobre a obra de Pessoa, desmistificando, de certo modo, a questão do drama-em-gente, que tantas aproximações hermenêuticas tem suscitado, como as de Jacinto do Prado Coelho (Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa), José Augusto Seabra (Fernando Pessoa ou o poetodrama), Teresa Rita Lopes (Pessoa Por Conhecer), e, mais recentemente, Jerónimo Pizarro (Pessoa existe?), entre outros. No fundo, pela assinatura de Bernardo Soares, o próprio Pessoa o explica, em textos alusivos ao onírico e às máscaras humanas onde o sujeito se esconde, talvez por não saber a qual pertence – e no seu apelido Pessoa, o poeta já tem, etimologicamente, a máscara, a persona. Foi em Bernardo Soares que vi o espelho de um Pessoa que já imaginava antes, só, fechado, nubloso: uma sombra, alguém que está e não está. E quando está, está sempre com pressa de não estar, mesmo que esteja parado e aparentemente calmo. Está inquieto.

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.

Para criar, destruí-me. Tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena nua onde passam vários atores representando várias peças.» (Pessoa, 2014a, p. 243).

Vê-se em Pessoa um movimento interno e inconstante. Por dentro, nunca está parado. Por outro lado, na profundidade destas leituras, compreendo um Pessoa que agora me surpreende, enquanto poeta, enquanto homem: Pessoa não sexual, abstinente,

59 não carnal, um homem de poucos toques, poucos contactos físicos. É alguém que escreve muito sobre si e o outro, e que, afinal, é isolado do outro, isolado de quase tudo o que não é ele próprio; é muito pensado e pouco vivido – a sua vida é a vida pensada. Ou, pelo menos, não são conhecidos outros relatos da sua vida amorosa, exceto o romance com Ofélia Queiroz (1900-1991). E foi esta uma das minhas muitas dificuldades: a grande diferença entre mim e ele é a proximidade com as pessoas – eu atravesso barreiras e toco nas pessoas. Nos primeiros ensaios de palco, Maria do Céu Guerra alertou-me para a questão do toque, pois a simplicidade de tocar era uma barreira a esta interpretação, dado que Pessoa não tinha esta relação de toque, de proximidade com as pessoas. Isso é uma característica do ator, não da personagem. Na compreensão dos conceitos de ator e personagem, Eugénia Vasques relembra-nos Kurt Spang, em Teoria del drama, que desenvolve o estudo da personagem por meio de tipologias que distinguem a personagem, enquanto no texto, e a personagem (re)criada na cena. E desenvolve também uma compreensão do conceito de figura para personagem, quando esta é estudada e trabalhada no âmbito do texto, quando não ganhou o corpo do ator na cena (Vasques, 2003, pp. 31-46). Assim, parece-me correto entender a preparação do papel como o trabalho desta figura de Fernando Pessoa na dramaturgia de Nascimento Rosa, e a ambiguidade do estudo do ator enquanto intérprete de uma personagem que foi já uma identidade física viva. Não é em vão que os atores se protegem, ao evitar criar, no seu repertório, personagens a partir de personalidades vivas, pois se interpretássemos uma personagem que fosse uma figura viva, não estaríamos a fazer criação, mas ver-nos-íamos confrontados com o real e tentaríamos fazer uma mera imitação. Procurando evitar o envolvimento psicológico, podíamos fazer uma caricatura, salientando as características mais controversas da figura em questão. A distância temporal entre a fixação baseada na história verídica e a conceção de envolvimento artístico permite ampliar a criação, seja ela ao nível da dramaturgia ou da performance, restando o que de mais notável ficou da raiz da inspiração, excluindo os conflitos de um quotidiano que nada acrescentam à exposição dramática.

Depois da leitura da literatura pessoana, tentei compreender o seu contexto social, o ambiente que envolvia Lisboa naqueles anos, as grandes questões que assaltavam os intelectuais da época, nomeadamente os da chamada geração de Orpheu.

60 De seguida, procurei compreender Fernando Pessoa, o homem. Destaco algumas obras que me direcionaram nesse sentido: Pessoa Por Conhecer – Textos para um novo mapa, de Teresa Rita Lopes; Pessoa na Intimidade, de Isabel Murteira França; Vida e Obra de Fernando Pessoa, história de uma geração, de João Gaspar Simões; Fotobiografias Século XX - Fernando Pessoa (coleção dirigida por Joaquim Vieira), com texto de Richard Zenith.

Pessoa na Intimidade, de Isabel Murteira França, é quase como uma história de vida na quarta pessoa; explico-me: o livro é constituído por uma extensa entrevista feita pela sobrinha de Fernando Pessoa à irmã de Fernando Pessoa. A sobrinha-neta traz características, pormenores da intimidade de Pessoa fundamentais para a composição de Pessoa em teatro; não sendo propriamente um estudo da obra pessoana, é Pessoa em pessoa o que mais me interessava para a interpretação na peça, o homem nas suas várias idades, o homem que ambicionava a grande obra e que se tornaria artista universal a título póstumo. O homem no seu quotidiano, o homem na família e a relação familiar, o neto de uma avó louca, e essa, sim, aqui ficcionada para dar o balanço e desenvolvimento ao fantástico do espetáculo e passando em revista a vida e a obra dele. Isso permitiu-me, enquanto ator que estuda uma personagem, encontrar pontos de contacto entre este homem, que tinha uma relação muito próxima e chegada à família – mesmo quando ele viveu em quartos alugados, estes ficavam perto da casa de familiares, esteve sempre na cidade de Lisboa e continuou a visitá-los com regularidade (Nogueira, 2015, pp. 57-65) –, que tinha um lado observador com que olhava para as coisas, para a vida e para as pessoas, tentando percebê-las, pôr-se no lugar delas, interiorizá-las, tudo isto sem precisar de se envolver diretamente com elas, para depois escrever; também eu uso a observação como tentativa de experiência para me colocar na pele do outro, na vida do outro, por distração, inspiração, e depois representação.

Vida e Obra de Fernando Pessoa, história de uma geração, de João Gaspar Simões (crítico literário que ainda privou com o poeta e foi o seu primeiro biógrafo, um muito menosprezado prosador de ficção, que a investigação de Luísa Monteiro veio revalorizar em 2013) encaminhou-me para pormenores valiosíssimos para a interpretação que dei no espetáculo, em particular a sua descrição do pavor pessoano da loucura, no relato do seu andar peculiar, na evocação da morte e nos dias que a antecederam.

61 A obra de cariz fotobiográfico de Fernando Pessoa dirigida por Joaquim Vieira e com texto de Richard Zenith teve um papel fundamental pelas imagens coligidas e comentadas. Precisava de imagens do sujeito da minha investigação em contextos como os espaços da cidade e em família, para, através das figuras com quem se relacionava, imaginar uma relação entre eles nos seus hábitos rotineiros: imaginá-los a jantar ou sentados numa sala a conversar; tentar entrar nas suas vidas com uma suposta personalidade de Pessoa, entrar para dentro daquelas fotografias, ou melhor, primeiro com a minha personalidade, depois com a dele; visualizar pessoas de carne e osso, para além do que foi ficcionado, para além dos papéis, para além dos escritos biográficos, para além da literatura e da poesia. As fotografias são a matéria mais próxima da exatidão imaginosa que eu necessitava para este trabalho, ver aqueles rostos e tentar decifrar-lhes uma personalidade, uma vida e viajar até lá.

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