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2 TERRA DO FUMO: CONFLITOS, DISCURSOS, CULTURA E IMAGINÁRIO

2.1 Preparando o Cenário e Suas Contradições

Durante o ciclo do fumo, em Arapiraca, houve a difusão de um discurso fumageiro através da elaboração imagética em monumentos, símbolos oficiais e elementos artísticos. Os vestígios e evidências concretas desse discurso ainda podem ser percebidos em alguns símbolos em pontos estratégicos da cidade e devem ser entendidos como elementos de um discurso performativo que cria a região fazendo-a existir e ser legitimada (BOURDIEU, 1989).

Um dos elementos que dão suporte a esse constructo sociocultural é o Clube dos Fumicultores, construído entre 1949 e 1952, que veio se tornar um dos principais lugares de encontros e eventos da elite produtora de fumo, no qual eram realizados eventos da alta sociedade local (SILVA, 2018, p 64), e que se expandiu conforme Arapiraca abriu-se ao mundo pelas vias de comunicação e transporte, exportação do fumo e desenvolvimento do comércio atacadista e de varejo. O imaginário do local, nos anos associados à produção fumageira, começou a ser preparado sobre um discurso de valorização da cultura do fumo nos espaços públicos e privados de Arapiraca, na produção de um aparato de imagens. Não há trabalhos acadêmicos sobre o Clube do Fumicultores de Arapiraca. Em contato com a direção atual do lugar, buscando acesso a documentação do seu próprio arquivo, não pude conseguir autorização para acessá-los, deixando ai uma importante lacuna a ser preenchida por pesquisadores da história local.

Na década de 1950, com a instalação de indústrias de capital internacional em Arapiraca, houve a chegada de inúmeras pessoas em busca do sustento a partir da venda de sua força de trabalho. É preciso pontuar que essa década foi o início das transformações, pois,

de 1951 a 1956 instalaram-se mais de dez firmas de fumo. Houve uma verdadeira corrida de firmas internacionais em busca de folhas de fumo [...] O crédito bancário passou a ser utilizado na medida em que foram sendo ampliadas as funções urbanas de Arapiraca. O Banco da Lavoura de Minas Gerais instalou sua primeira agência em Arapiraca em 1950 (FERRARI, 1988, pp. 24-25).

Porém, a partir de 1960, a cidade de Arapiraca começou a se impor com significativa expressão econômica no interior do Estado de Alagoas (NARDI, 2004). A década de 1960 foi marcada pelo crescimento demográfico e atividades que, juntamente com a agricultura, contribuíam para, cada vez mais, a cidade se fortalecer enquanto polo regional concentrando

ocupação em atividades urbanas nas áreas de comércio de mercadorias, transportes, comunicações (FERRARI, 1988). A essas atividades somam-se o fato de que,

O cultivo do fumo, apoiado nas estradas de rodagem e na própria ferrovia, contribuíram para ampliação e consolidação do comércio arapiraquense, dando uma nova cara a cidade que nas primeiras décadas de existência era apenas mais uma cidade que surgia no interior alagoano (FIRMINO, 2016, 116).

A ampliação e evolução da economia arapiraquense, aos poucos, foram transformando o cenário urbano local. Já nos primórdios da década de 1960, o centro da cidade sofreu alterações de acordo com o desenvolvimento comercial, mas com sinais de contradições sociais. Em 1961 era grande o número de pessoas que vivia nas ruas e dormia nas calçadas de Arapiraca. Na Ata da 23ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Arapiraca, registrou-se o discurso do então vereador Geraldo Lima sobre as condições de miserabilidade e abandono às quais se encontravam uma gama de pessoas pobres de Arapiraca (CÂMARA MUNICIPAL ARAPIRACA, 1961). Em sua fala, fica evidenciada a necessidade da classe política local em sanar tal problema, assim como sua crítica em mencionar que tal miserabilidade contrastava com o desenvolvimento que a cidade se encontrava. Em um dos trechos, o vereador afirmou:

custa-me acreditar, que em contraste com o seu progresso econômico, Arapiraca tenha a enrugar a sua marcha de desenvolvimento, uma miséria que se acomoda nas suas calçadas, inspirando piedade e justiça. Em pleno século XX, quando pomposamente conhecida como a cidade de maior progresso de Alagoas, Arapiraca ver crescer a mendicância, a infância abandonada e a velhice desamparada, sem que até agora nada tenha sido feito no sentido de repare-las. E a desordem atingiu o seu clímax, quando recentemente, dois corpos sem vida, vitimados pelo frio da noite foram recolhidos das calçadas desta cidade para o cemitério (CAMARA MUNICIPAL ARAPIRACA, 1961, p.1, grifo meu).

Dessa forma, a fala do legislador merece que sejam destacadas algumas expressões. Há claramente oposição entre as expressões relativas ao discurso desenvolvimentista e relação ao que chama de “desordem”. As afirmações de “progresso econômico”, “marcha de desenvolvimento” e “maior progresso de Alagoas” são postas dentro de uma “classe argumentativa e escala argumentativa” que conduzem os enunciado a uma mesma conclusão. Por essa perspectiva, há uma sequência discursiva dos argumentos em uma mesma direção, sendo reforçados (DUCROT e CARREL, 2008). Os argumentos seguem reforçando a ideia de

Arapiraca bem desenvolvida economicamente: (a) progresso econômico, (b) marcha do desenvolvimento, (c) maios progresso de Alagoas.

Por outro lado, em uma sequência argumentativa contrária a de progresso, o discurso do vereador faz uso das expressões “mendicância”, “infância abandonada”, “velhice desamparada” e “desordem” no sentido de contrapor o progresso às contradições sociais da cidade. Há nesse discurso o uso de uma polifonia na qual foi posto em evidência certo número de enunciados com funções diferentes. Dessa forma, compreende-se que tanto o discurso desenvolvimentista quanto o discurso de miserabilidade estão presentes da fala do vereador, sendo que a segunda sequência de argumentos evidencia a “desordem” da cidade como resultado desse progresso.

O vereador sugere uma das faces do progresso, talvez a mais cruel, a pobreza. Seguindo o modelo de outras cidades em direção ao progresso econômico, a cidade em crescimento se enchia de pessoas “que demandavam a caridade pública” (PESAVENTO, 1994, p. 121), e a crítica sobre a inércia do poder executivo municipal em desconsiderar tal problemática seguiu acompanhada da contraproposta do Vereador em amenizar a miserabilidade daquelas pessoas quando fez a seguinte assertiva: “Façamos ver ao Sr. Prefeito, a necessidade de ser instalado um albergue, nesta cidade, traço característico da nossa preocupação, pelo bem do nosso semelhante” (CAMARA MUNICIPAL ARAPIRACA, 1961). O discurso do edil deixa pistas sobre os aspectos de contradição social em Arapiraca já em momento significante de sua economia.

Sem dúvida, o processo que dá margem a esta percepção é o próprio desenvolvimento do capitalismo e o florescer da sociedade urbano-industrial, que tem um "outro lado" a revelar: nas cidades, o contraponto da riqueza, do luxo, da ostentação burguesa dá-se pela emergência dos pobres, dos populares, dos subalternos, dos proletários... Enfim, dos protagonistas da "questão social" (PESAVENTO, 1994, p. 8).

Sobre a “questão social”, vê-se que “em 1965, registraram-se 3.263 crianças nascidas vivas e 22 mortas, 6.597 óbitos, dos quais 888 de menores de 1 ano” (MEDEIROS, 1968, p.6). Analisando esses dados, vê-se que o número de mortes de crianças menores de 1 ano de vida corresponde a 27,22% do número de nascimentos, esses dados demonstram um alto índice de mortalidade de crianças nesse período. Essas mortes foram observadas por Zélia Almeida em 1977. Em suas fichas de pesquisa, pôde-se perceber que, embora as famílias tivessem muitos filhos, era rara a casa em que pelo menos uma criança não houvesse morrido.

Ainda nesse mesmo contexto, era grande o número de pessoas que adoeciam por conta da proliferação de doenças causadas pela cultura do fumo. Na mesma sessão em que se manifestou o vereador Geraldo Lima, foi facultada a palavra ao médico Geraldo Cajueiro, que ressaltou o trabalho que desenvolvia no combate à Tracoma. Afirmou que a,

incidência tracomatosa era de aproximadamente 30%, na população de Arapiraca; isto sem falar nos surtos de conjuntivite catarral, que ocorre precisamente entre os meses de maio a junho. O surto de Conjuntivite Catarral que ocorre na época supra – citada (sic) é possivelmente, resultado dos processos de putrefação e fermentação dos adubos químicos e animais , por ocasião do plantio do fumo; com os processos de decomposição dos adubos, há na intensa proliferação dos mosquitos Ramela, que são precisamente os agentes transmissores dos agentes patológicos causadores da conjuntivite catarral, conhecida vulgarmente por Doença – Dolhos (sic) (CAMARA MUNICIPAL ARAPIRACA, 1961, S/P).

Observa-se o fumo como promotor de patologias que afligiam a população de Arapiraca em números alarmantes. Em cinco anos, o médico afirmou ter tratado “41.405 pessoas”, sendo a falta de higiene um fator a ser observado no que se conta sobre essa mazela da economia fumageira. Outro problema da Arapiraca rumo ao progresso da década de 1960 era a falta de energia elétrica, pois em alguns lugares da cidade a iluminação era feita por apenas um gerador à combustão que era ligado ao entardecer e desligado depois das 22:00 horas (LEÃO, 2018), ou seja, Arapiraca era uma cidade às escuras. Trata-se aqui, da necessidade de elaborar uma imagem da paisagem urbana de Arapiraca na década de 1960 a partir das fontes vistas até então.